Por Pamela Oliveira/Brasil de Fato
Autora de “O Ponto Zero da Revolução” aponta a cooperação como saída para enfrentar um sistema cada vez mais violento.
O aumento da violência contra as mulheres e a feminização da pobreza ao redor do mundo estão atrelados aos processos de acumulação do atual estágio do capitalismo. Esta é a avaliação de Silvia Federici, historiadora e pesquisadora feminista italiana, que está no Brasil para o lançamento de seu segundo livro em português.
Autora de “O Ponto Zero da Revolução” (2019) e “O Calibã e a Bruxa” (2017), publicados pela Editora Elefante, Federici aponta a existência de uma relação entre a crescente militarização da vida cotidiana, a tentativa de repressão das lutas sociais e o aumento nas taxas de feminicídio.
No Brasil, o número de feminicídios cresceu 20,7% entre 2007 e 2017. Os dados são do Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicadas (Ipea) e publicado este ano, que revelam que mais da metade das mulheres assassinadas são negras, representando 66% de todos os feminicídios em 2017.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Silvia Federici avaliou o atual cenário político brasileiro, com Jair Bolsonaro na presidência. Para ela, a política de privatizações, os cortes em programas sociais e o encarceramento em massa são mecanismos que inviabilizam a vida das populações mais pobres e são usados para sufocar as lutas sociais.
Ainda assim, Federici enxerga na cooperação e na solidariedade estratégias eficazes para “enfrentar um sistema que é cada vez mais violento”. Confira abaixo os melhores momentos da entrevista.
–O Atlas da Violência apontou um aumento no número de feminicídios nos últimos anos no Brasil. O que explicaria esse fenômeno?
–O aumento da violência contra as mulheres é um fenômeno global, mas não afeta todas as mulheres da mesma forma. As mulheres que estão nas favelas ou no campo, ou ainda as que vivem em áreas de mineração e extração petroleira, enfrentam uma violência maior.
Na área urbana, as mulheres saem de suas casas para trabalhar em lugares que as deixam mais vulneráveis. Muitos homens não têm mais o poder econômico que já tiveram, e com isso usam mais violência para buscar os serviços que costumavam acessar de graça.
Há também uma militarização crescente da vida a partir da ampliação da ação dos exércitos, da polícia formal, das empresas de segurança privada, do narcotráfico e dos grupos paramilitares. É um número sempre crescente de pessoas, sendo em sua maioria homens, que trabalham em atividades que se utilizam de armas e aprendem a agir como se estivessem em guerra. E isso possui uma relação direta na forma que esses homens se comportam em suas comunidades com as mulheres.
Pessoas que trabalham o dia todo com armas, quando voltam para casa não se convertem em homens pacíficos. São aqueles que agridem, que matam a esposa, a namorada ou outra mulher que encontram.
–Isso tem alguma relação com o protagonismo das mulheres nas diferentes frentes de luta?
–A mulher é, cada vez mais, protagonista das lutas e não aceita ser submetida. E isso também gera impacto. Os homens estão perdendo o poder que um dia tiveram, principalmente com a atual fase da política neoliberal, ao mesmo tempo em que as mulheres estão em uma posição de maior protagonismo.
Então se investe na militarização da vida para sufocar as lutas e tudo isso cria uma situação única. Aproveito para me referir a uma grande escritora, ativista e socióloga que é a Rita Segato. Ela diz: matar as mulheres é a medida mais rápida, mais eficaz para destruir a resistência de qualquer comunidade contra a expropriação, contra a privatização. Isso porque são as mulheres que mantém as comunidades juntas. As mulheres representam a vida, a reprodução da vida, e matá-las manda uma mensagem de terror, de medo à comunidade.
Ela [Rita Segato] fala sobre a “pedagogia da crueldade”, na qual a matança de mulheres funciona como uma lição a toda comunidade. Ou seja, “não vai resistir porque vocês enfrentam homens, pessoas que não têm limites”.
Eu acredito que não se combate a violência contra as mulheres somente com autodefesa, mas exatamente a partir da criação e construção de um tecido social mais cooperativo, rompendo com os muros que nos dividem. Necessitamos nos conhecer, juntar nossas vidas, porque enfrentamos um sistema que é estruturalmente cada vez mais violento.
–O assassinato de Marielle Franco vem nessa perspectiva?
O assassinato de Marielle Franco faz parte de uma grande guerra contra as mulheres, sobretudo contra as mulheres como Marielle, que estão na linha de frente da luta contra a injustiça social, a desigualdade e a repressão policial e militar da vida, que é o que se usa para parar as lutas.
