Por Annie Castro/Sul21
O cenário de ameaças, ataques, expulsão de territórios e retirada de direitos vivenciado atualmente pelos povos indígenas e quilombolas do Brasil é ainda, em grande parte, um reflexo do processo de colonização do país e também de processos de neocolonialismo. A avaliação é da pesquisadora e professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) Cíndia Brustolin, que há cerca de 15 anos estuda conflitos territoriais e socioambientais, políticas no meio rural, direitos de comunidades quilombolas e questões étnico-raciais.
Na última semana, Cindia esteve em Porto Alegre para participar da conferência de encerramento do VIII Seminário Discente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS/UFRGS). Antes da palestra, que debateu raça, territórios e pós-colonialismo, a pesquisadora conversou com o Sul21 sobre temas como as políticas de ataques aos direitos dos povos indígenas e quilombolas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), como o crescimento de empreendimentos que visam a exploração de recursos naturais para escoamento de commodities e para construção de rodovias ou portos, sobre os impactos dessas indústrias para as comunidades que vivem nos locais em que elas são instaladas, entre outros temas.
Segundo a pesquisadora, o crescimento de empreendimentos com capitais estrangeiros está acontecendo cada vez mais no norte e no nordeste do país, o que gera uma retirada das comunidades locais de seus territórios, mostrando um avanço das políticas neoliberais nessas regiões. “No litoral maranhense, por exemplo, temos um porto sendo construído que também prevê o deslocamento de diversas comunidades. Essa empresa conseguiu uma reintegração de posse e 21 casas foram destruídas. Porém, só com essa área de terra, ela não conseguiria construir o porto. Então, o nosso governo estadual emitiu dois decretos estaduais desapropriando áreas para que o porto se concretizasse.”, relata.
De acordo com a pesquisadora, ao mesmo tempo em que há o descaso estatal com a manutenção dos direitos dos povos que vivem nas áreas onde esses empreendimentos serão construídos, há também o apoio político para que iniciativas comerciais sejam cada vez mais implementadas no país. “Os processos de regularização territorial estão parados, tanto indígenas como quilombolas, o que coloca essas comunidades em uma maior fragilidade frente a empreendimentos. Por outro lado, há a expansão de algumas políticas como, por exemplo, o incentivo à soja e das estruturas logísticas de escoamento da soja”, afirma.
Cindia pontua ainda que nesses processos estão presentes também visões coloniais, como a retirada de humanidade desses povos e, portanto, o surgimento da ideia de que tratam-se de pessoas sem direitos: “São povos que têm direitos a serem respeitados, mas no processo de chegada desses empreendimentos esses direitos se anulam, eles não existem”.
Conforme a pesquisadora, o processo de retirada brusca desses povos diante do surgimento de grandes empreendimentos é semelhante ao que aconteceu na colonização do país. “Era ocupar o espaço, retirá-los e fazer deles mão-de-obra. No caso atual, a expansão desses processos sob essas terras de novo vem com essa lógica colonial de ocupar o espaço, sem utilizar a mão-de-obra, mas os afastando dos locais”, explica.
Para Cindia, é preciso que a sociedade repense o conceito de que somente um determinado modelo de desenvolvimento é o correto e deve ser incentivado. “Não precisamos investir em um modelo agro exportador de commodities. Precisamos entender que temos práticas, aspectos produtivos e formas de comercialização que podem ser incentivadas. Então, temos que avançar em outros processos sociais, seja no pequeno agroextrativismo, como as quebradeiras de coco no Maranhão, seja no aproveitamento de outras formas de produção que já existem e que estão ligadas a uma agroecologia. Não tem como pensarmos em um modelo agroexportador justo da soja, do porto, da estrada de ferro, da circulação decommodities“, pontua.
Leia a entrevista completa
–O que te levou a estudar conflitos socioambientais e temas relacionados a esse assunto?
–Já no mestrado eu me deparei com uma problemática que foi o deslocamento de populações, de grupos, para construção do Parque Nacional de Aparados da Serra. Minha ideia inicial era entender a política de conservação ambiental que estava deslocando aquelas pessoas. Na medida em que eu fui fazer a pesquisa no Parque, eu acabei conhecendo esses grupos e os movimentos aos quais eles estavam ligados e, com isso, acabei de alguma forma me interessando muito, por exemplo, pelo estudo dos territórios quilombolas e pela luta pela titulação da terra. Desde então, eu passei a estudar mais especificamente os territórios negros, os territórios quilombolas e uma série de processos que impediam a sua titulação, como, por exemplo, as políticas conservacionistas ambientais. Na construção do Parque, essas políticas não conseguiam entender que a presença daqueles grupos ali foi o que fez com que houvesse um ambiente a ser preservado e não entendiam que isso é derivado de uma convivência específica desses grupos com os rios, com a floresta.
