Por Juliano Fiori/Carta Maior
Quando se trata da América Latina, Hillary Clinton, ao contrário de Trump, tem um histórico – e é essa a preocupação.
Você provavelmente já viu essa foto: Donald inclinado sobre a mesa de seu escritório de Manhattan, preparando-se para traçar um “taco bowl” pousado sobre uma pilha de jornais ainda não lidos e de uma revista aberta numa página em que sua ex-mulher Marla Maples aparece de biquíni; ele exibe orgulhosamente uma gravata listrada de vermelho e branco de sua marca, Donald Trump Signature Collection, os fios de seu inigualável topete armado sobre a testa (será que ele penteia para trás ou para a frente?), sua expressão congelada está entre um sorriso sarcástico e uma careta de dor; e um pesado troféu de golfe reluz no parapeito da janela atrás dele.
Nada nesta cena comunica alguma afinidade autêntica com os latinos. Mas foi a foto que ele tuitou pouco depois de se tornar o candidato republicano presumido, para tentar alcançar o mesmo eleitorado que ele havia feito tudo para irritar durante as primárias. ‘Eu amo os hispânicos “, escreveu ele na legenda.
É claro que Trump não ama os hispânicos. Trump os vê como vê tudo e todos: acessórios descartáveis da incontestável grandeza de Trump em uma épica história sobre Trump – meros peões em sua campanha movida a propagação de medo, intermediários em seus projetos de especulação imobiliária, lucrativos objetos de adoração em seu concurso de beleza, ‘Miss Dona de Casa”, público-alvo de um chauvinista decadente que fica trolando no Twitter para mostrar que não leva desaforo pra casa.
E a maioria dos latinos nos EUA – e, provavelmente, um grande número fora do país – também não ama Trump. Ele nunca lhes deu muitos motivos para amá-lo, com suas diatribes demagógicas sobre proibi-los de viver ao norte da fronteira (“Vamos construir um muro!”), e seus empreendimentos comerciais ao sul da fronteira que deixaram o conhecido rastro de famílias desalojadas, trabalhadores explorados e impostos sonegados.
Mesmo quando o egocentrismo e a bufonaria de Trump permitiram a apresentação de alguma política substantiva durante a campanha, a América Latina quase não foi mencionada. Conhecemos seus planos para a Segurança Nacional e uma ” nova e especial força-tarefa de deportação” para reprimir a imigração, inclusive dos mexicanos: o reforço dos controles de entrada, a detenção e deportação de imigrantes ilegais, e, claro, a construção de um “muro físico impenetrável” na fronteira sul dos EUA, pelo qual, ele garante, o México irá pagar, mesmo que “ainda não saiba”. Mas, com exceção de sua promessa de se retirar da Parceria Trans-Pacífico (TPP, um acordo ainda a ser ratificado entre doze países do Pacífico, incluindo Chile, México e Peru) e de renegociar ou se retirar também doTratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA, acordo trilateral entre Canadá, México e EUA), pouco sabemos sobre que forma teria a política externa de Trump para a América Latina – se seu governo de fato produzir qualquer coisa coerente o suficiente para ser chamada de uma política externa.
De sua parte, Hillary Clinton também não disse quase nada sobre a América Latina durante a campanha, apesar de sua experiência à frente da política para a região quando secretária de Estado, entre 2009 e início de 2013. Em 2015, durante um discurso no Atlantic Council, ela bajulou um grupo de latino-americanos e latino-americanistas ao afirmar que nenhuma região é “mais importante para a nossa prosperidade e segurança de longo prazo”, mas, a verdade é que a América Latina simplesmente não consta entre as prioridades estratégicas dos EUA, e isso há uma geração; mas isso não é geralmente um motivo de tristeza para os latino-americanos que viveram a Operação Condor ou a Guerra às Drogas.
Ao longo da primeira década do novo milênio, partidos de centro-esquerda foram eleitos para governar grande parte dos países da América Latina, em uma espécie de “maré cor-de-rosa” (Pink Tide). Amparados em economias em constante crescimento e no aumento do consumo interno, esses governos tornaram-se menos dependentes de seus antigos parceiros comerciais e, no caso do governo brasileiro, mais assertivo nas instituições multilaterais. Enquanto os EUA estavam focados na Guerra Global contra o Terror, eles procuraram fortalecer a integração regional e formar novas alianças no exterior, especialmente com outros países em desenvolvimento. Uma China revigorada tornou-se o segundo maior parceiro comercial da América Latina (e o maior mercado de exportação do Brasil, Chile e Peru), aproximando-se, embora ainda um pouco atrás, dos EUA.