As mulheres estão na linha de frente das lutas, são lideranças em movimentos rurais e urbanos. Além disso, elas são os sujeitos primários da reprodução social, quem se preocupa se vai dar veneno ou alimento nutritivo a sua família.
É importante que os movimentos sociais, e principalmente os movimentos feministas, digam que a voz de Marielle segue sendo nossa voz. E vamos continuar pelo que ela buscou, lutou e conquistou. Este é um compromisso que deve ser de todos nós.
–Ao mesmo tempo em que há um ascenso das lutas feministas, vemos as tentativas de imposição de retrocessos nos direitos das mulheres e direitos reprodutivos.
–Eu acredito que o capitalismo, cada vez mais, tenta invadir nossas vidas. O capitalismo busca utilizar as mulheres e depende de suas vidas, do nosso trabalho para reproduzir os demais trabalhadores e para construir [a sociedade]. As duas coisas andam juntas. O moralismo nos mostra o quanto é importante a exploração da reprodução, da sexualidade, do trabalho das mulheres para a perpetuação da sociedade capitalista, para a construção das desigualdades.
A diferença de hoje é que não nos usam somente dentro de casa, como mães e reprodutoras, mas querem nos usar em tudo. Nós, hoje, trabalhamos em todos os lugares, porque eles compreenderam que as mulheres são, em primeiro lugar, o trabalho mais barato, porque temos uma tradição de trabalhar sem receber dinheiro, e em segundo lugar, que temos mais responsabilidade, porque somos as mais envolvidas na reprodução da nossa comunidade. Somos mães e irmãs, o que nos torna mais responsáveis do que os homens, e eles compreenderam isso.
A nova geração de mulheres enxerga as perspectivas de sua vida, as opções que tem, e já não possui mais as ilusões das feministas de gerações anteriores, de que o trabalho fora de casa é um caminho que torna tudo mais fácil. Eu creio que a injustiça desse sistema se faz cada vez mais visível para elas.
–Em “O Ponto Zero da Revolução”, uma das questões abordadas é a criação da guerra como maneira de acumular capital. Como podemos analisar essa questão no Brasil?
–O Brasil é um país que possui enormes riquezas. É um dos países mais ricos do mundo. Por causa disso é sempre mais difícil convencer a maior parte da população de que sua pobreza é algo natural, é sempre mais difícil sufocar as lutas. É por isso que há uma especificidade no Brasil e em todos os lugares que possuem uma grande quantidade de recursos naturais.
Um desses exemplos é a África. Como nos ensinou Winston Churchill, que dizia que a “África é um escândalo”. É um país tão rico com os minerais mais importantes, e apesar disso é o continente mais empobrecido e explorado. Quanto mais recursos naturais um lugar tem, quanto maior a riqueza natural e populacional, mais explorado e reprimido.
Por isso ocorrem assassinatos, repressões e a vitimização de mulheres como Marielle Franco e outras ativistas. Nos Estados Unidos temos dois milhões de jovens encarcerados, em sua maioria negros, latinos, imigrantes. Essa é outra forma de repressão, porque dão penas muito altas para crimes que são econômicos – como vender um pouco de maconha – a uma população que foi privada de acesso à riqueza produzida.
–A partir dessa perspectiva do encarceramento, o atual Ministro da Justiça, Sergio Moro, busca aprovar o “pacote anticrime”, largamente criticado por movimentos populares pelo “plea bargain”, no qual o acusado aceite se declarar culpado. Como você avalia essa política?
–Isso existe nos Estados Unidos e também estão introduzindo na Europa. Negociar significa que você se declara culpado, mesmo que não seja. E esse tem sido o mecanismo utilizado pelos EUA para criar o encarceramento em massa. Encarceram para destruírem a possibilidade de resistência, para destruir todos os movimentos por reivindicações. E os que são encarcerados são descendentes de toda uma população que foi escravizada, tornando o encarceramento a continuação da escravização.
Essa medida tem sido usada para tentar aprisionar a revolução e a luta por mudanças sociais. E é a mesma coisa aqui no Brasil. Sem essas medidas, fica difícil evitar uma mudança social e as lutas contra a desigualdade, exploração e a migração.
–Além disso, neste governo observamos a diminuição do investimento público em políticas sociais, principalmente referente à educação básica, bem-estar, previdência e saúde. Como isso afeta a vida das mulheres brasileiras?
–O feminismo criado pela ONU, que eu defino como “feminismo de Estado”, institucional, tem celebrado o progresso e a emancipação das mulheres, pelo fato delas possuírem dois trabalhos. Na realidade, temos visto um empobrecimento imenso.
