Mulheres se organizam para doar leite materno a bebê, após uma delas ter se recusado a dar leite em pó para a filha, mesmo depois um câncer de mama. Atitude dá início a rede de solidariedade.
Os sete bebês criaram uma comoção na pequena loja de doces na Vila Mariana, em São Paulo, na tarde deste sábado (09/05). Na véspera do Dia das Mães, o grupo de mulheres e seus filhos havia se reunido para comemorar pela primeira vez não somente a data, mas os seis meses de amamentação da Luana.
A bebê, cuja mãe não pode amamentar devido a um câncer, têm recebido doações de leite materno desde o nascimento. “Eu sinto o quanto elas se doam. E como têm um carinho pela Luana, porque ela foi nutrida com parte delas. É um leite de amor”, conta emocionada Anne Andriov, de 40 anos, mãe da bebê.
O grupo é formado por 35 mulheres, dentre as quais oito doam leite de forma mais regular. A prática da lactação adotiva – mais conhecida pela expressão “amas de leite” – é desaconselhada pelo Ministério da Saúde, pela possibilidade de transmissão de doenças infectocontagiosas.
No caso de Anne, as doadoras fazem exames médicos regularmente e tomam cuidados com a esterilização dos recipientes onde é armazenado o leite. Mesmo assim, afirmam os especialistas, há um risco de contaminação, e o recomendável é que as mães se dirijam a um banco de leite, onde o material é pasteurizado e testado.
Foi o que Anne fez no início da gestação, quando procurou hospitais para obter doações, mas teve seu pedido recusado. Com estoques baixos, os bancos dão prioridade para bebês prematuros, recém-nascidos de baixo peso, portadores de alergias ou patologias.
Câncer não tirou o sonho de ser mãe
A presença das mães e bebês movimentou a loja de doces. Funcionários abriram espaço entre os móveis, tiraram fotos e até distribuíram pipocas coloridas de cortesia. Os clientes passavam e paravam para desejar “feliz Dia das Mães” adiantado.
Entre abraços, conversas e risadas, as mulheres contam que se conheceram em palestras e consultas coletivas durante a gestação – por isso, os bebês têm apenas alguns meses de diferença de idade. Em uma das reuniões, Anne expôs sua história e manifestou o seu enorme desejo de dar leite materno para a filha.
“Era algo muito importante para mim, porque eu sabia dos benefícios em relação ao leite em pó. Quando eu engravidei, foi algo que eu tive que trabalhar na minha cabeça, o fato de não poder amamentar”, conta.
Há cinco anos, Anne teve um câncer de mama agressivo e passou por uma cirurgia para retirar os seios. “Eu sempre quis muito ser mãe, mas, quando eu achei que estava preparada, veio a doença”, lembra.
Mesmo curada, a radioterapia e quimioterapia debilitaram seu sistema reprodutivo e ela teve que fazer uma inseminação artificial para conseguir engravidar. No total, foram quatro anos de tratamento para finalmente ser mãe.
Rede de apoio
“Quando a Anne contou o que ela tinha passado e que precisava de doadoras, eu disse na hora que ela podia contar comigo”, afirma Stella Manzano, de 37 anos.
Carina Stadié, de 38 anos, faz doações para Anne e para um banco de leite. “Eu tenho uma produção grande, preciso tirar uma parte de qualquer jeito, senão fica empedrando. Isso acontece com muitas mulheres”, diz ela.
Mesmo quem não podia doar se juntou às mães para partilhar experiências sobre a maternidade, e o grupo cresceu. Através do Facebook, WhatsApp e telefone, elas trocam dicas, confidências e desabafos, e marcam encontros regulares.
“Estamos passando pelas mesmas fases. São vivências muito específicas da maternidade, que nem sempre outras pessoas entendem. É bom poder conversar com quem está na mesma situação. É uma rede de apoio e solidariedade”, explica Stella.
No grupo, cada mês de amamentação de Luana é comemorado, o que incentiva as mães a continuar doando. “Fazemos metas e damos dicas de como aumentar a produção”, afirma Stella.
Orientadas por médicos, as mulheres esterilizam as bombas de sucção e os recipientes de coleta do leite, que são colocados no freezer. Para recolher os frascos, Anne e o marido precisam passar por várias regiões da cidade, mais de uma vez por semana.
Riscos de contaminação
Para os especialistas, ainda que o grupo tome certos cuidados, há um risco de contaminação. “Há uma janela imunológica, ou seja, o vírus pode não aparecer em um exame e, depois de uma semana, ser identificado”, explica a gerente do Centro de Referência Nacional e Ibero-americano para Bancos de Leite Humano, Danielle Aparecida da Silva, da Fiocruz.
Além disso, por ser rico em nutrientes, o leite materno é um meio propício para a proliferação de bactérias, presentes na pele da doadora ou no ambiente.
Por isso, Silva afirma que o grupo de mulheres deveria realizar as doações em um banco de leite, onde esse material seria testado e pasteurizado antes de ser devolvido à mãe, além de poder beneficiar outros bebês. Ela reconhece, entretanto, que esse serviço não está disponível em qualquer local.
“Esse seria o melhor mecanismo. Mas há hospitais em que o banco de leite é pequeno e serve somente para atendimento interno, para os bebes que estão na UTI. Então, para isso, é melhor buscar os centros de referência, onde há mais estoque e uma equipe maior”, diz.
Ao contrário do que ocorre com as doações de sangue, que podem ser encaminhadas para uma pessoa específica, os bancos de leite brasileiros não costumam seguir essa prática.
Importância da doação
No Brasil, os estoques dos bancos de leite não conseguem suprir a demanda, que é entre 30% e 40% maior, segundo Silva. Ela defende, portanto, uma maior conscientização da importância das doações.
“As maternidades entregam tanta coisa para a mãe quando o bebê nasce: cupons, amostras grátis e kits. Deviam incluir um folheto sobre a doação de leite. Muita mãe não doa por falta de informação”, diz Carina.
Para doar, não é necessário ir até um banco. A mulher pode fazer a captação em casa, após orientação dos funcionários, que passam para recolher os frascos.
Tampouco há uma quantidade mínima. “Tem mulher que doa 50 mililitros por semana. Temos bebês tão pequenos que 2 mililitros já é uma dieta. E esse leite pode auxiliá-lo a sair desse período de risco”, diz Silva. De acordo com ela, são 212 bancos de leite no país – 54 no estado de São Paulo.
Os especialistas reforçam que o leite materno é muito superior ao leite em pó. “A diferença é total. Os nutrientes presentes no leite de vaca são específicos para a vida do bezerro, não para a humana”, afirma Silva.
Além disso, o leite materno transmite a memória imunológica da mãe, protegendo o bebê de doenças ajudando no desenvolvimento físico e neurológico.
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