Os governos americanos do pós-milênio, no entanto, permanecem atentos ao seu ‘quintal’, mantendo um envolvimento esporádico, se ideologicamente coerente, nas questões da América Latina. Buscando condições favoráveis para as exportações e os investimentos dos EUA, Washington continuou a pressionar por liberalização comercial e financeira na América Latina, embora com menos sucesso do que na década de 1990 – existem hoje mais acordos de livre comércio bilaterais entre os EUA e os países latino-americanos, mas as negociações para estabelecer uma Área de livre Comércio das Américas foram abandonadas em 2005. A ajuda militar dos EUA para países da América Latina, principalmente a Colômbia, aumentou na primeira década do novo milênio e, embora o número de bases militares americanas na América Latina tenha diminuído (algumas bases foram fechadas, e houve tentativas fracassadas de estabelecer ou reabrir bases na Colômbia, no Equador, no Peru e no Panamá), o Comando Sul dos EUA abriu pequenas instalações militares – “quase-bases” – na maior parte dos países ao longo da costa do Pacífico, reforçou sua presença na base de Soto Cano, em Honduras, realizou atividades de vigilância com drones no México, e, em 2008, reativou a Quarta Frota da Marinha no Caribe e nas águas das Américas Central e do Sul, 58 anos após ter sido desativada.
Em 2002, em um retrocesso sinistro aos tempos da Guerra Fria, Otto Reich, secretário de Estado adjunto para Assuntos do Hemisfério Ocidental, Elliott Abrams, diretor sênior no Conselho de Segurança Nacional (NSC), e a CIA foram implicados em uma tentativa de golpe na Venezuela. O presidente George W. Bush foi criticado por deixar a política para a América Latina nas mãos de Reich, um fervoroso anti-comunista, conhecido principalmente por seu papel no escândalo Irã-contras, cujos esforços para conter a “Maré rosa” foram muitas vezes obscuros, quando não desleais.
Em seu discurso na Cúpula das Américas, em abril de 2009, Barack Obama prometeu um “novo capítulo” nas relações interamericanas. Reconhecendo a história e buscando superá-la, Obama mudou o tom do engajamento dos EUA com a América Latina. Especialmente, deu passos significativos no sentido da normalização das relações com Cuba; isto já teve um efeito cascata, criando condições para os EUA e Cuba facilitarem as negociações para o acordo de paz entre o governo colombiano e as FARC que, embora rejeitado por colombianos no referendo de 2 de outubro, ainda representa um progresso em direção ao fim do mais longo conflito interno no mundo.
Apesar da importância simbólica e material dos movimentos de Obama em direção à América Latina, seu governo também é responsável por manobras de desestabilização na região. Em 2008, pouco antes da eleição de Obama, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a reativação da Quarta Frota indicava a cobiça do governo dos EUA sobre as reservas do pré-sal do Brasil. Sua suspeita pareceu se confirmar quando, em 2013, Edward Snowden vazou documentos da Agência de Segurança Nacional (NSA) mostrando a Petrobras, empresa estatal de petróleo do Brasil, havia sido espionada. Documentos divulgados por Snowden posteriormente revelaram que a NSA vinha monitorando a correspondência eletrônica da sucessora de Lula, Dilma Rousseff, e de seus assessores, bem como a do presidente do México Enrique Peña Nieto.
A Casa Branca com Obama tem ditado os rumos da política externa mais do que ocorria sob seus antecessores pós-Guerra Fria. Durante seu período como secretária de Estado, Hillary Clinton divergiu do presidente em muitas questões estratégicas de política externa, tendo sido um dos poucos membros do gabinete a desafiá-lo durante as reuniões do Conselho Nacional de Segurança. Ao contrário de Obama, Hillary foi a favor de armar os rebeldes sírios, se opôs ao anúncio do prazo de 18 meses para a retirada as tropas do Afeganistão, após a tensão de 2009, opôs-se ao apelo pelo congelamento dos assentamentos israelenses, e apoiou uma transição democrática lenta no Egito que mantivesse Hosni Mubarak no poder. Em todas as decisões, a vontade de Obama prevaleceu. Na América Latina, no entanto, Hillary Clinton teve bastante autonomia. (A abertura das relações com Cuba – um dos carros-chefe de Obama – foi orquestrada, sobretudo, por canais diplomáticos não-oficiais, mas foi durante o segundo mandato de Obama, depois de Clinton deixar o cargo, que as negociações se intensificaram).