Pouco a pouco, com as mulheres buscando trabalho fora de casa, o Estado neoliberal passou a cortar todos os subsídios à reprodução. Não somente no Brasil, como em nível internacional. Um sistema social te empobrece continuamente, que corta [os programa sociais] depois de ter monopolizado a riqueza, sem que te permita sobreviver. Não te dão habitação e os salários são miseráveis, enquanto continuam aumentando o custo da vida.
Enfrentamos isso em diferentes formas, sendo alguns casos mais intenso por algumas populações. Os que foram historicamente escravizados e mais explorados vivem isso de forma mais intensa, porque essa superexploração ainda permanece. Mas é uma exploração e um empobrecimento que afeta a todos, todos aqueles que não são os capitalistas, que não têm um interesse direto em perpetuar esse sistema.
–Por falar em pobreza, já vemos que o Brasil está retornando ao Mapa da Fome e que mais pessoas têm dificuldade em pagar sua renda ou comprar gás. Como isso está relacionado à privatização dos recursos naturais e à capitalização da agricultura, com seu discurso de modernização?
–Modernização é uma palavra que parece positiva, não? A modernização tem justificado a mudança da agricultura e da sociedade capitalista. Tem justificado a separação, a privatização da terra, o uso de um modelo de cultivo e de uma agricultura industrializada, que utiliza substâncias químicas que causam uma epidemia de câncer.
Que modernização é essa? É uma modernização que, na realidade, é contrária à vida. E nos dizem que é necessária para dar de comer a todas e a todos. Na verdade, a fome tem aumentado desde a “revolução verde”, que ocorreu em muitos países a partir dos anos de 1950. Estão nos matando, envenenando a vida. Esse é um dos exemplos mais contundentes: quando você vai comprar comida, você não sabe se aquilo vai te matar ou vai te nutrir.
Eu acredito nas lutas que estão acontecendo, que é encabeçada principalmente pelas mulheres, pelo controle da terra, contra a mineração, contra a extração petroleira, que está envenenando a terra, envenenando o cultivo e a água, contra o agronegócio e contra a monocultura e contra toda a porcaria que estão usando na comida. Acredito que esta é uma das lutas mais importantes que existem no mundo, porque é a que decide sobre a vida ou a morte.
–As lutas das mulheres do MST, juntamente com as lutas das mulheres indígenas, estão muito próximas do que elas falam sobre defender a reprodução da vida, alimentação, natureza. Gostaria que você comentasse o que essas lutas pelo capitalismo mundial representam. Este é o “ponto zero”?
–Eu tenho usado o “Ponto Zero” para falar de um ponto de partida de onde não se tem nada, no qual te privaram de tudo, que é a situação de milhões de pessoas, sobretudo das mulheres. O “Ponto Zero” é o ponto de perda, mas também de reconstrução. Algumas das coisas mais revolucionárias e importantes que eu tenho visto tem sido em comunidades que foram completamente expropriadas. Por exemplo, nas periferias, onde pessoas expropriadas da zona rural têm criado uma nova forma de vida, construindo casinhas, ruas através do trabalho coletivo, ao unirem suas vidas e irem além do individualismo e do isolamento.
Acredito que as mulheres vivem o “Ponto Zero” e lutam no “Ponto Zero”, porque hoje estamos nos dando conta e retomando nossas vidas em nossas mãos. Começamos a confiar, sobretudo, na solidariedade, na cooperação, no que podemos fazer ao nos juntar, ao lutarmos juntas. E não somente protestando, mas criando formas de reprodução cooperativas, como os restaurantes populares, as hortas urbanas. Eu creio que este é o caminho para fazer com que o “Ponto Zero” seja o ponto da reconstrução, o ponto da transformação social. Não somente de uma resistência, mas da construção de uma nova relação entre nós e de uma nova sociedade.
–A partir dessa perspectiva e das novas relações de trabalho, com trabalhos intermitentes e terceirizados. Qual sua avaliação sobre a reorganização da classe trabalhadora?
Penso que o mais importante é criar uma coordenação entre as lutas. Me preocupa hoje que muitos jovens não têm uma visão de longa duração. Acredito que articular um programa que seja capaz de ir além do presente, que se enraíze no presente, mas que também seja capaz de subverter as divisões.
Qualquer luta, qualquer programa, qualquer reivindicação deve ser uma coisa que vai beneficiar a todos, que vai subverter. Porque eu vejo que as divisões – o racismo, o sexismo – todas essas divisões que continuam a ser construídas, são um dos maiores obstáculos. Uma luta de grande duração deve ser uma luta que se propõe a transformar a sociedade. Que não somente resiste, mas que tenha um aspecto construtivo.