Por Felipe Honorato.


Gostaria de iniciar este artigo fazendo algumas perguntas ao leitor. O que seus professores ou seus livros didáticos te ensinaram sobre a abolição da escravatura no Brasil? Que foi um ato da Princesa Isabel ou um conjunto de fatores que vão da luta e resistência dos escravos até a pressão internacional da Inglaterra? Fora lhe ensinado algo, durante sua educação formal, sobre João Cândido, Abdias Nascimento, Dandara dos Palmares, o Teatro Experimental Negro, a Revolta dos Malês ou algum outro personagem ou organização simbólica da luta social negra brasileira que não seja Zumbi dos Palmares?

Aposto que à maioria de vocês que estão lendo este texto, a resposta para a primeira pergunta foi “que fora um ato da Princesa Isabel”, e, para a segunda pergunta, foi “não”. Nada disto é por acaso.

Até meados do século XIX, África e Europa eram pares e suas nações disputavam, em pé de igualdade, espaço no xadrez das relações internacionais e diplomacia. Peguemos, para ilustrar tal situação, o exemplo do Reino do Kongo.

O mais poderoso dentre todos os reinos que surgiram na África Central, o Kongo teve seu primeiro contato com a Europa quando o português Diogo Cão alcançou, no século XV, M`banza Kongo, capital do reino. Havia interesse muito forte, por parte dos portugueses, em encontrar mineirais e em quebrar o monopólio real kongolês sobre o comércio de escravos negociados naquela região. Ocorreu, em 1622, uma grande tentativa de invasão portuguesa do Reino do Kongo, derrotada pelos africanos. Após isto, nenhuma outra tentiva de invasão militar ou anexação ao Reino Português do Kongo fora feita, mas sim o uso de muitas estratégias duradouras que buscaram aproximar o reino centro-africano do reino ibérico ou enfraquecê-lo: a nobreza kongolesa foi incutida de costumes lusos, afro-portugueses fizeram, em São Tomé, uma poderosa base de tráfico escravo, Portugal estabeleceu uma sólida colônia em Luanda. O Reino do Kongo ruiu cerca de dois séculos após Diogo Cão adentrar a bacia do rio Nzadi (atual rio Congo).

Entre o fim do século XVIII e o início do XIX houve uma importante mudança de paradigma no continente europeu. Aconteceram por lá, dois ciclos de aceleradas evoluções tecnológicas que modificaram significativamente os meios de produção e influenciaram, de forma profunda, a sociedade.

A primeira e a segunda revoluções industriais introduziram, cronologicamente, as máquinas movidas a vapor, eletricidade e combustão, acelerando os meios de transporte e comunicação, além de terem aumentado muito a capacidade produtiva do homem, tornando possível, por exemplo, a aplicação de técnicas como a produção em linha.

Com uma capacidade de produção aumentada, uma necessidade maior de matérias-primas e meios de transporte mais ágeis, as potências européias se viram ante a obrigação de procurarem mais consumidores e materiais para seus produtos. Neste momento da história, século XIX, percebeu-se que a escravidão não compensava mais, pois seu custo, no fim das contas, era maior do que garantir ao negro americano a liberdade, uma cidadania de segunda classe e míseros salários, que o permitissem consumir o mínimo. Aqui, por exemplo, está o cerne de todo o esforço inglês para pregar o fim da escravidão mundo afora, assim como espalhar ideiais abolicionistas pelo globo, fazendo com que uma parte da elite mundial, que muito havia se beneficiado da escravidão negra, passasse a ver a abolição com bons olhos e, inclusive, a defendesse – Joaquim Nabuco, que nasceu em uma família ligada a cultura canavieira pernambucana, mas se notabilizou, dentre outros motivos, pela defesa da abolição, pode ser dado como um bom exemplo disso. Até então, o conceito de distinção racial estava baseado em teorias teológicas e a escravidão comandada por europeus em suas colônias americanas era cromatizada – só virava escravo quem era negro.

