Por Luiza Mançano/Brasil de Fato
Para Lautaro Rivara, a comunidade internacional não quer reconhecer sua responsabilidade na crise do país caribenho
A América Latina vive um novo ciclo de protestos em países como Haiti,Chile e Equador. As reivindicações apresentadas pelos manifestantes, embora relacionadas à conjuntura específica de cada um dos países, questionam os pilares do neoliberalismo na região representados por seus governantes.
Enquanto no Chile os protestos se iniciaram após o governo anunciar, no dia 19 de outubro, o aumento na tarifa de transporte público, as manifestações no Equador e no Haiti se devem ao aumento no preço dos combustíveis, resultado do fim dos subsídios do governo como uma das exigências dos empréstimos realizados pelo Fundo Monetário Internacional ao governo de Lenín Moreno (Equador ) e de Jovenel Moïse (Haiti).
No entanto, algumas diferenças marcam esse ciclo. No caso do Haiti, a insatisfação popular tem levado milhões de manifestantes às ruas desde julho de 2018 e a mobilização mais recente tem acontecido de forma contínua há 8 semanas. Nas ruas, a população haitiana denuncia a falta de combustíveis e de recursos e exige a renúncia de Moïse. Em meio a um cenário de falta de atividade institucional, a única resposta apresentada pelo governo tem sido a repressão policial.
Segundo dados da Organização das Nações Unidas, 42 pessoas foram assassinadas durante os protestos, e os números são ainda maiores de acordo com as organizações de direitos humanos do país, que reportam mais de 77 mortes ao longo do ano, com 51 só no período entre setembro e outubro.
Apesar da grave crise política, econômica e social no país caribenho, os protestos no Haiti não ganharam a mesma visibilidade nos meios de comunicação internacionais; tampouco se tornaram centrais na agenda de organismos internacionais como a ONU e a OEA ou blocos multilaterais como o Grupo de Lima.
Isso também se deve a considerações racistas na hora ignorar um povo negro que foi fundador da Primeira República Independente do mundo.
Para Lautaro Rivara, sociólogo e jornalista argentino, integrante da Brigada de Solidariedade da Alba Movimentos no Haiti, a invisibilidade dos protestos se deve a dois motivos. Por um lado, uma visão racista ” totalmente estereotipada sobre a realidade, a política e a cultura do país”, o primeiro a se tornar independente na América Latina, com o triunfo da Revolução Haitiana (1804), cuja população é composta por 95% de pessoas negras.
Por outro, por um descaso intencional da comunidade internacional “para que não tenham que assumir sua participação e sua própria responsabilidade no fracasso absoluto da gestão política do Haiti”.
“Cabe lembrar que o Haiti já tem 15 anos de ocupação internacional das missões da Organização das Nações Unidas com participação e acompanhamento da OEA e com uma tutela política muito evidente dos EUA e outras potências menores como a França e Canadá”, comenta o militante.
Em diálogo com o Brasil de Fato no dia 29 de outubro, Rivara falou sobre a grave crise de institucionalidade que atravessa o país caribenho e os desafios para os movimentos populares que, neste momento, se organizam para derrubar o governo de Moïse e exigir uma reforma dos sistemas político e eleitoral haitianos.
“Os movimentos populares estão participando das mobilizações, não só demonstrando sua força nas ruas, mas também debatendo ideias e programas políticos para apontar soluções concretas para que a crise não seja resolvida a partir de cima, por acordos entre setores da oligarquia e os EUA, como aconteceu em outras conjunturas”, conclui.
A seguir, a entrevista completa:
–Você poderia comentar um pouco sobre o cenário geral do Haiti nas últimas semanas?
–Estamos vivendo a sétima semana consecutiva de protestos no país, que incluem uma agenda de reivindicações ampla, resultado de uma crise econômica e energética bastante grave, que pune a grande maioria da população – que é muito pobre –, e unificadas sob a demanda comum da renúncia imediata do presidente Jovenel Moïse (PHTK) e de toda sua equipe.