Depois que eu saí daqui [do Rio Grande do Sul], antes de chegar na federal do Maranhão, eu passei quatro anos no Mato Grosso do Sul. Lá, a expansão da soja sobre os territórios quilombolas foi o meu foco – eu abordo tudo isso na tese de doutorado. O estudo e a relação com as comunidades quilombolas te levam a esses conflitos, porque elas estão vivenciando isso. No caso do Maranhão, eles estão vivenciando há cerca de 50 anos já. É um processo muito forte de desapropriação dessas comunidades.
Então, o meu interesse pelas comunidades que surge no Mestrado com a análise do Parque Nacional de Aparados da Serra, acaba que me leva ao Maranhão para continuar estudando essas comunidades e a me deparar com uma série de empreendimentos que eu já havia tinha ouvido falar, como a Vale do Rio Doce, mas que não imaginava o impacto sobre os territórios. Lá eu começo a estudar duas áreas específicas: a região de Itapecuru Mirim, onde passa a estrada de ferro Carajás e o que se chama de Corredor Carajás, que corta as comunidades e a sua ampliação, e a área portuária de São Luiz, que também atinge as comunidades.
–Como você avalia o cenário atual com o Governo Bolsonaro, que não só executa um desmonte às políticas voltadas para demarcações de terras, mas que também fomenta discursos ofensivos e violentos contra os povos tradicionais?
–É um cenário bastante complicado para essas comunidades. Por um lado, os processos de regularização territorial estão parados, tanto indígenas como quilombolas, o que coloca essas comunidades em uma maior fragilidade frente a empreendimentos. Por outro lado, há a expansão de algumas políticas como, por exemplo, o incentivo à soja e à expansão do Matopiba e das estruturas logísticas de escoamento da soja.
No Maranhão, por exemplo, neste momento você tem a ampliação da Estrada de Ferro Carajás. Então, se a gente pegar o território Quilombola de Santa Rosa dos Pretos, que estaria em fase de titulação, já parou a titulação. Eles não tem a parte de terras que voltaria com essa titulação, eles ocupam 20% do território reivindicado, do território que eles ocuparam no passado. Porém, ao mesmo tempo você tem a previsão da duplicação da BR 135, que é uma rodovia federal, essa duplicação visa o escoamento de commodities, entre eles a soja, e no seu projeto prevê a saída de 345 estabelecimentos desse território. Então, não há o retorno da terra, mas há a supressão de mais uma área e, além disso, houve a consolidação da duplicação da Estrada de Ferro Carajás, que também pegou uma área dessa comunidade.
As estruturas que dão apoio a esse modelo que o governo [Bolsonaro] representa estão sendo executadas sobre esses territórios. Ao mesmo tempo, a titulação desses territórios, o retorno da terra que eles precisam para viver não acontece. Isso os coloca em uma fragilidade muito maior dentro das negociações e nos processos de resistência. Além disso, um outro fator muito complicado que se coloca hoje são os processos de criminalização das lideranças. Temos várias lideranças que são criminalizadas por protestos. Essa incitação do ódio aumenta esses processos de criminalização.
–Cíndia, você mencionou a questão da expansão da soja e de empreendimentos voltados para o escoamento de commodities. Quais outros interesses estão por trás de todos esses conflitos que acontecem hoje nos territórios quilombolas, indígenas e de reforma agrária no país?
–Então, temos também muito fortemente a chegada do capital chinês no país. No litoral maranhense, por exemplo, temos um porto sendo construído que também prevê o deslocamento de diversas comunidades. Este ano, em agosto, teve a derrubada de 21 casas num processo de reintegração de posse. Esse porto, que é privado e que também servirá para escoamento de commodities, é de capital chinês. E aí a gente tem também a entrada do governo estadual nesse processo. Essa empresa, no Brasil representada pela WPR, mas com capital majoritário chinês, conseguiu uma reintegração de posse e 21 casas foram destruídas. Porém, só com essa reintegração de posse, só com essa área de terra, ela não conseguiria construir o porto. Então, o nosso governo estadual emitiu dois decretos estaduais desapropriando áreas para que o porto se concretizasse.
