Por Gisele Barbieri/ Terra de direitos

Proteger as formas próprias de organização e os saberes dos povos e comunidades tradicionais, se configura em um debate necessário nesse momento. O atual cenário confirma o aumento da violência contra essas comunidades, dentre outras ameaças como o avanço do agronegócio e o surgimento de megaprojetos que avançam sobre os seus territórios.

A necessidade de ampliar esforços para enfrentar esses desafios reuniu representantes de povos e comunidades tradicionais de todo o Brasil, em Brasília, entre os dias 7 a 9 de outubro.

Encontro

O 1º Encontrão de Povos e Comunidades Tradicionais foi realizado por povos e comunidades tradicionais do Brasil em parceria com a Terra de Direitos.  Após o Seminário na Câmara, participantes avaliaram os três dias de Encontro e definiram pela realização da segunda edição. Durante esses três dias estiveram presentes representantes de comunidades e povos quilombolas, quebradeiras de coco Babaçu, catadoras de mangaba, retireiras, vazanteiras, pantaneiras, pomeranos, ciganas, faxinalenses, extrativistas, extrativistas costeiras e marinhos, pescadoras, fundo e fecho de pasto, povos de terreiros, andirobeiras, geraizeiras, raizeiras, morroquianos e apanhadoras de flores sempre vivas.

O Encontro encerrou na Câmara dos Deputados, com o Seminário parlamentar “Povos e comunidades tradicionais: fortalecendo identidades e resistências nos territórios”. O Congresso, um espaço sem quase nenhuma representatividade desses povos, têm sido um dos seus algozes com uma agenda pautada por propostas que retiram direitos e criminalizam essas coletividades.

“Esse espaço [Congresso Nacional] é muito importante para nós, principalmente, nesse momento de ataques à democracia e às poucas leis específicas que conseguimos construir. No Brasil, somente em comunidades quilombolas, somos 6 mil comunidades e o governo parece que ainda não conseguiu nos ver”, diz Jhonny Martins, representante da Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). Ele também aponta como os governos contribuem para instalar um “modelo que é fracassado”. “As populações têm práticas agrícolas sem agrotóxicos, de forma sustentável. Mas na contramão, nosso país está expulsando, cada vez mais, as comunidades de seus territórios em nome de um modelo de desenvolvimento que favorece grandes empresas a produzir commodities e agrotóxicos”,
Somente em 2019, o governo brasileiro já liberou mais de 410 registros de agrotóxicos no país, ano em que mais registros foram liberados, segundo os dados do Ministério da Agricultura desde 2005.

O reconhecimento e a preservação de outras formas de organização social desses povos pelo Estado estão previstos na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo decreto 6.040 de 2007. No decreto estão alguns instrumentos de governança de políticas públicas como o Plano Nacional de Fortalecimento das Comunidades Extrativistas e Ribeirinhas (Planafe), vigente desde 2018.
Da restinga sergipana, Alicia Santana Salvador Moraes, representante das catadoras de mangaba, povoado Pontal em Indiarobapontal, Sergipe, também trouxe histórias sobre resistência e perda de direitos.

“A área onde vivemos é muito rica em recursos, por isso, a cada dia que passa essa área é reduzida. Graças ao crescimento da especulação imobiliária, do plantio do eucalipto, condomínios fechados. Essa área garante a sobrevivência de mais de 5 mil famílias que se reconhecem como catadoras de mangaba. Precisamos continuar existindo”, relata Alicia.

Durante o Encontro em Brasilia. Foto Terra de direitos

Vazamento de óleo no Nordeste

A representante das catadoras de mangaba apresentou, também, uma carta denúncia, divulgada por movimentos sociais do estado, sobre o derramamento de óleo que invadiu praias nos estados do Nordeste e que, segundo o Ibama, já atingiu 40 quilômetros do litoral de Sergipe. Alicia relata que as comunidades que habitam o litoral dependem da dinâmica das águas e seus ecossistemas, como restingas e manguezais, “a ausência de informações sobre a apuração de responsabilização e políticas de contingências aos danos causados apontam para omissões e inércia do poder público”, diz trecho do documento.