Em relação à vida cotidiana, as escolas não estão funcionando, o próprio presidente falou numa rádio, no dia 28, que ainda tinha atividade escolar em 5 comunas do país. Esta informação não foi confirmada, mas o país tem 144 comunas. A atividade dos hospitais é intermitente ou nula.
A situação no campo – o Haiti é um país com um número importante de população rural e camponesa – é absolutamente crítica. Falamos com diferentes dirigentes dos movimentos sociais camponeses e todos coincidem em um diagnóstico catastrófico, todas as colheitas estão suspensas porque não tem condições para garantir a logística, o transporte das frutas e hortaliças para os centros de venda e grandes cidades. Então a situação alimentar do país, que por si só é dramática, tende a se agravar cada vez mais, sobretudo em algumas regiões, como no sudeste, que até hoje são totalmente dependentes da assistência alimentar e distribuição de água de organizações internacionais.
Não há nenhum tipo de atividade governamental e estatal, os grandes comércios estão fechados permanentemente, também os bancos, as instituições públicas e privadas e o transporte está, na maioria dos dias, totalmente paralisado. Sobretudo na capital do país, Porto Príncipe e na zona metropolitana, por conta dos protestos praticamente cotidianos, há apenas uma pequena circulação de motos e nenhum tipo de transporte coletivo ou de carros individuais. A situação é dramática.
Outra dimensão importante é o saldo da repressão policial, que é dramático. O silêncio sustentado por organismos internacionais de direitos humanos em relação ao tema do Haiti é escandaloso e quase cúmplice. Estamos falando, entre os dias 16 de setembro e 27 de outubro, de 51 pessoas assassinadas por armas de fogo, boa parte vítimas da repressão policial durante os protestos.
Segundo relatórios das organizações de direitos humanos do próprio país, são 77 mortos ao longo do ano, e os números estão desatualizados.
–Enquanto isso, o Jovenel Moïse não renuncia nem cumpre sua função como chefe de Estado. Você poderia explicar um pouco mais sobre a crise institucional no Haiti neste momento? O que mantém o presidente no poder apesar de sua baixa popularidade?
–Atualmente, o Haiti é um país que não tem governo, como estabelece sua própria Constituição. O Haiti tem um sistema misto, que reconhece a duas figuras executivas. O primeiro-ministro como chefe de governo e um presidente como chefe de Estado. O tal primeiro-ministro não existe desde a demissão do ex-primeiro-ministro Jacques Guy Lafontant durante a crise de junho do ano passado. Uma série de primeiros-ministros ocuparam o cargo de maneira temporária, e todos renunciaram. O último nem sequer chegou a ser ratificado pelas duas Câmaras do Parlamento como a Constituição exige.
Hoje o Haiti não tem governo. O país não está funcionando com um orçamento público, desde que o último orçamento foi cancelado e o país está basicamente levando suas contas públicas de forma totalmente arbitrária. Esta crise institucional é grave e o mais provável é que piore porque agora em outubro deveriam ter sido realizadas eleições parlamentares, mas não foram realizadas por causa da crise.
Cabe destacar que os 30 senadores do país vão perder a vigência de seu mandato em janeiro. Não haverá eleições até lá. Deste modo, o presidente começaria o ano governando com mais arbitrariedade, através de decretos executivos porque não contaria com um Parlamento eleito e não conta com um primeiro-ministro.
É uma situação grave, de um Estado totalmente antidemocrático, e não deixa de ser sintomático que os organismos supranacionais, como a ONU, a OEA, até mesmo as potências ocidentais que todo o tempo indicam suposta falta de democracia nos governos populares na América Latina e no Caribe, não digam nada sobre o desgoverno no Haiti. Isso está relacionado e pode ser explicado pelo alinhamento do presidente Jovenel Moïse com a política dos Estados Unidos na região do Caribe.
Hoje o presidente não conta com nenhum apoio interno, nem do empresariado ou do setores da Igreja Católica. E o conjunto dos movimentos sociais, dos sindicatos, das organizações jovens, de estudantes e outras estão no campo da oposição.
