CRÔNICA
Por Guilherme Maia
Herculano tinha medo do que sentia. Pensava que tinha sido acometido de septicemia, seu sangue sendo devorado por bactérias, uma razão que não fazia parte de sua natureza. Doença? Sim, era uma doença que se alastrava por seu corpo, tomando cada poro, dominando seu cérebro.
Como todos os garotos de Vila Valqueire, tinha o objetivo de ser o grande comedor, o devorador das meninas que passam em seu raio de visão imediata, o rei da bola no futebol e, um dia, poder ser tão rico a ponto de xingar alguém na rua sem motivo algum para, logo em seguida, pagar a indenização devida tornando o Poder Judiciário impotente frente à grana.
No meio da turma se destacava como o mais forte, entupia qualquer um de porrada e com requintes de sadismo dava por encerrada qualquer tentativa de suplantá-lo como o maioral da paróquia. No concurso de “pênis longo” era o campeão dos campeões.
Como podia então sentir aquele íntimo comichão ao ver os rapazes nus no vestiário do time após a pelada? No começo entendeu como admiração viril dos seus pares, os fortes jogadores que se esmeravam no ganho do futebol. Aos poucos foi estranhando seus sentidos, escondia seu membro hirto se banhando de costas para os outros.
De elevação em elevação quando brigava na rua com algum outro garoto, sentia prazeres inenarráveis na submissão do oponente e batia com um gosto erótico em quem se aventurava a desafiá-lo.
Forçou a frequência na Igreja do Poço fundo do Jacó no intuito de controlar seus impulsos, mas passou a admirar de forma inadequada o pastor Cirilo, com sua voz imponente de falso velho, rouco cavernoso que imprimia autoridade de ancião aos fiéis. Parou de ir ao culto quando se fez de possuído pelo capiroto para poder bolinar as coxas bem torneadas do líder espiritual. Aquilo para Herculano foi a gota d’água e uma heresia.
Jurema chegou em Vila Valqueire em março e tinha uma presença marcante como as águas do Tom Jobim. Era alta, sorriso irônico sempre iluminando de inteligência seu rosto lindo de Barbie Zona Oeste. Os rapazes logo de cara derreteram diante dela e Herculano, por mais indiferente ao sexo daquela deusa jovem e ardente, não deixou de participar daquele idílio: tinha que ser o maioral e conquistar ela era parte de seu predomínio sobre a rapaziada.
– E aí, bebê, chega aqui pra eu te falar umas coisas. – Fez presença Herculano. – Tu é muito gata e eu tô afinzão de conhecer melhor isso aí que você tem.
– Como é que é? – Surpresa, responde Jurema.
– Tô dizendo que te quero e é agora, você passando me deixa cheio de vontade, tô te querendo, sua linda.
– Então pega uma gelatina e se esfrega nela pensando em mim, seu escroto.
Esse foi o primeiro diálogo entre os dois, o primeiro de muitos. A verdade é que alguma coisa de Herculano atraiu a nova do bairro e ela foi se intrigando mais e mais com aquilo.
Das investidas diretas dele ela se desviava heroicamente, mas passou a deixar uma ponta de esperança no rapaz.
Então, num feriado de Corpus Christi, houve o grande debate entre os dois.
– Pô, minha gata, libera aí, eu fico doido contigo e quero você como sol quer o mar (ele lera Vinícius de Moraes para se apresentar melhor).
– Tu tá se esforçando mesmo, hein, ô garanhão da fome. – Sempre ríspida e de inteligência rápida, deu o braço a torcer para o cretino. – Vem tomar sorvete na praça comigo.
“É agora, papai”, ele pensou. Comprou sorvete a prestação para ela e prometeu a ela que era o cara mais apaixonado do mundo.
Como hoje estamos na era do “vamo chegando logo”, o sorvete rendeu uma volta e a volta rendeu um escurinho no canto da Praça Saiqui, tradicionalmente arborizada pelos segredos das sombras das grandes copas. Ou seja, para a garotada sem grana uma sombrinha vale por um hotel cinco estrelas, tudo depende da imaginação na cidade maravilhosa.
– Olha, lindão, vou te falar direto na lata, eu gosto é de mulher! – Sem rodeios, Jurema foi verdadeira como o Clodovil nos seus melhores momentos.
– Mas… ,mas… ,mas,,, – Incrédulo tatibitate de Herculano. – Por quê? E não estamos aqui no matadouro? Por que ‘cê veio aqui comigo, então?
– Porque eu entendo você, eu me liguei na tua ideia desde que te vi a primeira vez. Tu gosta de homem, gatão, e está querendo me usar de escada para mudar o assunto pros teus amigos.
Era uma surpresa bem grande aquela, do tipo um aneurisma, e ao mesmo tempo uma chance única de aliviar aquele segredo que o comia por dentro. Poderia aquela garota entender tanto do assunto e, por sua vez, estava tão estampado na cara dele ser homossexual?
– Eu… – Primeiro momento hesitante.
– Você é gay, amigão. Mas pode ser que a gente tente algumas coisas interessantes aqui, “tudo vale a pena se alma não é pequena”, o professor de português disse que um poeta falou isso.
E sob o dossel daquela árvore, Jurema ensinou uns truques que elevaram Herculano aos céus para, logo em seguida, pedir novas flores astrais. Assim ele pode se revelar pelo prazer provocado pela garota mágica.
Nada mais seria como antes.
“Cara, você viu como o Herculano tá diferente?” – a rapaziada sussurrava na encolha, ainda com medo da fortaleza do maioral.
“Ele tá passando batom e usando shortinho apertadinho, será que ele…?” O medo do histórico de pancadaria impedia os garotos de completar a frase.
No domingo, a tradicional pelada e Herculano chegou de vestido, um vestido roxo com lacinhos coloridos, as cores de sua libertação pessoal associadas ao grande arco-íris do amor que não vê limites ou medo: Herculano era agora plenamente ele, era verdadeiro e continuava o mais forte de todos, apenas mudara as vestimentas e falava com mais coragem do que antes.
Saiu atropelando uns quatro logo de cara. Quebrou umas canelas e fez de seu time mais uma vez o vencedor da jogada.
E lá, na primeira fila da torcida, estava Jurema, sua maior admiradora.
Numa corrida que veio de um lado do campo para outro, sozinho, ele driblou todos os do outro time, com suas vestes cintilando e enfunadas pelo vento contrário, vinha como uma valquíria sobre uma terra devastada.
Um espetáculo lindo de se ver. O movimento da liberdade. E, sem perder sua natureza máscula de jogador de futebol, juntava força com alegria de se conhecer total e sem restrições impostas.
Ao comemorar a vitória, Jurema correu para seus braços e numa atitude de cavaleiro que conduz a dança, enlaçou Herculano, curvou-o como a mocinha da novela das oito e tascou um beijo daqueles de língua no seu herói causando alvoroço em todos os presentes.
O amor tem muito dessas coisas em Vila Valqueire.