Em junho de 2009, Clinton enfrentou seu primeiro grande teste na América Latina, quando o presidente hondurenho Manuel Zelaya foi deposto do cargo, após ser arrancado de sua residência, no meio da noite, ainda de pijama, por soldados cumprindo ordens da Suprema Corte de Honduras. As Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos (OEA) pediram a volta imediata de Zelaya como presidente. Obama declarou que “o golpe não foi legal” e, em um telegrama diplomático, divulgado mais tarde pelo WikiLeaks, o embaixador dos EUA em Honduras Hugo Llorens também se referiu a um “golpe de Estado ilegal e inconstitucional”. Mas a posição de Obama foi abalada quando sua tentativa de nomear um novo representante sênior para as Américas foi bloqueada por senadores republicanos que apoiaram o governo interino de Honduras de Roberto Micheletti. Ignorando a declaração anterior de Obama, Clinton afirmou em seguida que o governo dos EUA se abstinha de chamar a deposição de Zelaya de golpe, e deu início a uma tentativa de, escanteando a OEA, trabalhar ao lado do presidente da Costa Rica Óscar Arias para evitar o retorno de Zelaya, através de nova eleições. Na primeira edição de sua autobiografia, Hard Choices, Clinton escreve: “Nós pensamos num plano estratégico para restaurar a ordem em Honduras e garantir que eleições livres e justas pudessem ser realizadas de forma rápida e legítima, o que tornaria a questão Zelaya irrelevante”. Esta passagem foi removida a partir na segunda edição. O governo dos EUA continuou a fornecer ajuda militar e para o desenvolvimento de Honduras, incluindo 28 milhões de dólares através do programa Honduras Convive, lançado pelo Departamento de Iniciativas de Transição para sufocar qualquer reação de hondurenhos que se recusassem a aceitar a nova realidade política. A violência política aumentou q partir de de junho de 2009: em Janeiro de 2010, 34 membros da oposição (ao governo interino e, em seguida, ao governo de Porfirio Lobo, que foi eleito e reconhecido por Obama em novembro de 2009) haviam desaparecido ou sido assassinados, e mais de 300 pessoas haviam sido mortas pelas forças de segurança hondurenhas.
Nos últimos anos, as taxas de homicídio nos países do Triângulo do Norte da América Central (Honduras, El Salvador e Guatemala) estão entre as mais altas do mundo. Gangues territoriais, envolvidas em extorsão e tráfico de drogas, são muitas vezes responsáveis por assassinatos, estupros e torturas que levaram à emigração em massa, mas esses países têm longas, ainda que distintas, histórias de violência: a repressão estatal, apoiada e somada a intervenções estrangeiras, antecedidas por séculos de domínio colonial, com seu legado de patriarcado e discriminação racial. Durante sua campanha, Hillary Clinton disse que o Plano Colômbia – a iniciativa militar e diplomática lançada por seu marido para combater narcotraficantes e guerrilheiros colombianos – representa um modelo apropriado para as atividades dos EUA na América Central. Unidades militares colombianas, treinadas e financiadas por meio do Plano Colômbia, recompensam financeiramente os soldados por cada guerrilheiro que matam, e sabe-se que agiram em conluio com grupos paramilitares. Um relatório das organizações Fellowship on Reconciliation (FOR) com o US Office on Colombia (USOC) apresenta uma correlação entre o aumento em ajuda dos EUA para unidades militares através do Plano Colômbia, e o aumento no número de execuções extrajudiciais cometidas. A Anistia Internacional, por sua vez, descreveu o Plano Colômbia como “um fracasso em todos os aspectos”. A proposta de Clinton para a adoção de uma estratégia similar para a América Central evidencia a perspectiva de uma militarização acelerada da segurança pública em sociedades já marcadas por extrema violência – e por genocídio, no caso da Guatemala – infligida pelas forças militares, sem necessariamente tratar as causas mais profundas da intranquilidade social e da criminalidade.
Através de sua supervisão e expansão da Iniciativa Mérida – um acordo de cooperação de segurança entre o México e os EUA, ostensivamente destinado a combater o crime organizado e o tráfico de drogas – Hillary já havia demonstrado sua predileção por abordagens militaristas na aplicação da lei na América Latina. Ao lado de um apoio modesto destinado à reforma judicial e à prevenção ao uso de drogas, a iniciativa concentra-se principalmente em prover recursos e treinamento para fortalecer a interdição militar ao narcotráfico mexicano. O programa tem sido amplamente criticado por não restringir o tráfico nem o consumo de drogas, por se integrar à corrupção do Estado mexicano e à repressão do governo contra a dissidência, e por militarizar a segurança do cidadão, apesar das evidências de aumento no abuso de direitos humanos.
