MINERAÇÃO
Por Fernanda Perdigão
As decisões judiciais envolvendo vítimas do rompimento da barragem de Brumadinho evidenciam, a maneira como o sistema de justiça tem tratado as pessoas atingidas: como coadjuvantes de seus próprios direitos.
Tivemos acesso a uma das sentenças que indeferiu os pedidos de indenização por danos morais e materiais de uma família atingidas pelo crime da Vale que revela falhas graves, tanto na forma quanto no conteúdo, e reflete uma prática judicial marcada pelo neocolonialismo, onde as vozes dos mais vulneráveis são relegadas ao segundo plano, enquanto a voz da Vale S.A. permanece hegemônica.
Falhas na sentença: a negação da dor e o fardo da prova
A sentença negou os pedidos de indenização com o argumento de que os autores não apresentaram provas suficientes para comprovar os danos alegados, tais como laudos médicos que demonstram impactos psicológicos específicos decorrentes do rompimento. Contudo, essa exigência ignora a realidade dos atingidos, que foram submetidos a um trauma coletivo de proporções inimagináveis. A aplicação estrita das normas processuais, como o artigo 373, I do Código de Processo Civil, que impõe ao autor o ônus de comprovar os fatos constitutivos do seu direito, acaba sendo utilizada como ferramenta para deslegitimar o sofrimento de quem perdeu casa, trabalho e estabilidade. Uma importante observação, no referido caso, houve solicitação de suspensão para aproveitamento de provas produzidas no processo coletivo que segue em andamento, pedido este indeferido pelo magistrado.
A Contradição no Reconhecimento do Ato Ilícito e a Negação da Responsabilidade
É indiscutível que a Vale cometeu um ato ilícito gravíssimo, responsável pela morte de centenas de pessoas, destruição de comunidades e um impacto ambiental imensurável. Esse reconhecimento por parte do magistrado já deveria, por si só, ensejar uma postura pró-ativa na análise das consequências do desastre. Ao exigir que os autores provem individualmente os danos de maneira exaustiva, a sentença ignora a própria gravidade do fato ilícito, que causou, de maneira evidente, um dano massivo e difuso a toda a coletividade.
O trecho revela um paradoxo na responsabilização : por um lado, admita-se que a conduta da Vale foi ilícita e grave; por outro lado, a decisão nega, como se os efeitos dessa conduta tivessem um alcance limitado e restrito, sem qualquer consequência concreta sobre os indivíduos que, comprovadamente, tiveram suas vidas desestruturadas.
A Aplicação Injusta do Ônus da Prova
A sentença impõe aos autores o ônus de comprovar, de maneira rigorosa, os danos sofridos, sob a premissa do artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil (CPC), que atribui ao autor o dever de provar os fatos constitutivos de seu direito. No entanto, o cenário de um desastre de tal magnitude exige uma abordagem diferenciada , conforme regula a própria legislação, ao aplicar a teoria do risco integral em casos de danos ambientais (art. 927 do Código Civil e art. 14, §1º da Lei nº 6.938/1981). Essa teoria dispensa a prova de culpa, bastando o ato ilícito e o dano decorrente de uma atividade que, por sua natureza, envolve risco para terceiros.
Ao exigir que as vítimas apresentem provas de cada dano, a sentença desconsidera o contexto de vulnerabilidade dos atingidos, muitos dos quais estão com efeitos danosos na sua saúde mental ou atuavam na informalidade. Em vez de facilitar o acesso à justiça e reparação dos danos, o Judiciário cria obstáculos quase intransponíveis, tratando os atingidos em uma posição de igualdade frente à Vale, uma das maiores empresas do mundo.
Danos Evidentes Ignorados e a Necessidade de Prova de Nexo de Causalidade
A exigência de que os autores provem o nexo de causalidade entre os danos sofridos e o rompimento da barragem desconsidera o caráter evidente do dano causado pelo desastre. O rompimento da barragem não apenas devastou a área atingida imediatamente pela lama, mas também gerou uma onda de trauma e desestruturação social em toda a região.
A investigação já consolidada, inclusive pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) , estabelece que em casos de tragédias de grande magnitude, o dano moral pode ser presumido (“in re ipsa”), dispensando a prova exaustiva do dano, uma vez que a gravidade do evento e o impacto na vida das pessoas são autoevidentes. A sentença, ao não aplicar esse entendimento, incorre em um erro, perpetuando a lógica de desconsiderar a dimensão humana do desastre em prol de uma formalidade processual que, na prática, favorece a mineradora.
