Ataque de supremacistas brancos na Nova Zelândia vitimou 51 muçulmanos. Primeira-ministra iniciou ação internacional contra ódio e extremismo na rede. Mas seu caminho — articular-se com governos e corporações — terá futuro?
A primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, esteve em Paris em 15 de maio à frente de uma reunião com líderes mundiais e executivos das gigantes de tecnologia, pela primeira vez sentados à mesma mesa. Estavam ali em resposta ao Apelo de Christchurch, da mais jovem mandatária global, para erradicar conteúdos de violência extremista e terrorista online.
A reunião, aparentemente, foi um sucesso. O Apelo foi assinado por um grupo sem precedentes de plataformas de mídia social – Amazon, Facebook, Google, Microsoft, Twitter e Youtube, Dailymotion e Qwant – e 17 líderes mundiais: da França, Nova Zelândia, Canadá, Reino Unido, Alemanha, Itália, Holanda, Espanha, Suécia, Noruega, Irlanda, Austrália, Japão, Índia, Indonésia, Jordânia e Senegal, além da Comissão Europeia.
Contudo, não se pode esperar que tenha resultados imediatos. É um acordo não-vinculante, sem medidas que devem ser aplicadas ou qualquer regulamentação, cabendo a cada país e empresa decidir como honrar seu compromisso. A definição de conteúdo de violência extremista também não foi incluída, ficando a critério de cada empresa decidir o que constitui material censurável.
O plano de ação de Jacinda Ardern pede às nações signatárias a criação de leis que proíbam material ofensivo e estabeleçam diretrizes sobre como a mídia tradicional deve denunciar atos de terrorismo. Ela disse orgulhar-se da mídia neozelandesa, que numa ação sem precedentes decidiu limitar as reportagens sobre o julgamento do homem acusado dos ataques de 15 de março. Às empresas pede que combatam as raízes do extremismo, criem ferramentas para evitaruploads, aumentem a transparência, revejam algoritmos. Jacinda disse não descartar a possibilidade de alterar a legislação para bloquear o Facebook, se continuar a ser usado para compartilhar conteúdo extremista.
Ataque foi transmitido ao vivo pela internet
Há exatos dois meses, em 15 de março de 2019, terroristas invadiram duas mesquitas da cidade neozelandesa de Christchurch e fuzilaram homens, mulheres e crianças da comunidade muçulmana, absortos em oração. O ataque, projetado para transmissão na internet, foi transmitido e teve alcance impressionante: a imagem original foi vista 4 mil vezes antes de ser removida pelo Facebook; tinha link para o “manifesto” supremacista branco; espalhou-se para o YouTube ao ritmo de um upload por segundo nas primeiras 24 horas; 1,5 milhão de cópias foram retiradas do Facebook; mas o vídeo persiste, apesar dos esforços realizados até o momento para removê-lo.
A exposição à violência das imagens, muitas vezes involuntária, levou milhares de neozelandeses a ligar para a linha pública de apoio à saúde mental para falar de seu sofrimento. Dois meses depois, ainda há informes sobre mulheres que ficaram com medo de sair de casa.
Dado o poder global das gigantes de tecnologia – cuja função é de publisher e não de correio, como ela ressaltou durante preparativos para a reunião de cúpula – só juntos podemos combater o uso das mídias sociais para insuflar o ódio, disse Jacinda.
“Online, nós, governos, podemos escolher a regulamentação como ferramenta para resolver esse problema. Mas precisamos reconhecer que a regulamentação, por si só, não irá resolvê-lo. Precisamos trabalhar coletivamente – com as empresas de tecnologia, com a sociedade civil – para fazer uma mudança significativa. E ali onde regularmos, essa regulamentação não devem tornar-se barreira para uma Internet livre, aberta e interativa. Devemos manter e apoiar uma internet que funcione para o bem.”
A primeira-ministra foi específica: quer estar certa de que os esforços de todas as nações ali representadas são por uma Internet livre, aberta e segura, e que as expressões de liberdade do discurso conviverão em harmonia com o trabalho que estão tentando fazer contra a violência e o terrorismo.
Estados Unidos não assinaram
Os Estados Unidos declararam apoio aos objetivos gerais do acordo, mas não enviaram ninguém à cúpula e nem o assinaram. A primeira-ministra não escondeu seu estranhamento.
“A Austrália viveu um massacre e mudou suas leis. A Nova Zelândia teve sua experiência e mudou suas leis. Honestamente, não entendo os Estados Unidos”, disse, referindo-se ao fato do país ainda não ter proibido armas automáticas e semi-automáticas apesar das dezenas de assassinatos em massa. “Continuaremos a encorajar o governo dos EUA a apoiar esse acordo de diversas maneiras. Isso é um começo de conversa, não o final”, falou no encerramento do encontro.
Seis dias após os atentados, a Nova Zelândia anunciou que proibiria todos os armamentos estilo militar (MSSA) e fuzis de assalto. Peças usadas para converter essas armas em MSSAs também foram proibidas, assim como revistas sobre o assunto. Nas semanas que se seguiram ao tiroteio em Christchurch, antes do lançamento de um programa oficial de recompra pelo governo, centenas de neozelandeses entregaram voluntariamente suas armas à polícia.
O governo nomeou uma comissão para investigar os ataques. Ela examina as atividades do suspeito, seu uso de mídias sociais e conexões internacionais, e revê a prioridade de recursos contra o terrorismo. Seus resultados serão entregues em 10 de dezembro.
“As conclusões da comissão ajudarão a garantir que tal ataque nunca aconteça aqui novamente”, disse Ardern. “Sabemos que não podemos mudar o mundo por conta própria. Mas sabemos que podemos – e devemos – fazer a diferença nessa questão. Hoje deve ser um dia de mudança.”
O espírito do povo originário
Como no memorial aos mortos celebrado duas semanas depois do atentado, Jacinda Ardern abriu a cúpula na língua e no espírito dos Maori, povo originário do país, vencido em guerra pela Grã Bretanha e colonizado entre 1840 e 1907.
Numa rara combinação de reverente afetividade e propostas objetivas, qualidades com que impactou o mundo por ocasião do atentado a muçulmanos de seu país, antes de falar a primeira-ministra apresentou as maoris Zia e Sheryl de Ngati Ranana, que recepcionaram os presentes. “O som da concha para nos chamar a atenção, um canto para cumprimentá-los e um apelo ou karanga para reconhecer aqueles que passaram, aqueles de nós que permanecem, e a razão por que estamos aqui”, explicou.
Só então falou: “Estou diante de vocês tendo em mente o peso das 51 vidas perdidas na Nova Zelândia. Sei que muitos – muitos de vocês – têm em mente a própria experiência doméstica de terrorismo.”