MINERAÇÃO
Por Fernanda Perdigão
No contexto do atual debate sobre a Repactuação do Acordo referente ao Desastre no Município de Mariana em Minas Gerais, ocorrido em 05 de novembro de 2015, é fundamental realizar uma análise crítica da metodologia adotada no caso de Brumadinho. Tal análise nos permitirá avaliar a realidade do Acordo Judicial firmado em Brumadinho, amplamente promovido como um modelo a ser aplicado em situações de desastres ambientais. Esse exame é essencial para compreendermos em que medida esse acordo pode realmente servir de referência, especialmente à luz dos desafios e das críticas que surgiram.
O rompimento da barragem da Vale em Brumadinho, em 25 de janeiro de 2019, resultou em uma das maiores tragédias socioambientais do Brasil, causando a morte de centenas de pessoas e a destruição de ecossistemas inteiros. A busca por justiça e reparação dos danos levou à celebração de um acordo judicial entre a Vale e diversas instituições, incluindo o Estado de Minas Gerais, o Ministério Público e a Defensoria Pública. No entanto, ao analisarmos em profundidade o acordo e suas bases, torna-se evidente que a metodologia adotada para mensurar o valor da reparação é inadequada e deixa de contemplar aspectos fundamentais dos princípios da reparação integral dos danos, tanto socioambientais quanto socioeconômicos.
Foco econômico limitado e insuficiência na reparação integral
O acordo judicial foi estimado em R$ 37,6 bilhões, englobando diversas obrigações da Vale para compensação e mitigação dos danos, mas há uma clara predominância de uma abordagem financeira e estrutural que ignora, em grande parte, as dimensões mais subjetivas e intangíveis dos danos causados. Isso se reflete na base de cálculo que prioriza valores relacionados à restauração econômica, como investimentos em projetos de infraestrutura, compensações financeiras e outras obras, sem que seja dada a devida atenção à recuperação integral dos aspectos ambientais e sociais.
Dentre as falhas, destaca-se a incapacidade do acordo de lidar de maneira adequada com os danos intangíveis, como a perda de vidas humanas e a devastação cultural e emocional das comunidades atingidas. A quantificação desses danos não foi considerada no valor total do acordo, subestimando o impacto real sobre as famílias e comunidades que sofreram consequências irreparáveis. Essa lacuna fere o princípio da reparação integral, que exige que todos os danos, sejam eles tangíveis ou intangíveis, sejam contemplados e adequadamente compensados.
Base de estudos inadequada e metodologias falhas
A base para a definição dos valores de reparação utiliza metodologias que, como visto no estudo da Fundação João Pinheiro, são voltadas quase exclusivamente para mensurar os impactos econômicos, com foco na produção e perdas de receita tributária e de emprego. A aplicação da Matriz Insumo-Produto (MIP) limita-se a avaliar os efeitos da paralisação das atividades minerárias, sem incluir variáveis fundamentais como o dano ambiental de longo prazo e as necessidades sociais das populações afetadas.
Além disso, o próprio acordo reconhece que novos danos ambientais ou sociais podem surgir com o tempo. Apesar disso, os cálculos iniciais se basearam apenas nos danos conhecidos até a assinatura do acordo, deixando de contemplar as possibilidades de deterioração ambiental ou de agravamento das condições sociais, uma falha grave na estimativa dos valores. Isso viola o princípio da precaução e compromete a efetividade da reparação.
Desconsideração dos danos sociais profundos
Embora o acordo trate da reparação socioeconômica e socioambiental, os mecanismos para a inclusão das comunidades atingidas nas decisões, formulação e execução dos projetos não são suficientemente robustos. Há menção à participação informada das comunidades nos projetos de demandas e nos projetos de recuperação, mas essa participação está subordinada à análise e aprovação dos órgãos públicos e da Vale, colocando as pessoas atingidas em uma posição de vulnerabilidade e sem controle direto sobre as medidas de reparação.
A falta de poder deliberativo das comunidades afetadas impede uma verdadeira reparação social, que deve respeitar os modos de vida locais e as dinâmicas socioculturais. A reparação financeira não pode, sozinha, recompor as perdas subjetivas que essas populações enfrentam, como a ruptura dos laços comunitários e a destruição das suas fontes de subsistência tradicionais.
Compensações socioambientais insuficientes
Outro ponto crítico é a forma como o acordo trata os danos ambientais irreparáveis e a compensação por esses danos. O documento menciona a necessidade de medidas compensatórias para os danos irreversíveis, mas não estabelece critérios claros para a avaliação ou mensuração do impacto irreversível sobre os ecossistemas, tampouco prevê um valor específico para essas compensações. O simples reconhecimento dos danos ambientais irreparáveis não resolve a questão se essas compensações serão realmente proporcionais à magnitude do desastre.
Além disso, a compensação é tratada de maneira que ignora o tempo necessário para a recuperação ambiental. A demora entre a ocorrência do desastre e a execução das medidas de reparação pode resultar em danos adicionais, como a perda de serviços ambientais vitais para as comunidades, que dependem diretamente da qualidade dos recursos naturais para sua sobrevivência.
A necessidade de uma revisão dos critérios de reparação
O Acordo Judicial de Brumadinho apresenta falhas estruturais que comprometem o princípio da reparação integral. A predominância de uma abordagem financeira e economicista, combinada com a subestimação dos danos intangíveis e socioambientais, resulta em uma resposta insuficiente frente à magnitude da tragédia. É essencial que os critérios utilizados para definir os valores de reparação sejam revistos, de modo a incluir mecanismos mais robustos de participação das comunidades afetadas, avaliações completas dos danos socioambientais e provisões claras para lidar com os impactos futuros ou ainda desconhecidos.
O processo de reparação deve transcender os limites financeiros e técnicos impostos pelo acordo atual e se concentrar em restaurar de maneira integral o tecido social, ambiental e cultural das regiões afetadas, garantindo que a justiça seja realmente alcançada.