O Neocolonialismo Judiciário e a Exclusão das Vozes dos Atingidos
O conceito de neocolonialismo judiciário se manifesta quando o sistema de justiça, ao invés de proteger os direitos dos mais vulneráveis, reproduz estruturas de poder que marginalizam ainda mais aqueles que já foram oprimidos. O rompimento da barragem de Brumadinho não foi apenas uma tragédia ambiental e humana, mas também uma demonstração da violência institucional. Os atingidos, que deveriam ser protagonistas na busca por seus direitos, são tratados como espectadores em processos que têm como foco a proteção do capital e da reputação das corporações.
Os tribunais têm se mostrado reticentes em reconhecer a responsabilidade integral da Vale e os danos profundos que o desastre causou à coletividade. O uso da teoria do risco integral, que impõe a responsabilidade objetiva por danos ambientais, é frequentemente diluído pela necessidade de provar individualmente os danos, mesmo em casos onde a magnitude do desastre torna evidente o impacto negativo na vida de milhares de pessoas. Isso esvazia a efetividade do direito à reparação e faz com que os atingidos tenham que travar batalhas jurídicas longas e desiguais, nas quais são tratados como meros coadjuvantes.
A Vale e sua estratégia de limitar a responsabilidade
A defesa apresentada pela Vale é um exemplo claro de como as corporações utilizam a legislação para minimizar suas responsabilidades. Ao limitar o conceito de “atingidos” apenas àqueles que estavam na ZAS, a empresa ignora os milhares de moradores que sofreram danos em toda a bacia do Paraopeba. Essa estratégia busca reduzir o número de indenizações e minimizar os custos financeiros para a mineradora, ao mesmo tempo que deslegitima as dores e os impactos vividos por uma população que teve seu modo de vida alterado de forma abrupta e irreparável.
A sentença, ao endossar essa visão limitada e excludente, reforça uma postura que privilegia o poder econômico e silencia as vozes dos atingidos. Ela falha em reconhecer que a reparação integral dos danos, prevista no artigo 927 do Código Civil e no artigo 14, §1º, da Lei nº 6.938/1981, deve ir além de critérios restritivos e considerar os danos difusos e coletivos, como a perda de qualidade de vida, o impacto ambiental e a destruição de comunidades.
Essa decisão também é um exemplo claro de neocolonialismo judiciário , onde o poder econômico da Vale se sobrepõe às narrativas e sofrimentos dos atingidos. O Judiciário, ao privilegiar os argumentos técnicos e processuais da mineradora, deixa de lado a subjetividade dos atingidos, tratando-os como meros coadjuvantes em um processo que deveria ter como foco principal seus direitos.
Os atingidos, que deveriam ser os autores legítimos de suas próprias histórias, são tratados como vítimas sem voz, cujos relatos são descartados como “lamentações sem provas”. Enquanto isso, os argumentos da Vale são aceitos sem o mesmo rigor, com a empresa limitando sua responsabilidade apenas aos residentes da “zona quente”, ignorando os milhares de outros atingidos que sofreram com o desastre de diversas maneiras.
A Necessidade de Uma Abordagem Protetiva
A sentença falha em considerar que o rompimento da barragem é um evento que transcende a dimensão individual dos danos. Ele é, essencialmente, um dano coletivo , que atinge o tecido social, econômico e ambiental de toda uma comunidade. Nesse sentido, o Judiciário deveria adotar uma postura protetiva, levando em conta os princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal) e da reparação integral (art. 944 do Código Civil) , para garantir que os atingidos recebam a indenização justa pelo que perdeu.
Ausência de audiência: quando a voz dos atingidos é silenciada
Além disso, é crucial que o tribunal revise a ausência de uma audiência de instrução e conciliação , que privou os autores da chance de manifestar diretamente suas dores e perdas. Esse procedimento é um pilar do devido processo legal (art. 5º, LIV da Constituição) , e sua omissão reflete uma exclusão simbólica das vozes dos atingidos do processo decisório.
A sentença foi proferida sem que houvesse uma audiência de instrução ou conciliação, o que representa uma violação clara dos princípios do contraditório e da ampla defesa previstos no artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal. A realização dessas audiências é essencial para que os autores possam expor sua versão dos fatos, suas dores e suas perdas de maneira humana e direta, algo que não pode ser substituído por laudos periciais muitas vezes insensíveis à dimensão subjetiva dos danos. O resultado é a manutenção de um sistema onde o poder econômico dita as regras e os direitos humanos são secundarizados.
Crítica à aplicação seletiva de conceitos legais: Sentença ignora o alcance da Lei 23.795/2021 e restringe a definição de “atingidos” à Zona de Auto Salvamento
A sentença que negou indenização aos atingidos do rompimento da barragem de Brumadinho reflete uma interpretação restritiva e, em certa medida, equivocada das normas regulamentares, ao utilizar a Lei 14.066/2020 , que delimita a Zona de Auto Salvamento (ZAS) , como principal classificação para definir quem são os atingidos pela tragédia. Essa decisão contraria frontalmente o espírito e a letra da Lei Estadual 23.795 de 2021 , que institui a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (Peab), e define de forma muito mais abrangente quem são as pessoas atingidas por barragens.
