MÚSICA
Por Gilmar Monte (adaptação final de Renan Simões)
A série Discografias aborda a obra de alguns artistas que cruzaram minhas apreciações musicais, muitos dos quais com pouquíssimas publicações a seu respeito. O segundo artista da série é Gimu, grande amigo e influenciador que produziu uma obra espetacular e única no cenário brasileiro de música experimental. O próprio Gimu tem elaborado textos sobre seus álbuns favoritos:
Este é meu último texto para este site e vai ser sobre meu álbum An outburst, a yell, lançado em 03.05.2021 pelo selo Musica Insolita, somente em formato virtual.
As canções desse álbum foram feitas ao longo de 2020 e, provavelmente, nos primeiros meses de 2021 também. Antigamente parecia mais fácil lembrar ou saber exatamente qual foi o período em que fiz as canções que se tornariam um álbum. Depois que mudei do ES para o RS, em 2017, tudo ficou confuso demais. Um borrão. Antes disso havia morado por uns sete anos no mesmo apartamento. Foram anos de praticamente a mesma rotina, a mesma quantidade de horas para cada coisa que tinha que fazer enquanto não estava, de novo, dormindo. Não queria dormir “o tempo todo”, como tem sido nos últimos anos. Foi uma época de passar muitas horas no computador, um computador novinho, lindo, a 1000, fazendo música aos borbotões. Eu tinha tempo, vontade e disposição.
Vivi no RS de julho/2017 a julho/2022. Não gosto do que sinto quando penso nesse período. Pensava nele como um hiato, uma pausa. Uma volta para “a vida normal”. Coisas muito ruins aconteceram enquanto eu estava lá. Meus sogros morreram, minhas experiências profissionais foram as piores da minha vida adulta, meu marido adoeceu de vez da depressão. Tive contato com pessoas que eu achava que nem existiam de verdade, que eram uma coisa de televisão, os vilões de filmes, novelas, os personagens perversos. Meio que pirei com isso de viver em um lugar onde todo mundo parecia se importar demais com que todo mundo iria dizer ou pensar. Todo mundo parecia ser obrigado a fingir ser uma outra coisa. Fui alertado a tomar cuidado por ser sincero e aberto demais sobre mim e minha vida. Cara de assustado aqui. Será que é assim em qualquer cidade do interior? Nunca havia morado no interior.
De alguma forma parecia que estava de volta ao bairro onde cresci, nos anos 80 principalmente. Um tal de todo mundo saber ou querer saber sobre a vida do outro. Um horror! Meu marido me falava que eu finalmente havia saído da “minha bolha”. Uma interrogação aqui. Sair da bolha tem que significar viver coisas que você jamais escolheria viver? Tem que ser ruim? A bolha te protege tanto assim? Eu quero bolha, bolhas. Muitas bolhas. Me enfie dentro de uma, dentro de outra, dentro de outra, e de mais outra, e depois enfie todas dentro de outra. Faça uma matriosca de bolhas e me deixe lá. 🙂
Eu teria escolhido não ter passado por isso, sem ter tido mais esse gostinho amargo do que pessoas podem ser, porque eu sempre escolhi acreditar que pessoas são boas, e que as ruins não são jamais a maioria. Meu marido, novamente ele, me diria que sou injusto, ingrato, porque conheci muita gente maravilhosa lá nessa cidade, que é a natal dele, e que só vejo o lado ruim das coisas. Ele me disse isso, na verdade, várias vezes. Várias pessoas me disseram isso a vida toda, e eu sei que tenho talento para pender para esse lado, de achar que tudo é ou foi uma merda, que tudo tá ou foi ruim, e que o copo tá meio vazio, e responder “oi gimu, como vc tá?” nunca foi a coisa mais fácil do mundo. Tomo lamotrigina, acho, que por causa dessas coisas. Tomo desvenlafaxina também.
Passei anos achando que era personalidade e parece que não. Que tudo é, era, foi, fruto de um cérebro meio cagado mesmo. Mas quão perfeito um cérebro tem que ser para achar que coisas NADA BOAS foram legais? Para achar que pessoas horrorosas têm distúrbios mentais também? Ah, hoje em dia eu sei que têm, e que eu deveria relevar tudo porque, afinal de contas, as cadeias estão cheias de pessoas que não receberam o tratamento psiquiátrico/psicológico adequado, ou, quase sempre, não tiveram nenhum porque nunca tiveram uma chance.