A segurança ao sul da fronteira é especialmente importante para os EUA desde 1994, quando o NAFTA entrou em vigor e o México se tornou uma parte inseparável da economia norte-americana. Através da Iniciativa Mérida, os governos norte-americanos têm procurado securizar e proteger as rotas de comércio do México para os EUA. Mas, ironicamente, o NAFTA tem contribuído, de forma não negligenciável, para a expansão do comércio de drogas violento no México: o aumento do tráfego na fronteira EUA-México criou mais oportunidades para o contrabando de mercadorias ilícitas e o escoamento de produtos agrícolas subsidiados dos Estados Unidos (principalmente milho) para o México vem destruindo modos de vida rurais, empurrando pequenos agricultores para a produção de drogas. Fiel ao legado de seu marido, para quem a assinatura do NAFTA representou um feito glorioso, Hillary Clinton inicialmente apoiou o acordo de comércio. Mas declarou-se crítica a ele durante a sua candidatura às primárias presidenciais em 2008. Ela também mudou posição sobre outros acordos comerciais. Tendo se referido ao TPP como “o modelo dos acordos comerciais”, em 2012, passou a criticá-lo durante as primárias contra Bernie Sanders, buscando o apoio da esquerda do Partido Democrata. E mudou de posição ainda sobre o acordo bilateral de comércio entre EUA e Colômbia, opondo-se a ele durante sua campanha de 2008 para, em seguida, pressionar o Congresso a apoiá-lo em 2011. Os críticos sugerem que, neste caso, Clinton pode ter sido influenciado por interesses privados, apontando para 800 mil dólares recebidos por Bill Clinton da colombiana Gold Services por quatro conferências durante as quais ele declarou apoio ao acordo comercial. Desde a entrada em vigor, o acordo – que exigiu mais concessões de parte da Colômbia do que dos EUA em termos do valor comercial sujeito a eliminação imediata de tarifas – trouxe uma redução na renda e na área cultivada pelos pequenos agricultores colombianos, incapazes de competir com as importações agrícolas americanas.
Se é pragmática, ou até cínica, Hillary Clinton é também uma firme defensora da globalização neoliberal, e em geral apoia acordos de livre comércio nas Américas. Ela também tem feito pressão pela privatização de serviços públicos na América Latina, criando oportunidades de investimento para as empresas americanas. Documentos divulgados pelo Wikileaks mostraram que, enquanto Clinton era secretária de Estado, sua equipe procurou, a portas fechadas, dar ajuda às reformas de energia no México, que incluíam a privatização parcial da PEMEX, a companhia nacional de petróleo que, sob a propriedade estatal desde 1938, é a principal fonte de receita para as despesas sociais no México. E, em 2012, agindo em nome do Departamento de Estado, a embaixadora dos EUA em El Salvador, Mari Carmen Aponte, ameaçou suspender a ajuda ao desenvolvimento dada ao governo de El Salvador, se este não aprovasse uma lei de parcerias público-privadas. (A venda de bens do Estado salvadorenho a empresas privadas, desde o início da década de 1990, fez disparar o custo de vida para as pessoas com menores salários: a privatização do setor elétrico de El Salvador, em 1996, levou a um aumento de 47,2% na tarifa para pequenos consumidores).
Nos últimos anos, as coisas mudaram na América Latina. A maioria das economias latino-americanas estão vacilantes, expondo uma dependência excessiva das exportações de matérias-primas e, em particular, da continuidade do crescimento e do consumo da China. A direita ganha força e chega ao poder em vários países (o caso mais recente, no Brasil, após o controverso impeachment da presidenta Dilma Rousseff), com a intenção declarada de reaquecer as relações comerciais com antigos aliados, principalmente com os EUA.
Seria improvável que um eventual governo Trump, guiado pelo credo “Americanismo, não globalismo”, tirasse proveito dessas mudanças e ampliasse a abertura para a América Latina. Por outro lado, dada a volatilidade de Trump, sua propensão a mentir, e, para sermos bem claros, sua total falta de planos, quem pode dizer o que ele realmente faria no poder? (“Queremos ser imprevisíveis”, ele diz, estabelecendo um princípio central de sua estratégia de negociação, que, convenientemente, e caracteristicamente, transforma seu vício em virtude). Graças ao seu desempenho desastroso no primeiro debate com Clinton, e a um escândalo de abuso sexual, pelo qual ele não se desculpou e respondeu contra-atacando, parece cada vez mais provável que a humanidade será poupada do pavor de descobrir.
Hillary Clinton muda de opinião como quem muda de roupa, ela joga o jogo, mas acaba sendo previsível, e até chata, para o papel de presidente polido. Nós mais do que sabemos o que esperar. Ela é uma internacionalista liberal e uma intervencionista durona. Ela acredita firmemente que os EUA devem desempenhar um papel abrangente de influência sobre os temas internacionais. Certamente vai tentar capitalizar a virada conservadora da América Latina voltando sua atenção para a região, ainda que continue lá embaixo em sua lista de prioridades estratégicas. Ao contrário de Trump, Hillary tem um histórico na América Latina. Essa é, para muitos latino-americanos, a preocupação.
Tradução de Clarisse Meireles