O único apoio com o qual o governo de Moïse conta hoje é com o apoio da embaixada norte-americana e o silêncio cúmplice dos organismos internacionais. Há pouco dias, a embaixada norte-americana apresentou um comunicado repudiando a “suposta violência” nas manifestações e garantindo a continuidade do seu apoio ao governo. Sabemos que os EUA continuarão sustentando o presidente Moïse sem importar com os custos e os efeitos devastadores de sua política.
–Você acha que os protestos no Haiti têm menos visibilidade na mídia?
–Sim, sem dúvida os protestos no Haiti foram e têm sido invisibilizados pelas grandes agências de comunicação privada. Se, por exemplo, olhamos para a origem desta crise, em julho do ano passado, quando o FMI – como fez em outros países inclusive – exigiu que o governo retirasse os subsídios dos combustíveis e elevasse os preços até mais de 50%, isso gerou um ciclo de mobilização massivo. Alguns analistas e observadores estimam, nestes protestos, 1 milhão e meio ou 2 milhões de pessoas nas ruas.
Naquele momento, começavam os protestos dos coletes amarelos na França, protestos convocados por milhares de pessoas em Paris. Se olhamos a forma como os meios trataram essa notícia, foi totalmente díspar.
Milhares de manifestantes – com reivindicações justas, claro – nas ruas de Paris foram notícia internacional. E mais de 1 milhão no Haiti, não. E o Haiti é um país que não tem nem 11 milhões de habitantes. Isso foi um fato que passou totalmente despercebido para a opinião pública internacional.
Atualmente, a crise demonstra essa vontade política da comunidade internacional para que o que acontece no Haiti não saia do país, para que não tenham que assumir sua participação e sua própria responsabilidade no fracasso absoluto da gestão política do Haiti.
Cabe lembrar que o Haiti já tem 15 anos de ocupação internacional das missões da Organização das Nações Unidas com participação e acompanhamento da OEA e com uma tutela política muito evidente dos EUA e outras potências menores como a França e Canadá.
Isso também se deve, sem dúvida, a considerações racistas na hora ignorar um povo negro que foi fundador da Primeira República Independente do mundo. Há uma série de considerações racistas, de preconceito e falácias coloniais, uma visão totalmente estereotipada sobre a realidade, a política e a cultura do país que fazem com que o aconteça no Haiti seja invisível ou, quando a gravidade de alguns acontecimentos conseguem romper esse cerco, a visão é distorcida.
Isto costuma acontecer, por exemplo, quando encontramos praticamente todos os dias mobilizações totalmente massivas e pacíficas e, no entanto, a imprensa que cobre os protestos só ressaltam a “suposta violência” e o “caráter bárbaro” e “caótico das manifestações” que não têm este caráter de jeito nenhum.
–Quais são os desafios da esquerda e dos movimentos populares no Haiti neste momento de protestos?
–Neste momento, a maioria dos movimentos populares, sindicatos e partidos políticos se unificaram em um espaço comum, chamado Fórum Patriótico, que aconteceu entre 27 e 31 de agosto em uma pequena comunidade rural, e reuniu mais de 200 dirigentes de forças políticas.
O desafio desses setores é poder canalizar o descontentamento visível e massivo que existe no país para conseguir a renúncia do presidente Jovenel Moïse, que é a primeira condição para começar a discutir as transformações estruturais que o país precisa.
E, ao mesmo tempo, conseguir apresentar mudanças estruturais. O eixo de reivindicação vem sendo, cada vez mais, uma mudança radical, o descontentamento com décadas de políticas neoliberais que foram devastadoras no Haiti e a reforma de um sistema político que precisa ser modificado.
[Está em pauta também] a reforma do sistema eleitoral que hoje é marcado pela falta de transparência, que é fraudulento, controlado técnica e politicamente pelos e assessores estrangeiros, para garantir uma solução soberana e autônoma à crise.
Os movimentos populares estão participando das mobilizações, não só demonstrando sua força nas ruas, mas também debatendo ideias e programas políticos para apontar soluções concretas para que a crise não seja resolvida a partir de cima, por acordos entre setores da oligarquia e os EUA, como aconteceu em outras conjunturas.