Por Carlos Matos Gomes (*)
Se se recordam, a justificação dos Estados Unidos para o lançamento das bombas atómicas sobre Hiroshima e Nagasaki foi a da destruição final da ameaça do que restava da capacidade militar do exército do Japão. Na realidade o que restava do Japão em Agosto de 1945 era a milenar identidade do povo do Japão, que se mantém, apesar da sujeição a que politicamente o Japão e os japoneses estão sujeitos (como os alemães, aliás). Os ataques dos EUA mataram entre 90 mil e 166 mil pessoas em Hiroshima e entre 60 mil e 80 mil em Nagasaki. Em ambas as cidades, a maioria dos mortos eram civis. Existem duas interpretações sobre as razões do ataque: os americanos defendem que os bombardeamentos colocaram um ponto final no conflito que sem ele duraria mais tempo e custaria mais vidas. Outras interpretações mais distantes das que representam o interesse americano referem o objetivo dos Estados Unidos se tornarem os senhores absolutos do Pacífico no pós-guerra, de se apresentarem como a super potência tecnológica que iria determinar o futuro do planeta.
O presidente Truman, dos Estados Unidos, afirmou a propósito do ataque: “Se eles não aceitam os nossos termos, podem esperar uma chuva de fogo vinda do ar nunca antes vista na Terra.” O ministro da defesa de Israel e o chefe do governo já disseram o mesmo, quase com as mesmas palavras.
O que carateriza o ataque atómico dos Estados Unidos ao Japão é a desproporção dos meios utilizados, a sua desumanidade, o desprezo pelas populações, pelas consequências, a invocação de um hipócrita direito de defesa, o objetivo de domínio de um território, de eliminação de qualquer oposição, de demonstração de força a vizinhos e à comunidade internacional.
O ataque de Israel a Gaza segue linha a linha a narrativa utilizada pelo Estados Unidos para justificar o ataque nuclear.
Não se trata de facto, de nenhuma ação de defesa de Israel. Israel possui o mais poderoso aparelho militar da região — eufemisticamente designado por Forças de Defesa! — e o apoio do maior aparelho militar planetário, o dos Estados Unidos, com o seu hegemónico sistema de alta tecnologia espacial. O Hamas é militarmente uma organização de guerrilha, com capacidades muito limitadas de reabastecimento de armas (sempre armas ligeiras e de baixa tecnologia) e de acesso a sistema de informação essencial para a condução de operações. Quando os chefes de Israel falam do Hamas como ameaça estão a ofender a inteligência das pessoas comuns e estão-se a desconsiderar a si mesmo: o Exército de Israel teme o Hamas? Os dirigentes políticos de Israel consideram que o Hamas pode destruir o Estado de Israel? A comunicação social repete até à exaustão o slogan da defesa de Israel e da ameaça do Hamas. Mas esta manhosa e ridícula falácia tem apóstolos!
Outra falácia é a de Israel ser a única “democracia” da região! Uma democracia de apartheid religioso! Os defensores desta tese entendem que um genocídio cometido por uma “democracia” é diferente de um genocídio praticado por uma ditadura. Os mortos que os distingam.
Também foi um estado democrático, os EUA, que lançou as bombas atómicas. Já agora, também foi outro estado democrático, um exemplo para o mundo, a Inglaterra, o responsável pelo maior genocídio reconhecido do século dezanove, o de 60 milhões de africanos que o inglês Cecil Rhodes eliminou na África Austral. Este inglês muito inteligente e ambicioso era, tal como os atuais dirigentes israelitas, um racista religioso e justiçava a eliminação de outros povos com a superioridade do homem branco, tal como o regime de Israel justifica a eliminação de não judeus, em particular de palestinianos. Descreveu o pensamento que justificou o genocídio no seu testamento (Last Will and Testament): “Considerei a existência de Deus e conclui que há uma boa hipótese de ele existir. Se for verdade, deve ter um plano. Portanto, se devo servir a Deus, preciso descobrir o plano e fazer o melhor possível para o ajudar a executá-lo. Como descobrir o plano? Em primeiro lugar procurar a raça que Deus escolheu para ser o instrumento divino da futura evolução. Inquestionavelmente, é a raça branca… Devotarei o resto da minha vida ao propósito de Deus e a ajudá-lo a tornar o mundo inglês”.
Os dirigentes de Israel, dos Estados Unidos e da Europa, o dito Ocidente Alargado, habitado pelo “homem banco”, cristão e judaico, seguem os mesmos princípios religiosos de Cecil Rhodes. Gaza, tal como a África, tal como Hiroshima e Nagasaki são apenas territórios de seres sub-humanos que podem ser eliminados como qualquer espécie inferior. Contra eles o homem ocidental pode lançar as suas mais destruidoras armas e os seus mais ferozes animais de ataque.
O facto de vivermos, no Ocidente, em regimes de representação através do voto, torna-nos a todos cúmplices do genocídio do colonialismo, da bomba atómica e, agora, de Gaza.
(*) Carlos Matos Gomes é um dos mais conceituados militares e historiadores da guerra colonial portuguesa. Nasceu em 1946.
A sua carreira militar iniciou-se em 1963. Cumpriu comissões durante a guerra colonial em Moçambique, em Angola e na Guiné, nas tropas especiais Comandos. Na Guiné foi um dos fundadores do Movimento dos Capitães e participou na primeira Comissão Coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA) que organizou a revolta militar de 25 de Abril de 1974, a qual trouxe a liberdade e a democracia a Portugal e a independência de todas as colónias africanas. Militar no ativo até 2003, é atualmente Coronel na situação de reserva. Desenvolveu também uma carreira literária, com o pseudónimo de Carlos Vale Ferraz.