NOTA PRETA ENTREVISTA
Por Mauro Viana
A escritora Sinara Rúbia revela à coluna Nota Preta que sua gestão, à frente do Museu da História e da Cultura Afo-Brasileira, combina tradição e tecnologia
1) Você pode nos lembrar de sua trajetória de vida até chegar ao posto de dirigente de equipamento cultural público?
Sou herdeira de uma concreta e legítima herança africana. Sou neta e filha de duas mulheres pretas contadoras de histórias que me deram régua, compasso e tom. Minha mãe, Dona Tânia, me criou com a sabedoria das histórias, dos provérbios e das canções, que narrava para mim e minhas irmãs enquanto costurava. Para ter tranquilidade e tempo para costurar, como estratégia, minha mãe mantinha eu e minhas irmãs sentadas em torno da máquina de costura aos seus pés, aconchegadas em almofadas que ela confeccionava com retalhos coloridos, contava histórias, canções, causos, provérbios, orações e ensinamentos.
Sendo eu filha e neta primogênita, eu sempre passava as férias do fim do ano na casa onde nasci, pelas mãos de uma parteira. Isso era uma exigência da minha avó materna, que também pertencia a uma dinastia de parteiras e rezadeiras, que queria a neta por perto sempre. Na casa da avó, eu dormia no quarto onde nasci, parte da casa reverenciada como um templo sagrado. Nesse período eu ouvia as histórias contadas por minha avó Antônia, ou diante da iluminação do céu sem poluição, com lua e carregado de estrelas, sentadas na calçada à frente da casa, ou iluminadas pela lamparina dentro de casa, sobre a mesa de madeira se estivesse chovendo, pois, na infância, a maior parte daquele povoado não tinha luz elétrica.
Como Irmã mais velha, fiquei responsável por ajudar a criar as irmãs. Aos 8 anos de idade, quando minha mãe precisou trabalhar fora, assim como meu pai para dar conta do sustento da família. Nutrida pelo desejo de ensinar, meu ensino médio foi o antigo curso normal. Eu queria ser professora. A cada ano eu compreendia a importância da Educação na minha vida e como estava sendo transformada ao passo que acessava conhecimentos. Apesar de um hiato nos estudos, por não conseguir cursar o ensino superior, logo após o término do magistério, depois de 7 anos sem estudar formalmente; consegui entrar numa graduação, aos 26 anos de idade. A faculdade escolhida foi Letras-Português/ Literatura. Essa graduação foi um divisor de águas na minha vida.
No mestrado, minha pesquisa abordou a importância e a potência da valorização dos saberes tradicionais, particularmente da cultura afro-brasileira, no contexto educacional. O conceito de letramento de inspiração griô, desenvolvido nesse trabalho, refere-se à valorização de tradições orais como forma de ensinar e transmitir conhecimentos, inspirado nos Griôs, que são referências tradicionais em muitas culturas africanas e da diáspora africana, responsáveis por preservar a história e cultura de seus povos por meio da Tradição Oral.
Essa trajetória me formou uma educadora, escritora e contadora de histórias, com mestrado em Relações Étnico-Raciais (CEFET/RIO/PPRER) e graduação em Letras Português-Literatura (UNESA). Atuo como pesquisadora em Literatura Infantojuvenil Negra e Contação de Histórias de Inspiração Griô. Tenho duas décadas de experiência em organizações da sociedade civil, focadas em Direitos Humanos, Combate ao Racismo, Violência de Gênero, Desenvolvimento Territorial e Geração de Renda. Liderei mais de 150 projetos, impactando cerca de 15 mil pessoas, demonstrando minha capacidade de gerar mudanças significativas. Minha experiência abrange coordenação, mediação, facilitação, tutoria, consultoria técnica, planejamento administrativo e elaboração de planos de negócios. Desenvolvi habilidades essenciais como comunicação assertiva, resolução de conflitos e negociação, fundamentais para o sucesso dos projetos. Atualmente, integro a equipe da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro ocupando as funções de Assessora de Práticas Antirracistas, Gerente de Livro e Leitura e, desde março de 2023, Diretora-Presidente do MUHCAB – Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira.
2) Quais são as especificidades da Literatura Infantil?
A Literatura Infantil tem a responsabilidade de dialogar com o imaginário das crianças, oferecendo narrativas que ampliem suas perspectivas e construam valores éticos e sociais. No caso da Literatura Infantojuvenil Negra, a especificidade é ainda maior: ela busca combater estereótipos e estigmas racistas, fortalecer identidades negras e contar histórias que foram historicamente apagadas. Essa literatura deve ser visualmente e textualmente atraente, trabalhar com temas pertinentes ao universo infantil e incluir representatividade positiva de crianças negras como protagonistas.
3) Há espaço político para a oralitura ser incluída nos programas pedagógicos das Escolas Municipais do Rio de Janeiro?
