Em 21 de novembro, o Tribunal Penal Internacional (TPI) emitiu três mandados de detenção no contexto do seu inquérito sobre a situação na Palestina, em curso desde 2021. Estes mandados visam dois altos responsáveis israelitas, o Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu e o antigo Ministro da Defesa Yoav Gallant (em funções de dezembro de 2022 a novembro de 2024), bem como Mohammed Diab Ibrahim Al-Masri, conhecido como Mohammed Deïf, o chefe da ala militar do Hamas. Os dois primeiros são acusados de crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos desde 8 de outubro de 2023 até pelo menos 20 de maio de 2024, dia em que o Procurador apresentou os pedidos de emissão de mandados de detenção. O terceiro é acusado de crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos no território do Estado de Israel e no território do Estado da Palestina desde pelo menos 7 de outubro de 2023. Embora as acusações sejam graves, o caminho para possíveis julgamentos perante o TPI continua complexo e repleto de obstáculos.
Contexto da emissão dos mandados de detenção
Estes mandados de detenção inserem-se no âmbito de um inquérito aberto pelo Procurador do TPI sobre a situação no Estado da Palestina, cujo início remonta a quase uma década atrás. Em 1 de janeiro de 2015, a Palestina submeteu uma declaração em conformidade com o artigo 12(3) do Estatuto de Roma, reconhecendo a competência do TPI para investigar alegados crimes cometidos “no Território Palestiniano Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental, desde 13 de junho de 2014”. No dia seguinte, formalizou a sua adesão ao Estatuto de Roma ao depositar o respetivo instrumento junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, adesão essa que entrou em vigor em 1 de abril de 2015.
No mesmo mês, em 16 de janeiro de 2015, o Procurador anunciou o lançamento de um exame preliminar sobre a situação na Palestina, com vista a avaliar se as condições estabelecidas no Estatuto de Roma para a abertura de um inquérito tinham sido cumpridas, especialmente em termos de competência, de admissibilidade e dos interesses da justiça.
Subsequentemente, em 22 de maio de 2018, ao abrigo dos artigos 13(a) e 14 do Estatuto de Roma, a Palestina denunciou formalmente a sua situação ao Procurador, relativamente a factos ocorridos a partir de 13 de junho de 2014, sem qualquer limite temporal. O Procurador aceitou dar seguimento a esta denúncia em 3 de março de 2021, declarando que, após um exame aprofundado, considerava que estavam preenchidos todos os critérios estabelecidos pelo Estatuto de Roma para a abertura de um inquérito, sendo a competência territorial do TPI aplicável a Gaza e à Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, conforme a decisão da Câmara Preliminar I de 5 de fevereiro de 2021. O processo foi reforçado por denúncias adicionais apresentadas em 2023 pela África do Sul, Bangladesh, Bolívia, Comores e Djibuti, e em 2024 pelo Chile e México.
Em 20 de maio de 2024, o Procurador do TPI apresentou à Câmara Preliminar I pedidos para a emissão de mandados de detenção relacionados com a situação no Estado da Palestina. Embora seja habitualmente necessário um período de três a seis semanas para decidir sobre tais pedidos, foram necessários seis meses para que a Câmara Preliminar I do TPI decidisse, por unanimidade, em 21 de novembro, emitir três mandados de detenção. Trata-se de um atraso recorde desde a criação do TPI em 1998, que pode ser explicado não só pelo facto de este ter sido, e continuar a ser, sujeito a pressões e sanções sem precedentes, orquestradas por Israel e alguns dos seus aliados, em primeiro lugar os Estados Unidos, que não são membros do Tribunal, mas também por tentativas destinadas a contestar a competência do TPI sobre cidadãos israelitas. A este respeito, o Tribunal rejeitou o argumento apresentado por alguns Estados (principalmente a Alemanha e o Reino Unido), segundo o qual os Acordos de Oslo de 1993 não atribuiriam competência penal à Palestina, esta não podendo, por conseguinte, solicitar um inquérito criminal por parte do TPI, bem como o argumento apresentado por Israel, segundo o qual o Tribunal não poderia ter competência sobre um Estado terceiro, uma vez que tem efetivamente competência territorial sobre a Palestina, que é um Estado-Membro.
Mais especificamente, Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant, respectivamente Primeiro-Ministro de Israel e Ministro da Defesa de Israel na altura dos factos denunciados, são acusados de alegados crimes contra a humanidade e crimes de guerra cometidos desde, pelo menos, 8 de outubro de 2023 até, pelo menos, 20 de maio de 2024, na qualidade de co-autores, o que significa que são pessoal e diretamente responsáveis, mas também na qualidade de superiores hierárquicos civis, por terem ordenado intencionalmente um ataque contra a população civil. Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant são suspeitos dos crimes de guerra de matar deliberadamente civis à fome como método de guerra e de dirigir intencionalmente um ataque contra a população civil. Teriam deliberadamente privado a população civil de Gaza de alimentos, água, medicamentos, combustível e eletricidade, dificultando ou limitando o acesso à ajuda humanitária, restrições que não tinham qualquer justificação militar, apesar de ter sido autorizada uma ajuda humanitária mínima. Além disso, são também suspeitos dos crimes contra a humanidade de homicídios, perseguições e outros atos desumanos, uma vez que as operações de guerra levadas a cabo pelo exército israelita na Faixa de Gaza resultaram num ataque generalizado e sistemático contra a sua população civil.
