por Giulia Villa Real Seabra

Uma lei que não permite “propaganda gay” sob pena de prisão. Uma outra “lei”, indireta, que não pune aqueles que realizam “crime de honra” e “lavam a vergonha” da família matando pessoas de orientação sexual diferente da heterossexualidade. Prisões chamadas de campos de concentração em que pelo menos 100 homens, entre 16 e 50 anos, seriam torturados por acusações de homossexualidade.

Quando lemos dessa forma nos parece que descrevemos alguma época distante em um lugar longínquo. Temos presente no nosso imaginário que práticas nesse nível de

atrocidade, tão reacionárias e que violam direitos humanos tão básicos foram superadas pelo nosso mundo contemporâneo tão “pra frente”. Mas elas estão sendo denunciadas de estarem ocorrendo atualmente na Chechênia, país que faz parte da federação russa e tem maioria muçulmana.

No início de abril a repórter do jornal moscovita Novaya Gazeta, Elena Millashina, em extensa matéria investigativa identificou cerca de 3 prisões, duas em Groznym, capital chechena, e uma na cidade de Argún, em que homens estavam sendo torturados com choques elétricos, paus de arara, espancamentos e assassinatos, com suspeita de que 3 pessoas haviam sido mortas, duas pelas famílias e uma vítima das torturas. Detidos sem acusação formal, essas pessoas cometiam um único “crime”: serem gays, num país que mantém a homofobia como um de seus pilares.

“Pessoas diferentes entravam em turnos para nos espancar. Além disso, os guardam diziam a outros que éramos gays para que estes também nos agredissem”, disse Adam (nome fictício) ao jornal russo. O ex-prisioneiro contou também que teria sido capturado em uma emboscada em entrevista ao jornal britânico The Guardian. Em local aonde susposto encontro com pessoa conhecida fora marcado, cerca de seis pessoas, algumas de uniforme, esperavam por Adam gritando que sabiam que ele é gay. Foi colocado em um furgão e encaminhado para uma cela em que outros 30 homens estavam presos também. "Nos chamavam de animais, diziam que não éramos humanos e que íamos morrer ali.", completou.

Outros depoimentos de sobreviventes dessas prisões reforçam a veracidade da denúncia. Diante dos acontecimentos, o porta-voz do atual presidente da Chechênia Ramzan Kadyrov, aliado do presidente da Rússia Vladimir Putin, respondeu às denúncias em nota negando a existência de tais campos e afirmando que “não existem” homossexuais na républica. Completando o texto absurdo disse: “Se tais pessoas existissem na Chechênia, a lei não teria que se preocupar com elas, já que seus parentes as teriam enviado a um lugar de onde nunca voltariam”, indicando que as famílias matariam parentes homossexuais.

Já se sabe que a muito tempo Putin faz vista grossa com práticas de seu aliado Kadyrov. O Kremlin até tentou evitar falar sobre o assunto. Contudo, órgãos de direitoshumanos como a Humans Rights Watch e a Anistia Internacional não deixaram a denúncia passar em branco assim como uma coalizão formada por 23 países que pediam uma investigação formal da ONU. Ainda em maio, o Parlamento Europeu exigiu que as autoridades chechenas iniciassem investigações formais.

A chanceler alemã Angela Merkel foi um dos apoios chave para que investigações fossem instauradas já que em reunião muito coberta pela mídia junto à Putin, Merkel

relembrou o assunto. "Eu pedi para o presidente Putin usar sua influência para proteger os direitos das minorias […] e proteger os direitos dos gays na Chechênia", disse a chanceler. A Alemanha concedeu um visto humanitário para um homossexual checheno que chegou em terras alemãs semana passada. Segundo informações, o governo estuda a concessão de mais quatro outros vistos à homossexuais chechenos.

Um fator preocupante é que mesmo quando libertos as vítimas correm perigo e temem pela sua vida já que muitas vezes são entregues de voltas as famílias para que sejammortos, como manda a tradição. "Os homicídios de honra são reais na Chechênia. Mesmo que os presos tenham conseguido escapar, continuam temendo por suas vidas." diz Svetalana Zakharova, da Rede LGBT da Rússia em entrevista à BBC.

No começo de maio um protesto contra a perseguição e os campos de concentração gays na Chechênia, organizado por ativistas LGBT, em St. Petersburg, foi duramente reprimido pela polícia russa que deteve dez dos protestantes. Protestos aconteceram em outros países como na cidade de Lisboa em Portugal, em que centenas de pessoas exigiam ações contra a perseguição de gays chechenos. No Brasil, a Associação Paranaense da Parada da Diversidade LGBTI e o Dom da Terra AfroLGBT organizaram uma vigília em solidariedade às vítimas de violência no Brasil, na Chechênia e na Rússia.

No mundo virtual uma campanha criada no Instagram pedia que as pessoas postassem fotos se beijando e usassem a hashtag #kissforLGBTQrights além de marcar “Kremlin” como localização.

Diante das pressões o Kremlin cedeu e deu início às investigações, comandadas por Tatyana Moskalkova, Ouvidora de Direitos Humanos da Rússia e pelo investigador chefe, Igor Sobol. Putin afirmou no último dia 5 que iniciaria investigação sobre “os rumores sobre o que está acontecendo com as pessoas de orientação não-tradicional no norte do Cáucaso”, tentando eufemizar de alguma forma o termo “gay”.

Kadyrov disse que estaria disposto a cooperar com as investigações mas, é claro, insistiu novamente que não existem pessoas de orientação “não-tradicional” na Chechênia.

A ONG “Rede Russa LGBT” informou que já retirou mais de 40 gays chechenos do país, transferindo-os para outras regiões da Rússia enquanto negociam asilo com países europeus. Informaram que receberam cerca de 80 pedidos de ajudo de homossexuais da região do Cáucaso e que já conseguiram retirar 9 deles da Rússia.

É preciso acompanhar de perto como as investigações se desenrolaram. Apesar das muitas conquistas, a LGBTfobia ainda é latente e muitas vezes institucionalizada em vários lugares no mundo. Ainda é um mal a ser combatido. Não nos esqueçamos do norte do Cáucaso.