Com o cenário descrito anteriormente, fez-se necessário que uma nova premissa fosse criada para orientar as relações estatais entre Europa e África e a apropriação dos recursos naturais e mercados consumidores africanos por parte dos europeus ocidentais, tão almejada em vista da avidez que as revoluções industrais trouxeram, fosse justificada.

Neste ponto, vou recorrer à obra “ Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação”, trabalho de Mary Louise Pratt que se tornou essencial para todos que pesquisam ou se interessam pelo colonialismo, pois explica como o pensamento científico forneceu os alicerces para que o imperialismo capitalista colonial atuasse.

Em 1735, Carl Linné, que ficou conhecido através da versão latina de seu nome, Linnaeus (Lineu, em português), publicou “O Sistema da Natureza”, onde introduziu um sistema classificatório da flora a partir de suas partes reprodutivas, usando como língua corrente o latim. Assim, segundo Pratt, “todas as plantas da Terra […] poderiam ser inseridas neste simples sistema de distinções, incluindo aquelas ainda desconhecidas pelos europeus”. Muitos discípulos de Lineu apareceram, viajando aos quatro cantos do mundo afim de catalogarem as mais diferentes espécies de plantas.

Ao mesmo tempo que a criação do sueco, de forma benéfica, trouxe uma popularização da ciência, originou também outros dois resultados não tão apreciáveis assim: Em primeiro lugar, o sistema classificatório tem um caráter totalizador, pois, sem que esta fosse a intenção do cientista, homogeinizou todas as plantas, lhes atribuindo uma nomenclatura comum, apagando, desta forma, toda uma contextualização que elas tinham tanto na sociedade, quanto no ecossistema nos quais estavam inseridas, bem como forneceu, ao europeu ocidental, o controle da informação, e, consequentemente, da retórica sobre ela; em segundo lugar, permitiu que o interesse privado se aproximasse do sueco e seus seguidores, uma vez que Lineu e seus discípulos, para viajarem a terras longínquas a catalogar plantas, pegavam “carona” em navios de grandes companhias comerciais e também usavam a estrutura das mesmas – a Companhia Sueca da Índia Oriental se destacou neste quesito.

Lineu, então, avançou na criação de um sistema classificatório para os animais, onde identificou o Homo Sapiens, que, posteriormente, foi subclassificado em outras seis categorias. Assim era a classificação do europeu: claro, sanguíneo, musculoso; cabelo louro, castanho, ondulado; olhos azuis, delicado, perspicaz, inventivo; coberto por vestes justas; governado por leis. Já o africano, era descrito da seguinte forma: negro, fleumático, relaxado; cabelos negros, crespos; pele acetinada; nariz achatado, lábios túmidos; engenhoso, indolente, negligente; unta-se com gordura; governado pelo capricho.  

Este sistema classificatório serviu como base para o que Mary Louise Pratt chamou de “mito da superioridade européia”, justificativa para dominação e exploração do continente africano por parte das potências coloniais. Este mito da superioridade se difundiu de tal forma que, até hoje, se faz presente nas mais distintas sociedades, alimentando um interminável preconceito, não só contra o negro, definido na classificação como o africano padrão, mas também contra o árabe, figura majoritária no Magreb – a questão oriental e o orientalismo dividiram, concomitantemente à partilha da África, a atenção das metrópoles euroéias.

A tentativa argentina de embranquecimento de sua população (“bem sucedida”) e a brasileira (que não saiu como nossos governantes queriam), assim como a segregação estadunidense, por exemplo, tem todos como núcleo o pensamento cinetífico da superioridade racial, a nome da qual, um outro campo científico fora criado – a antropologia, que, por muito tempo foi intimamente ligada à biologia e vista como a ciência do colonizador.

O racismo, nestas outras sociedades não-africanas, mas que sorveu da mentalidade colonial, tinha a seu serviço a supressão de direitos e a violência. Não ocorre violência somente quando as forças de segurança do Estado reprimem de forma bruta uma manifestação; ela pode ser simbólica e uma das formas de violência simbólica que até os dias atuais é utilizada nestes contextos de profunda inequidade racial é a invisibilidade.