Os povos e comunidades tradicionais se reúnem periodicamente no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Conselho foi instituído em 2016 e instalado somente em setembro de 2018. No ano de sua instalação, o CNPCT reconhecia 28 segmentos de povos e comunidades. Neste ano, seguindo a lógica do atual governo de esvaziamento dos espaços de participação social, foram retirados 7 segmentos do Conselho, ficando em 21.

A intenção desse primeiro Encontro de povos e comunidades tradicionais, realizado em Brasília, é fortalecer essa Rede tornando-a ainda mais plural, aglutinando outros povos e comunidades tradicionais. Além de pensar ações conjuntas de atuação no enfrentamento à criminalização e violência sofridas dentro e fora dos seus territórios.

“Percebemos uma necessidade desses povos em dizerem quem são, cada um com sua especificidade. Autonomia foi uma palavra utilizada muitas vezes por eles. A busca por autonomia é muito importante, principalmente, nesse contexto de criminalização. É preciso que haja organização e potencialização de suas estratégias de ação para ficarem independentes de governos”, analisa a assessora jurídica da Terra de Direitos Naiara Bittencourt.

“O diferente não é errado, ele só é diferente. E nós, somos diferentes do cigano, do pantaneiro, do apanhador de flores. Mas nós somos errados?  O governo pode nos tirar tudo, mas eles nunca vão tirar nossa dignidade, identidade e maneira de pensar. Não sabem o poder de um povo”, diz Raimundo Konmannanjy, representante da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu – ACBANTU

Frente Parlamentar

Para uma atuação coordenada com parlamentares no Congresso, foi apresentado durante o Seminário, o requerimento para lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos e Comunidades Tradicionais com Participação Popular. Parlamentares como Joênia Wapichana (REDE-RR), uma das únicas representantes dos povos e comunidades tradicionais no Congresso, Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), Erica Kokay (PT-DF) e Aurea Carolina (PSOL-MG) são algumas/uns das/os deputadas/os que já assinaram o requerimento. Para a instalação da Frente são necessárias 171 assinaturas de deputados e senadores. Claudia Sala de Pinho da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira e presidente do CNPCT, avalia que o momento foi de grande importância para a articulação desses representantes. “Esse Encontro foi um marco histórico para nós. Aproveitamos esse momento e lançamos o requerimento da Frente em defesa dos povos e comunidades tradicionais com participação popular, grande avanço político de nossos povos”, pontua a presidente do CNPCT.

Projeto de Lei

Em agosto desse ano, os/as parlamentares Valmir Assunção( PT-BA), Nilto Tatto (PT-SP), Talíria Petrone (PSOL-RJ), Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), Áurea Carolina (PSOL-MG), Érika Kokay (PT-DF) e Joênia Wapichana (REDE-RR) protocolaram o Projeto de Lei – PL 4741/2019 que estabelece diretrizes e objetivos para as políticas públicas de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais. Promovendo também a inclusão social e econômica desses povos.
O PL já recebeu parecer favorável na comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, onde teve como relatora a deputada Benedita da Silva (PT-RJ).

“…contudo, trata-se de honrar a Constituição de forma prática e efetiva, honrando a luta e a resistência histórica desses sujeitos. Na presente circunstância, isto significa defender que mecanismos e normas que garantem seus direitos e promovem seus modos de vida não fiquem limitados ao âmbito de Decretos e da ação (ou omissão) discricionária do Poder Executivo, senão que seja uma expressão do poder instituinte do Estado democrático brasileiro. Daí a necessidade de sua expressão em Lei”,  diz trecho do relatório apresentado pela parlamentar carioca nesse mês.

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