Temos um cenário bastante complicado entre a chegada do capital chinês e a relação com o próprio governo do Estado com um porto que é completamente privado. Também no litoral maranhense a gente tem a projeção de mais um porto na área de Alcântara, numa área chamada Ilha do Cajual. Também será um porto privado com investimento estrangeiro. Em Alcântara existem também a expansão da base de lançamento de foguetes, já tem uma base existente e tem agora uma expansão prevista de um acordo do governo Federal com os Estados Unidos. Essa expansão prevê o deslocamento de 800 famílias que já foram deslocadas no passado e que vivem hoje em uma situação em agrovilas.
Há uma série de interesses chegando de uma forma extremamente rápida que mostra, na verdade, um avanço das políticas neoliberais para o norte e nordeste do país. Tem um autor, o Carlos Porto Gonçalves, um geógrafo brasileiro, que coloca para nós que toda a região da Amazônia passa por essa reestruturação devido ao neoliberalismo e expansão das políticas neoliberais, transformando-se em um grande corredor logístico. Então, existem muitos portos previstos, inclusive na Amazônia, existem estradas, rodovias, ferrovias. A expansão da soja e a exploração de minérios no norte e no nordeste faz com que haja um avanço de infraestruturas e isso não se limita ao Brasil, toda Amazônia internacional passa por essa reestruturação em termos logísticos de ferrovias, hidrelétricas, BRs, rodovias, etc.
–E dentro deste contexto, muitos povos que vivem nesse local são retirados de suas terras devidos a esses empreendimentos todos. Certo?
–Sim. O que o Carlos Porto nos mostra é que o desmatamento na Amazônia ocorre principalmente onde passam as rodovias, porque a rodovia carrega consigo uma série de processos, entre eles as fazendas, que se colocam onde você abre as rodovias. O desmatamento e o fogo também estão muito ligados à abertura das rodovias. O que você tinha antes era um cenário em que as rodovias contornavam a floresta, o que você tem hoje é que elas adentram a floresta, formando mosaicos. Essa expansão logística, seja da estrada de ferro, dos portos ou das rodovias, que são todas interligadas, provocam um processo de entrada nas florestas que não tínhamos antes.
A [Rodovia] Transamazônica já tem um histórico de conflito com os grupos indígenas, mas isso se acentua muito em termos de deslocamento, em termos das queimadas e das chegadas das fazendas junto com outros empreendimentos; se acentua também pelos próprios impactos das construções. Por exemplo, a BR 135, que atravessa o Maranhão e vai até o Porto do Itaqui, em São Luiz, atravessa quinze igarapés só na comunidade de Santa Rosa dos Pretos. Isso dificulta a passagem de água de um lado para o outro da rodovia.
Há também a própria ferrovia em uma das comunidades que a gente estuda que canalizou um dos principais igarapés, que unia vários outros e desaguava no mar. No período de seca, esse igarapé nunca secava, hoje ele seca completamente, ficando meses sem água, o que faz com que essa comunidade não consiga mais, por exemplo, pescar por meses e demande a abertura de poços, o que não precisava antes; acaba tendo que buscar águas subterrâneas. Revela toda uma outra estruturação da própria vida. Mesmo quando não há o deslocamento, esses empreendimentos jogam esses povos para o que a gente chama de uma zona de sacrifício, porque conviver com essas estruturas, seja com o ferro que cai dos vagões em Santa Rosa dos Pretos, seja com a falta da água, e estar no meio desses conflitos ambientais, altera completamente a relação deles com o meio natural.
–E quais são todos os efeitos imediatos e futuros dessa política governamental que incentiva os interesses comerciais acima dos interesses da população e, nesse caso, especificamente dos povos indígenas e quilombolas?
–Para esses povos, para essa região, é uma situação em que vai aumentar o processo de dependência do país e de dependência de outros recursos. A perda da terra e a perda do peixe, do pescado, das roças, coloca esses grupos na condição de migração. O Maranhão, por exemplo, já fornece mão-de-obra para grandes centros, seja para cana ou para a construção civil. A tendência é que você incentive um processo de migração muito maior e de dependência externa.
