O acordo, que não entrará em vigor antes de ao menos dois anos, deverá primeiro ser convertido em um verdadeiro texto jurídico
Qualificado como “desequilibrado” pelo principal sindicato alemão, “um engano” por seu homólogo francês e de “vergonhoso” para os agricultores irlandeses, o acordo comercial alcançado entre a União Europeia (UE) e o Mercosul navega com rumo incerto.
A ratificação do pacto, que contou com a aprovação de dirigente de ambas formações no final de junho, depois de duas décadas de negociações, inclui os 28 países da UE e os quatro do Mercado Comum do Sul (Mercosul): Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
O acordo, que não entrará em vigor antes de dois anos, primeiro terá que ser convertido em um verdadeiro texto jurídico antes de ser submetido à aprovação dos Estados membros no Conselho da EU, a instituição que os representa.
A partir desse momento, a chefia do bloco comunitário poderá firmá-lo de maneira oficial, enquanto espera a votação no Parlamento Europeu que permitirá sua entrada em vigor provisória.
Depois disso, cada Estado membro terá que aprová-lo, o que implica que passará pelo estreito filtro dos parlamentos nacionais.
Entre aplausos e obstáculos
O polêmico documento já está enfrentando o rechaço de um número considerável de agricultores, pecuaristas e ecologistas do Velho Continente, que ameaçaram boicotar sua aprovação em todas as instâncias comunitárias.
O texto ainda não se fez público, mas os detalhes difundidos, especialmente ao que se refere às quotas agrícolas oferecidas aos países do Mercosul, desataram a cólera dos agricultores europeus.
O principal sindicato agrícola da UE, Copa-Cogeca, o qualificou de “política comercial de duas medidas” e sublinhou que o acordo aumentará “a brecha entre as normas exigidas aos agricultores europeus” e “o que se tolera dos produtores do Mercosul” que exportarão ao bloco comunitário.
Os agricultores do Velho Continente já contam com o respaldo de eurodeputados que representam partidos das mais diversas cores políticas, o que pressagia uma longa batalha sobre o texto no Parlamento Europeu e, posteriormente, ante os Governos da UE.
A UE e o Mercosul começaram a negociar um tratado de livre comércio no ano 2000 e as conversações passaram por várias fases nesse período, chegando inclusive a estar paralisadas.
Ambas as partes acordaram em 2016 relançar negociações nas quais o capítulo agrícola foi o grande obstáculo, especialmente as exportações de carne bovina do Mercosul para o bloco comunitário.
Espanha, Alemanha, Portugal e Países Baixos foram alguns dos países da União Europeia que mais impulsionaram este acordo, que contou com as reservas da França, Bélgica, Irlanda e Polônia.
A Comissão Europeia, encarregada de negociar em nome dos países membros do bloco comunitário, qualificou de vitória “histórica” o acordo aprovado, depois de 20 anos de difíceis e ásperos debates.
Para o presidente do Observatório Político da América Latina e do Caribe, do Instituto de Ciências Políticas (Sciences Po) de Paris, Olivier Dabene, o acordo “é um gesto político muito forte” a favor do “multilateralismo diante da atitude dos Estados Unidos”.
Disse que se os Estados membros o validarem, o convênio se somará aos que firmou recentemente a UE com o Canadá e o Japão, considerados uma resposta ao presidente estadunidense, Donald Trump, cuja política protecionista desestabiliza o comércio mundial.
Apesar do entusiasmo que mostravam nos últimos tempos as delegações latino-americanas, o pacto comercial com o Mercosul parecia longe de ser uma realidade. Mas os negociadores souberam “aproveitar um alinhamento dos planetas que não era visto em 20 anos”, sublinhou Dabene.
Livre comércio versus meio ambiente
Os dardos, no entanto, continuam. “O livre comércio está na origem de todos os problemas ecológicos”, denunciou o ex-ministro francês de Transição Ecológica e Solidária, Nicolas Hulot, em uma entrevista ao diário Le Monde.
A organização ecologista Greenpeace considerou o pacto um desastre e sentenciou que ele levará à “destruição do meio ambiente”.
A especialista em comércio do grupo ambientalista, Naomi Ages, pediu à UE “deixar de realizar acordos comerciais que beneficiam as grandes empresas que cobiçam oportunidades de exportação”, assim como “não fechar os olhos diante do dano social e ambiental que causam”.
A fase final das negociações do acordo comercial gerou uma posição diferente entre dois blocos de países, aqueles com um grande setor agrícola e que mostraram mais cautela na negociação e outros mais orientados à exportação.
Greenpeace comentou que nações como a Alemanha, com seu forte setor automobilístico, esperam o acordo comercial para exportar veículos e peças, enquanto outros com um potente setor agrícola, liderados pela França, temem que seus agricultores se vejam ameaçados por importações com padrões de produção mais baixos que os europeus.
O Executivo francês deixou claro que não se apressará em ratificar o acordo comercial antes de olhá-lo detalhadamente, segundo a porta-voz oficial do governo, Sibeth Ndiaye.
Para o diretor do Centro de Especialistas em Economia Internacional, Sébastien Jean, a posição do governo francês “tem lógica, já que este acordo pode ter consequências significativas sobre a agricultura europeia e o meio ambiente no nível global”.
Bolsonaro na ribalta
Os ataques ao acordo se intensificaram por causa dos grandes incêndios na Amazônia e o desinteresse público mostrado pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, para enfrentar a tragédia. Por isso se converteu na carta na manga que a UE está disposta a esgrimir em troca de melhores medidas relativas ao meio ambiente.
O Governo de Luxemburgo declinou apoiar o tratado, se o Brasil não começar a cumprir as obrigações climáticas do acordo, segundo disseram fontes diplomáticas.
Seu ministro de Assuntos Exteriores, Jean Asselborn, advertiu recentemente que “diante a uma desflorestação da Amazônia que causa incêndios dramáticos” em seu país “espero que os sócios do Mercosul respeitem, inclusive antes da conclusão do acordo negociado, os compromissos do Acordo de Pais”.
O ministro alemão de Relações Exteriores, Heiko Maas, sugeriu também que o acordo de livre comércio entre ambos os blocos regionais pode ser afetado com os devastadores incêndios na região amazônica.
No marco de reunião do G7 em Biarritz, França, Maas deixou claro “que a política ambiental e do clima têm uma importância chave para a valorização do acordo entre a UE e o Mercosul”.
Mais de 340 organizações não governamentais defensoras do meio ambiente criticaram a política do presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, e pediram à UE que interrompesse as negociações.
Olivier Dabene reconheceu que a política do líder da extrema direita brasileira “é uma catástrofe”, mas agregou que “entre dois males elegemos o menor”, que é manter o Brasil dentro do Acordo de Paris sobre Mudança Climática, o que é uma exigência do acordo.
Sobre o tema, o eurodeputado socialista húngaro, István Ujhelyi, disse que há que “manter sob pressão os representantes do idiotismo político em posições de lideranças”, em clara referência a Bolsonaro.
“Não podemos firmar isto, não podemos aprovar isso até que o Brasil dê garantias de deter esse desflorestamento que vai contra toda a humanidade”, apontou.
A porta-voz da Comissão Europeia, Mina Andreeva, afirmou que diante de tal situação, “a melhor ferramenta que temos é o acordo UE-Mercosul, que por primeira vez ata o Brasil ao Acordo de Paris”.
Além de seus possíveis defensores – que não são poucos – é evidente que o acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul converteu-se na maçã da discórdia de ambos os lados do Atlântico, motivo pelo qual se espera um longo e, sobretudo, empedrado caminho por percorrer.