Como defendi bem no início deste texto, a ausência do negro brasileiro nos livros de história não é eventualidade, faz parte do racismo nacional. Desta mesma forma, uma fabricante de papel higiênico pegar uma expressão surgida no seio de um dos movimentos que foram mais representativos dentro da luta negra pela extensão de sua cidadania para promover um de seus produtos, configura-se como uma forma fortíssima de violência, pois não só reforça a invisibilidade, mas também banaliza um símbolo muito significativo da história negra.

A expressão Black is Beautiful foi criada no bojo do movimento pelos direitos civis estadunidense. Este movimento foi uma luta que, podemos dizer, teve seu embrião nos abolicionistas afro-americanos, como Frederick Douglass e Harriet Tubman, e também no pan-africanismo e nas organizações de defesa do negro que os pan-africanistas estadunidenses fundaram –  Marcus Garvey, Du Bois e a Associação Nacional para as Pessoas de Cor (NAACP) são expoentes desta corrente intelectual, que tinha, como elemento de coesão, a raça e se alastrou pelas colônias e ex-colônias britânicas, tendo os Estados Unidos como um dos seus grandes núcleos. O movimento pelos direitos civis brigava para que, de forma geral, os negros estadunidenses podessem gozar de fato dos chamados direitos de segunda geração (políticos e sociais), já que estes eram garantidos pela constituição, mas muitos estados, principalmente sulistas, a partir de legislações regionais, os impediam de exercê-los, além do fim do racismo, fosse ele institucionalizado ou não. Apesar de remontar, no mínimo, até o início do século XX, o movimento viveu seu ápice entre as décadas de 1950 e 1960. Isto por que, neste período, atuaram as lideranças e organizações mais simbólicas deste movimento – Malcolm X, ativista social do Harlem ligado a Nação do Islã que, durante a maior parte de seu ativismo, defendeu a separação das raças; Martin Luther King Jr., lider religioso batista sulista que defendia táticas pacifista de resistência; Partido dos Panteras Negras, organização nascida na Califórnia de defesa e amparo social da comunidade afro-americana –, bem como ocorreram seus eventos mais marcantes: na década de 1950, Rosa Parks se recusou a ceder seu assento em um ônibus a uma pessoa branca e foi presa, fazendo com que a comunidade negra de Montgomery, onde se passou o fato, organizasse um boicote contra o serviço público de transporte da cidade; nesta década, também, alunos negros que se matricularam em escolas até então segregadas do Arkansas, tiveram seu direito de acompanhar as aulas garantidos pela Suprema Corte e pelo governo federal; na década de 1960, se alastraram, pelo sul, os atos de resistência pacífica; foram nestes dez anos que Martin Luther King proferiu, durante uma marcha em Washington, seu famoso discurso “Eu tenho um sonho” e que entraram em vigor o Ato dos Direitos Civis, que proibia o racismo institucionalizado, e o Ato dos Direitos de Voto, que garantia o sulfrágio universal.

De toda esta luta, que alcançou resultados extremamente significativos, emergiu a expressão Black Is Beautifil, que remete ao orgulho e a auto-estima do negro. A expressão se popularizou e atingiu a cultura de massa estadunidense através do movimento Black Power, que a associou a um estilo que incluia o cabelo black power, crespo e volumoso, e roupas de inspiração afrocêntrica. No Brasil, se fez presente através dos bailes blacks, da soul music de Tim Maia, Banda Black Rio, Tony Tornado, dentre outros, além da canção “Negro é Lindo”, de Jorge Ben.

Este fabricante de papel higiênico, ao associar uma expressão de tão grande significância histórica à cor de seu produto, não só tripudiou a história negra, não só menosprezou o orgulho e auto-estima de um povo que até hoje sofre com condições sociais adversas, mas também apagou a memória de todos aqueles afro-americanos que perderam suas vidas nas mãos de organizações que se aproveitaram da segregação para promover o terror, como a Ku-Klux-Klan, e o legado de personalidades, como Angela Davis e Muhammad Ali, que participaram ativamente do movimento pelos direitos civis.

por Felipe Honroato