Acontece uma questão que é: a Amazônia e essa região projetam a ideia de um vazio, de que você não tem populações ali, que você pode criar essas estruturas, que você não precisa regularizar territórios desses grupos e de uma infinidade de recursos. É como se as terras e os recursos naturais, como o ferro, fossem infindáveis. Mas não são, são recursos finitos. Além de jogarem essa população para uma situação de dependência de outros processos, obrigando elas a migrar muitas vezes, também esgotam o meio natural. Quando essas empresas acabam com um mina de ferro, elas deixam um rastro de destruição. Quando elas utilizam a terra massivamente para a pecuária ou para um outro monocultivo, elas esgotam a terra. Então, mesmo que populações que viviam ali voltem para os seus territórios de origem, elas vão voltar sem água, vão voltar com uma terra esgotada. Só que essas pessoas vivem de forma que não depende de tantos insumos, mas sim de uma relação com a natureza ali presente, com o rodízio, com a água que ali tem, com a própria camada de vegetação que permite que o solo se fertilize sem a necessidade de fertilizantes.
Essas alterações na terra colocam essas comunidades na dependência de tecnologias que estão distantes e de tecnologias que, inclusive, prejudicam aquele ambiente. A relação de dependência de outros processos sociais para grupos que têm uma relativa autonomia se agudiza com esse modelo, fazendo com que a gente não consiga mais pensar em modelos de bem viver, como é o modo reivindicado por grupos no Maranhão e pelo movimento chamado Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais. Ali, esses grupos dizem ‘bom, a gente busca o bem viver. Não queremos modelos de desenvolvimento externo, porque já entendemos que esse desenvolvimento é extremamente desigual. A gente quer o bem viver, que são nossos territórios, nossos recursos naturais, nossas próprias formas de comercialização e nossas próprias formas de produção’.
–O quanto a ausência de titulação de territórios para comunidades indígenas e quilombolas afeta também a conservação da cultura desses povos?
–Hoje também na Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais uma das grandes questões é a relação com o que eles chamam de ancestralidade. Isso fica muito visível em alguns povos que fazem as retomadas. Quando você tem a revindicação formal de alguns povos pela regularização territorial, mas os processos estão estagnados, alguns povos têm empreendido retomadas, que é o processo autônomo de volta para esses territórios. Alguns desses grupos entendem a retomada não só como uma retomada da terra física, mas uma retomada de suas práticas culturais que só acontecem naqueles territórios. Coisas que ficam na memória e que não morrem quando eles saem, mas que só se executam completamente quando eles estão naquela terra. Então, a relação com os rios, a relação com as palmeiras, a relação com as fibras que têm nesses locais, a relação com as encantarias.
Uma questão que aparece muito nos nossos trabalhos de campo é que quando alguém termina com um rio, não termina só com a pesca ali, mas termina com a relação dessas comunidades com as encantarias que moram nesses rios e isso enfraquece a própria existência desses grupos. Quando eles pensam na retomada de uma terra, eles pensam também na retomada das relações, de formas de plantio, de usos de fibras para construção de uma série de processos e das relações com esses seres que habitam esses lugares. A retomada tem um aspecto muito amplo para esses grupos, quando eles são impedidos de ir para alguns lugares, quando se coloca uma seca, quando a estrada de ferro termina com um rio, há uma perda da relação deles com aquele lugar.
–Existem dados que mostram que o Brasil é o país que mais mata ativistas de terras e do meio ambiente. Como os conflitos socioambientais em territórios indígenas, quilombolas e de reforma agrária fortalecem esse cenário de assassinato de ativistas?
–Acho que existem dois processos aí. Primeiro, você tem uma falta do Estado a nível nacional em alguns locais. Então, ele se retira diante da expansão de empreendimentos de todos os tipos, o que faz com que não existam estruturas de fiscalização suficientes e nem estruturas de proteção a esses ativistas que denunciam. Nosso sistema de proteção ainda é bastante frágil, o que faz com que você tenha uma zona de atuação que fica meio que no escuro. Temos a morte justamente nesses lugares, onde você tem pouca atuação estatal ou, em outras situações, uma atuação estatal muito ligada aos empreendimentos. Você tem a ausência do Estado e tem empreendimentos atuando e se utilizando de certa forma dessa ausência do Estado. Então, a morte de ativistas é algo corriqueiro nesses locais.
Por outro lado, existem algumas mortes que se dão pela própria prática do Estado ao gerenciar os conflitos. Quando há uma atuação estatal, no gerenciamento também acabam causando mortes. Quando você não tem a presença do Estado, você tem essa face meio obscura que não está presente nem no controle desses processos e muito menos no julgamento desses processos de mortes de ativistas. É um cenário bastante complicado de atuação e de várias pessoas ameaçadas.