Por seu lado, Mohammed Deïf, é acusado dos crimes contra a humanidade de assassinatos, extermínio, tortura, violações e outras formas de violência sexual, bem como dos crimes de guerra de assassinatos, tratamentos cruéis, tortura, tomada de reféns, atentados à dignidade da pessoa, violações e outras formas de violência sexual, cometidos no território do Estado de Israel e do Estado da Palestina desde, pelo menos, 7 de outubro de 2023. Embora o exército israelita tenha anunciado a sua morte durante um bombardeamento seletivo em julho de 2024, este mandado de detenção permite que não sejam apenas visados dirigentes israelitas. De acordo com a sua política de não distinguir entre crimes cometidos por diferentes partes – e apesar de ser criticado por tratar os líderes de uma organização terrorista da mesma forma que os líderes eleitos de uma democracia – o Procurador do TPI tinha inicialmente solicitado mandados de detenção também para Ismaël Haniyeh, o chefe do gabinete político do Hamas, e Yahya Sinouar, o chefe do Hamas na Faixa de Gaza. Entretanto, ambos foram mortos pelo exército israelita, o primeiro em julho no Irão, o segundo em outubro no sul da Faixa de Gaza.
Consequências da emissão dos mandados de detenção
Mesmo que o TPI considere que a prova da morte de Mohammed Deïf não foi apresentada com certeza, é provável que ele tenha sido morto num ataque aéreo israelita em julho de 2024, pelo que os mandados de detenção terão certamente consequências apenas para Benyamin Netanyahu e Yoav Gallant.
No plano jurídico, os mandados de detenção do TPI ficarão sem efeito nos Estados que não são partes do Estatuto de Roma, incluindo Israel, onde poderão ser utilizados como argumento político pelas pessoas visadas e pelos seus apoiantes para reforçar uma retórica hostil ao Tribunal. É também o caso dos Estados Unidos, que poderão adotar medidas de retorsão contra o Tribunal quando Donald Trump tomar posse como Presidente em janeiro de 2025. Assim sendo, Netanyahu e Gallant podem deslocar-se sem receio de serem detidos a Estados não membros do Estatuto de Roma, como a China, a Índia ou a Rússia, que não são obrigados a cooperar com o Tribunal. A contrario, os mandados de detenção terão efeito nos 124 Estados Partes no Estatuto de Roma (125 com a Ucrânia em janeiro de 2025), entre os quais o Brasil. Dado que estes países são obrigados a cooperar com o TPI e a executar os mandados de detenção, poderão levar a restrições às deslocações internacionais das pessoas em causa, bem como a uma intensificação dos esforços de recolha de provas e de mobilização da cooperação internacional para eventuais ações penais, as quais exigem a presença dos arguidos perante o Tribunal.
No plano diplomático, paralelamente ao parecer consultivo de julho de 2024 do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que destacou violações sistématicas do direito internacional dos direitos humanos, estas acusações poderão acentuar o isolamento de Israel, especialmente em fóruns internacionais, na medida em que alguns Estados poderão ser levados a evitar tratar diretamente com as pessoas visadas, ou mesmo a cessar as vendas de armas. A este respeito, a Alemanha, o segundo maior fornecedor de armas a Israel, tem atualmente de responder a um recurso apresentado pela Nicarágua contra ela junto do TIJ por alegadas violações de certas obrigações internacionais relativas ao Território Palestiniano Ocupado. Além disso, os mandados de detenção poderão também exacerbar as tensões entre o Tribunal e certos Estados Partes no Estatuto de Roma que, embora obrigados a cooperar, não cumprem escrupulosamente as suas obrigações internacionais. A viagem oficial, em setembro passado, do presidente russo Vladimir Putin à Mongólia, um país membro do TPI que emitiu um mandado de detenção contra ele, é a ilustração mais recente dessa situação, tendo sido tal incumprimento submetido à Assembleia dos Estados Partes, com vista à eventual adoção de sanções. Indivíduos sob mandado de detenção podem, portanto, continuar a viajar para Estados que oferecem garantias de que não serão detidos.
No plano simbólico, sendo os senhores Netanyahu e Gallant agora acusados dos crimes mais graves, estes mandados de detenção enviam uma mensagem forte sobre a importância da responsabilização penal por crimes internacionais e são um sinal de reconhecimento para as vítimas das violências ligadas ao atual conflito em Gaza. Nesse sentido, trazem esperança de justiça a inúmeras vítimas de crimes internacionais e restauram a confiança numa justiça internacional credível e legítima. Sendo os primeiros mandados de detenção contra líderes de um país do campo ocidental, estes também podem ser vistos, depois daquele emitido contra o chefe de Estado da Rússia, como um ato de afirmação da independência e da determinação do TPI em lidar mesmo com as situações politicamente mais sensíveis.
Na prática, porém, a eficácia dos mandados de detenção dependerá em grande medida da cooperação dos Estados e dos meios disponíveis para os executar. Apesar da confirmação por vários Estados, especialmente europeus, da sua intenção de implementar estes mandatos, as probabilidades de estes resultarem em detenções e julgamentos continuam a ser escassas sem uma verdadeira vontade política de aplicar o direito internacional e, de uma forma mais geral, de pôr termo ao conflito armado no Médio Oriente.
Os autores
Catherine Maia
Professora na Universidade Lusófona – Centro Universitário do Porto (Portugal) e professora visitante na Sciences Po Paris (França)
Charlotte Rollet
Mestre do Instituto de Direitos Humanos de Lyon – Universidade Católica de Lyon (França)