Sim, há espaço político e social para a inclusão da oralitura, especialmente considerando o cenário de iniciativas voltadas para a implementação de uma educação antirracista. A Lei 10.639/2003 já prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, o que abre caminho para que a oralidade, como expressão genuína da cultura afro-brasileira, seja integrada aos currículos escolares. No entanto, é necessário um esforço contínuo de sensibilização de gestores, formação de professores e criação de materiais pedagógicos que utilizem a oralitura como ferramenta de ensino.
4) Quais os pontos de confluência entre o rap, o funk e a contação de histórias afrocentrada?
O rap, o funk e a contação de histórias afrocentrada compartilham uma raiz comum: a oralidade como meio de resistência, preservação cultural e denúncia das desigualdades sociais. Todos são expressões culturais que dialogam diretamente com as vivências da juventude negra e periférica, traduzindo realidades em linguagem artística. Além disso, utilizam o ritmo, a repetição e as narrativas como formas de prender a atenção e transmitir mensagens poderosas. Esses elementos permitem criar um senso de pertencimento e de mobilização social.
5) Como incentivar as pessoas jovens no desenvolvimento da literatura preta por meios da inovação tecnológica?
Podemos incentivar a juventude a explorar a literatura preta por meio de plataformas digitais, como aplicativos de leitura, redes sociais e podcasts. A criação de clubes de leitura online e oficinas de escrita criativa digital é uma forma prática de engajamento. Além disso, o uso de tecnologias como realidade aumentada para dar vida a histórias e personagens pode tornar a experiência literária mais interativa e atrativa. Parcerias com influenciadores digitais negros também ajudam a popularizar a literatura preta entre o público jovem.
6) Se você fosse roteirizar uma série para a plataforma de streaming, Afroflix, como seria a sinopse?
“Mensageiras do Axé”
Seria uma série baseada em histórias de mulheres griôs do Rio de Janeiro. A trama acompanha três(ou quatro) gerações de mulheres que usam a oralidade para preservar e transmitir as memórias ancestrais do território da Pequena África e outros territórios negros da cidade. Cada episódio seria estruturado como uma contação de histórias, entrelaçando elementos fantásticos com narrativas reais, enquanto as protagonistas lutam contra desafios contemporâneos, como o racismo e a gentrificação, mantendo a dignidade e se fortalecendo no axé dos seus conhecimentos e valores civilizatórios afro-brasileiros.
7) Quais são as técnicas para conciliar as atividades de gestora cultural com a militância e a arte literária?
Conciliar múltiplas responsabilidades exige organização, proatividade e alinhamento de valores. Utilizo ferramentas de gestão de tempo, como agendas digitais e planejamento semanal, para equilibrar compromissos administrativos e criativos. Uma das minhas estratégias é integrar a tradição oral e a literatura às atividades do museu, assegurando que os projetos culturais promovam a justiça social e estejam alinhados às diretrizes estabelecidas no plano museológico da instituição.
Além disso, acredito na força do trabalho em rede. Manter um diálogo constante com equipes, colaboradores e comunidades permite distribuir responsabilidades de forma eficiente, garantindo que todos os projetos sejam conduzidos com qualidade e compromisso. Esse suporte me dá espaço para criar, refletir e continuar atuando na militância.
Outro aspecto fundamental é cuidar da saúde física e mental. Prático autocuidado, reservo momentos de pausa e busco manter o equilíbrio emocional para sustentar minhas diferentes atuações. Dessa forma, consigo unir minha paixão pela cultura afro-brasileira com a responsabilidade de liderar um equipamento cultural público, sem deixar de lado a arte literária e a luta por uma sociedade mais justa.
8) E por falar em arte literária, conte-nos sobre sua produção literária.
Como escritora, publiquei mais de seis livros e tenho dois em fase de publicação, contribuindo significativamente para a valorização da literatura e da cultura brasileira. Minha produção literária é dedicada à promoção da ancestralidade, da representatividade e do protagonismo negro, com foco especial no público infantojuvenil.
Minhas histórias celebram a cultura afro-brasileira, transmitindo lições sobre resistência, pertencimento e orgulho das raízes ancestrais. Inspirada nas tradições orais e na sabedoria dos griôs, busco narrar e perpetuar narrativas que foram historicamente silenciadas.
Além de escrever, utilizo a contação de histórias como uma ferramenta para dar vida às minhas obras e para divulgar as criações de outros autores e autoras negras, ampliando o alcance dessas vozes na construção de uma educação antirracista e na valorização da diversidade cultural.
09) Quais seriam as escritoras pretas que você indicaria para o público infantil?
Sonia Rosa, Kiusam de Oliveira, Otavio Junior, Júlio Emílio Brás, Janine Rodrigues, Maíra de Oliveira, Madu Costa, Edmilson de Almeida Pereira, Heloisa Pires Lima, bell hooks, Sinara Rubia