–O quanto o cenário enfrentado hoje pelos povos quilombolas e indígenas é resultado do processo de colonização do Brasil?
–Muito! E também do que a gente chama hoje de processos de neocolonialismo como uma recolonização. Por um lado, o que vemos na chegada desses empreendimentos é que, mesmo existindo legislação de titulação das terras e de acordos internacionais, como a Convenção 169, que prevê a consulta prévia a esses povos, nenhuma dessas legislações acaba valendo, porque os empreendimentos se colocam sobre essas terras. Quando eles não ocorrem é justamente porque esses povos colocam seus corpos frente a máquinas. É um enfrentamento físico, é um enfrentamento corporal para que as máquinas não adentrem seus territórios. Então, mesmo existindo licenciamentos ambientais, consultas e audiências públicas desses licenciamentos, o que tem sido feito para que eles consigam garantir alguma coisa, garantir algum direito, é o processo de resistência, uma resistência física.
Por um lado, há a reprodução da ideia de que ali é um lugar vazio de humanidade, o que leva a uma expressão do colonialismo, que é a retirada de humanidade desses povos. Se olha para aquele lugar como um lugar natural de uma natureza onde não tem uma humanidade. Então, essas comunidades precisam se colocar em toda sua capacidade de resistência e aí estão sujeitos a uma série de processos, inclusive físicos. Vemos, muitas vezes, o uso da força policial sobre eles e uma desconstrução completa de direitos.
“São povos que têm direitos a serem respeitados, mas no processo de chegada desses empreendimentos esses direitos se anulam, eles não existem”. Quando se consegue acionar os direitos é mutio depois de eles terem feito esse enfrentamento ou depois que o empreendimento já passou. Então, o que é feito pelos empreendimentos ou pelo Estado é tentar mitigar alguma coisa, achar uma forma de compensá-los. Só que colocamos na balança processos que não são mitigáveis. Essas relações que eles perdem na saída do território não tem mitigação que pague, que repare. É um processo de retirada brusca. E é muito o que acontece com a chegada de uma primeira colonização sobre esses povos, que era ocupar o espaço, retirá-los e fazer deles mão-de-obra. No caso atual, a expansão desses processos sob essas terras de novo vem com essa lógica colonial de ocupar o espaço, sem utilizar a mão-de-obra, mas afastando dos locais.
–O que precisa mudar no Brasil para que o país deixe de viver em um processo ainda remanescente do colonialismo?
–Eu acho que a gente avançou em muitos processos no sentido da organização. Esses povos estão se organizando e, por isso, eclodem tantos conflitos. Mas acho que a gente enquanto sociedade precisa entender que não precisamos de determinados modelos. Acho que isso é muito importante. Não precisamos investir em um modelo agroexportador de commodities. Ainda chegam empreendimentos no Maranhão, por exemplo, com a proposta de criação de empregos, com o discurso de criação de empregos, mas temos uma experiência muito grande para saber que esse tipo de empreendimento que vem a partir de uma ideia desenvolvimentista na verdade retira os povos de suas terras. Os empregos que ele cria, quando cria, colocam essas pessoas em uma lógica de dependência de uma série de recursos e urbanização. Ainda, geralmente os poucos empregos que ele cria são empregos para uma minoria que acessa determinados recursos escolares e que vem muitas vezes, inclusive, de fora do próprio Estado.
Precisamos entender que temos práticas, temos aspectos produtivos e formas de comercialização que podem ser incentivadas sem adentrarmos um modelo agroexportador. Então, temos que avançar em outros processos sociais, seja no pequeno agroextrativismo, como as quebradeiras de coco no Maranhão, seja no aproveitamento de outras formas de produção que já existem, que estão ligadas a uma agroecologia e aos produtos locais. Temos formatos produtivos locais que não podem ser olhados como residuais. Não tem como pensarmos em um modelo agroexportador justo da soja, do porto, da estrada de ferro, da circulação de commodities. A questão não é simplesmente dividir os recursos da extração mineral do ferro, que não é dividido hoje. A questão é saber se a extração mineral é interessante para aquele local, se é isso que aquelas populações que estão ali querem. Temos que entender que o desenvolvimento é um formato de dominação e que existem outras práticas produtivas que podem ser incentivadas.