O que diz a Peab: uma definição ampla
A Lei 23.795 de 2021 , no artigo 2º, traz uma definição clara e ampla de quem são os atingidos por barragens, considerando como tal qualquer pessoa prejudicada ainda que ambientalmente por impactos socioeconômicos. A lei enumera uma série de situações que vão muito além da ZAS, contemplando perda de posse ou propriedade de imóveis, perda de capacidade produtiva da terra, impactos sobre a pesca, redução de fontes de renda, deslocamento compulsório, prejuízos à saúde e à qualidade de vida, entre outros. Esses fatores, conforme a Peab, configuram uma condição de impacto de forma muito mais inclusiva e realista, ao considerar o contexto socioeconômico e os impactos indiretos do desastre.
A sentença: uma interpretação restritiva que favorece a Vale
Ao utilizar a Lei 14.066/2020 e se limitar à Zona de Auto Salvamento para decidir quem tem direito à reparação, a sentença ignora os princípios fundamentais da Peab, que reconhece que os efeitos de uma barragem não se restringem ao alcance imediato da lama ou rejeitos. Ao adotar essa abordagem, o Judiciário perpetua a estratégia da Vale de minimizar sua responsabilidade, limitando o número de pessoas que podem ser formalmente reconhecidas como atingidas.
A decisão judicial falha ao não considerar os danos difusos e coletivos que atuam em toda a região afetada, como a destruição das atividades econômicas, o deslocamento compulsório das famílias, a ruptura de circuitos econômicos locais e a exclusão das condições de saúde e qualidade de vida. De acordo com a Política Estadual dos Atingidos , mesmo quem não perdeu sua casa ou não pertence diretamente à “zona quente” pode ter sofrido perdas significativas, como a incapacidade de continuar trabalhando, queda no valor da terra ou até a perda de fontes de água e alimentos.
Novamente identificamos o neocolonialismo judiciário. Ao aplicar de forma seletiva uma norma federal, que favorece os interesses econômicos da mineradora, e ignorar a legislação estadual, que foi criada especificamente para proteger os direitos das pessoas atingidas, o Judiciário se coloca ao lado do poder econômico, e não da justiça social . Esse tratamento revela que as vozes das pessoas atingidas são sistematicamente desconsideradas, enquanto os argumentos das empresas são aceitos e validados.
A sentença também contraria o princípio da dignidade da pessoa humana , consagrado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal , e o princípio da reparação integral , previsto no artigo 944 do Código Civil . Ao limitar a responsabilização da Vale apenas à ZAS, o Judiciário desconsidera os impactos sociais, econômicos e psicológicos que se espalharam por toda a bacia do rio Paraopeba. O conceito de “atingidos”, conforme previsto pela Peab, é claro ao incluir perdas indiretas e difusas que afetam o sustento, o modo de vida e a saúde das pessoas.
Além disso, ao negar a audiência de instrução, o tribunal não só privou os autores do devido processo legal, mas também violou o princípio do contraditório e da ampla defesa , conforme o artigo 5º, LV, da Constituição Federal . Essa omissão impede que os atingidos apresentem suas versões dos fatos e sejam ouvidos, perpetuando a hegemonia da Vale no processo.
A estratégia da Vale e o uso indevido da legislação
A Vale se aproveita de uma leitura restrita e tecnicista da legislação para delimitar os afetados aqueles que residem na ZAS, desconsiderando os danos muito mais amplos e profundos causados à população da região. Essa postura é uma tentativa clara de minimizar sua responsabilidade e de se esquivar de um maior número de indenizações. A empresa, ao limitar sua atuação aos critérios estabelecidos pela Lei 14.066/2020, nega os impactos que, de acordo com a Lei 23.795/2021 , atingem milhares de pessoas fora da ZAS. A sentença, ao aceitar essa lógica, endossa a narrativa da mineradora e agrava a vulnerabilidade daqueles que mais sofreram com o desastre.
O neocolonialismo judiciário e a perpetuação da desigualdade
Quando o direito é usado para limitar a responsabilização e desconsiderar os impactos humanos, ele se torna um instrumento de perpetuação da desigualdade. É necessário que o Judiciário se sensibilize com a realidade dos atingidos e passe a reconhecer o valor das provas humanas e subjetivas, permitindo que as vozes daqueles que foram afetados não sejam caladas pelo poder econômico.