Todo dia esse exercício de tentar me convencer de que odiar não é nada legal, e de que as pessoas horrorosas, que acabam com esse mundo, precisam ser tratadas. Precisam de médicos e remédios para terem uma chance de, um dia, acordarem para a vida e entenderem que não chegamos em 2024, vindo de milhões de anos de evolução porque desgraçamos uns as vidas dos outros. Aquele momento em que paro e penso sobre o que tô escrevendo, como comecei e como cheguei nisso. Tá tudo soando meio babaca e mesquinho. Tô conversando comigo. “Péra” um segundo…
Teríamos voltado para o ES em 2020, mas veio a pandemia e ficamos presos no interior do RS. Achamos que seria “melhor” atravessar uma pandemia morando em uma cidade com uns 70.000 habitantes do que em uma capital com alguns milhões. E lá se foi 2020. E lá se foi 2021. Quero ir embora! Chega disso! Tô farto de tudo! Quero “aquela vida” de volta. Não existe aquela vida mais. Não tem volta. É o que tem sido desde que chegamos de volta ao ES, em 2022. Tem sido o que tem dado pra ser. Tá bem menos esquisito do que antes, mas ainda bem longe de estar tudo bem, tudo bom.
A palavra “outburst” pode se referir a diferentes tipos de explosões emocionais ou expressões intensas. Explosão de risos, de choro, de lágrimas, de raiva. “Yell” é um grito alto, geralmente agudo, expressando raiva, alegria, medo, etc. Faça as contas. Não tinha como eu ter dado ao álbum um título como lindas florzinhas azuis sorridentes que crescem do amor que floresce no coração da gente. 🙂 Outro título de álbum meu com vírgula. Que cara óbvio.
Meu sogro morreu em 2017.
Minha sogra morreu em 2019.
Meu amigo João Marcelo morreu (de covid) em 2021.
Ele deu uma sumida, não me mandou um alô no meu aniversário, no dia 17.03 daquele ano. Será que João sabia que meu aniversário é no dia 17.03? E os dias passam e cadê esse homem. Morava em Recife, era do interior de MG. Dias depois, em um domingo, uma amiga me manda mensagem. Ela era amiga de um amigo do João. Nós dois não tínhamos amigos em comum. Na mensagem ela me dizia que achava que eu não sabia que o João havia morrido uns dias antes, de covid. Eu não sabia. Fiz as contas, e ele já devia estar doente no meu aniversário. João jamais acreditaria que morreria TÃO ridiculamente cedo, e de covid! Ele teria rido muito disso se contassem para ele que isso aconteceria. Teria achado um abuso. Imagina se João acreditaria que morreria aos 50. Nem sei se já tinha feito 50. Mas não acreditaria MESMO! E aí? A gente faz como com esse sentimento de que a gente não vai morrer nesse momento?
Eu não fiz o An outburst… para o João, mas o dediquei a ele. A canção 5 tem um título longo por causa dele. É uma frase de uma música da banda Communards. Uma balada linda e dolorida, que João me mostrou. O título, traduzido, é Enquanto observo o sol se pôr, assistindo o mundo desaparecer, todas as memórias de você me vêm à mente. Mas vêm à mente de forma rápida e intensa. A música do Communards se chama, olha só, For a friend. Aquelas coisas…
E aí, quando penso nesse álbum, eu realmente não sei o que escrever, porque é muita nuvem escura cobrindo tudo. É um lance meio amargo que parece que volta. Sei lá. Não é trilha sonora da época, mas é música que aqueles anos deram a luz.
Estava aqui vendo os nomes das músicas e pqp! Acho que vou realmente chamar algum próximo álbum de lindas florzinhas azuis sorridentes que crescem do amor que floresce no coração da gente. E aí a música 1 vai ser a borboletinha no nariz lindinho do meu amor, a música 2 vai se chamar genoveva é o grande amor da minha vida, minha perfeição canina, a 3 como é bom acordar, olhar pra varanda e enxergar o céu azul e o dia ensolarado!, etc. Seria bem bom se coisas assim estivessem em mim naturalmente. Ainda não, mas já foi pior. 🙂 Antigamente eu não entendia os mecanismos dos sentimentos ruins. Eu odiava sem entender. Agora eu entendo e não aceito sentir coisas assim. Vai que uma hora dessas viro eu uma florzinha azul sorridente e feliz, né?
Ainda tenho uma escuridão musical pela qual zelar. Você sabe. É quase tudo pose. Vão achar o quê de mim, esse desengonço de ser humano, que faz música nublada, macambúzia? Que encontrei a paz? Piscadinha.
Esse texto é um rompante, um repente, um grito, mas, acima de tudo, uma gargalhada, que eu e João Marcelo, em nossas versões “bichas loukíssimas” teríamos dado, metendo a língua em tudo – E TODOS – o que achamos uma droga.
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Parece que ninguém conseguiu enxergar o João na capa do álbum, meio que olhando pra cima, de óculos escuros. Uma gata! Ele me diria algo assim: “Bicha! vc não poderia ter feito assim de um jeito que pudessem REALMENTE ver que sou eu na capa do álbum?! Eu sei que vc tentou imitar a capa do Songs for Drella, mas TODO MUNDO consegue ver a sombra do Andy Warhol entre o Lou e o Cale! E quem consegue me ver?! A senhora é UÓ! (mais gargalhadas)”.
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PS: Não deu tempo de conhecer o João pessoalmente.