Bela Feldman, entrevistada por Rodrigo Farhat
Por que a nova Lei de Migrações, agora no Senado, é decisiva e perigosa? Como o Brasil continua a atrair, apesar da crise e do golpe? Quais os nexos entre neoliberalismo e homofobia?
É necessário votar urgentemente a Lei de Migrações, sustenta a antropóloga Bela Feldman-Bianco, coordenadora do Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Nesta entrevista, a representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) no Conselho Nacional de Imigração (CNIg) fala sobre a importância das organizações da sociedade civil, igrejas e dos próprios coletivos de migrantes nas políticas de integração ao país. Ela afirma que, apesar da crise, o país continua atrativo para cidadãos de todo o mundo.
Por que a legislação brasileira precisa ser atualizada?
O Estatuto do Estrangeiro, de 1980, é baseado em “segurança nacional” e considera os imigrantes como um “caso de polícia”. Inúmeros artigos dessa legislação estão em contradição com a Constituição de 1988. São um atentado ao processo de redemocratização do Brasil. O artigo 107 do estatuto impede aos estrangeiros o direito de manifestação política e sindical — enquanto, segundo a Carta, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Quais os pilares da nova Lei das Migrações?
A nova lei é um amálgama de pelo menos três anteprojetos de lei: PL 5655/2009, conhecido como projeto Lula; PLS 288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes; e o Anteprojeto de Lei das Migrações e Promoção dos Direitos dos Migrantes no Brasil, formulado em 2014 por uma “comissão de especialistas”, criada no âmbito da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça.
A última versão (PL 2516/2015), revisada pelo relator, deputado Orlando Silva, foi aprovada em julho de 2016 pela Câmara de Deputados. Após longa espera e mobilizações, foi finalmente instituída cinco meses depois, em dezembro. Aprovada (207 votos a favor, 83 contra e uma abstenção), voltou ao Senado, casa de origem. Há urgência em sua aprovação pelo Senado e sanção presidencial, porque se trata de legislação mais humana e justa, que considera os migrantes como sujeitos de direitos, apesar de apresentar anacronismo no que se refere ao aumento da securitização.
Paradoxalmente, essa nova lei, ao mesmo tempo em que facilita a permanência de imigrantes no país, dificulta a entrada e amplia a possibilidade de expulsão de imigrantes. Espera-se que o foco nos direitos humanos seja mantido e, ao mesmo tempo, que seções e artigos relativos à securitização e às condições de expulsão sejam drasticamente reduzidas e descartadas.
A história das migrações para o Brasil indica que não existe fundamentação para se considerar, a priori, imigrantes como “problema”, nem para criminalizá-los de antemão. O índice de criminalidade é bastante baixo, já que são pessoas à procura de uma vida melhor. Ao contrário: imigrantes e refugiados de pele negra são os que têm sido alvo, por parte de brasileiros, de manifestações racistas e xenofóbicas, inclusive com violência física e até assassinatos.
Não podemos nos esquecer que as lutas por direitos, contra o racismo e contra a discriminação de gênero ocorrem também no cotidiano dos migrantes. Ocorre no dia-a-dia da burocracia da Polícia Federal, nas mobilizações por moradia, trabalho decente, saúde, educação, por seus saberes e por participação política. Uma legislação mais humana e justa pode direcionar políticas migratórias de acolhimento baseadas em direitos humanos.
Defendemos os direitos dos migrantes, independentemente da documentação, e esperamos que o Senado retire a abundancia de artigos referentes à “segurança nacional”. A Constituição de 1988 precisa ser respeitada.
Historicamente país de imigração, o Brasil se tornou também exportador de migrantes. Ao mesmo tempo, novos imigrantes estão chegando. Como analisa essa “redescoberta” do país?
Não se trata propriamente de redescoberta do Brasil, mas de reposicionamentos do nosso país na economia política mundial em diferentes momentos do capitalismo global. A emigração dos brasileiros para diversos continentes começou a ocorrer durante a recessão econômica das décadas de 1980 e 1990, que atingiu diversos países da América Latina e também países periféricos ou semiperiféricos de outros continentes.
Desde o final dos anos 1980, esses migrantes transnacionais começaram a confrontar restrições à sua circulação no espaço comunitário europeu, devido ao Tratado Schengen. Esse acordo diferenciou cidadãos comunitários (com direito à entrada e circulação e cidadania plena na comunidade europeia) dos cidadãos extracomunitários. Estes começaram a ser distinguidos por meio de categorias duais: os “legais” ou “regulares” (migrantes documentados e com direitos à entrada e circulação no Espaço Schengen e às suas políticas interculturais) e os “ilegais” ou “irregulares” (migrantes sem documentos e sem direitos à entrada no espaço comunitário europeu). Nos Estados Unidos, historicamente país de imigrantes, as leis oscilaram entre a abertura e fechamento dos portões de imigração de acordo com os fluxos da economia. A tentativa de associar migrantes a terrorismo iniciou-se em 1996, com a bomba de Oklahoma, intensificando-se no pós-setembro de 2001, com a Guerra contra o Terror, e agora retomada com estardalhaço e de forma inconstitucional por Donald Trump em sua primeira semana de governo.
As legislações migratórias de diferentes países historicamente diferenciaram migrantes “desejáveis” dos “indesejáveis”. Mas desde a década de 1990, começou a prevalecer nos países centrais a equação entre migração, terrorismo e tráfico, para tentar legitimar a produção da ilegalidade intrínseca às suas políticas draconianas. Nem os refugiados de guerra têm escapado dessa conceitualização e da discriminação e xenofobia. A fronteira, tornou-se metáfora de uma globalização da desesperança. Ao mesmo tempo, floresce dessa produção da ilegalidade uma lucrativa indústria das migrações.
Com 12,3 milhões de desempregados, por que o Brasil ainda é atrativo?
Nas décadas de 1980 e 1990, a conjuntura global direcionou migrantes de antigas colônias para as antigas metrópoles europeias e Estados Unidos. Mas a grande recessão de 2008-2009 resultou num movimento inverso – da Europa para as antigas colônias. Ao mesmo tempo, emergiram as migrações Sul-Sul, entre países periféricos ou semiperiféricos. Nesse período, os projetos desenvolvimentistas do Brasil atraíram tanto migrantes da Europa e dos Estados Unidos quanto da África, da Ásia e de outros países da América do Sul.
Os haitianos, povo diaspórico, começaram a migrar para o Brasil após o terremoto de 2010. Considerados “refugiados climáticos” e não se enquadrando nas regras para obtenção de refúgio (concedido pelo Comitê Nacional para os Refugiados/Conare aos solicitantes que escapam de guerras ou outros conflitos políticos), os haitianos têm conseguido, por meio de resolução do Conselho Nacional de Imigração (CNIg), obter o visto humanitário para se deslocarem para o Brasil.
Embora os sírios sejam refugiados de guerra, o governo brasileiro também está concedendo a eles o visto humanitário.
Mas vale observar:, no atual contexto brasileiro, de alto índice de desemprego, já há migrantes e refugiados, inclusive os que obtiveram visto humanitário, se deslocando para outros países em busca de melhores oportunidades. Leia mais