Carlos Fino (*) entrevistado para a PRESSENZA por Vasco Esteves
Carlos Fino nasceu em Portugal e foi durante 4 décadas repórter de rádio e televisão, correspondente de guerra, apresentador de serviços noticiosos, conselheiro de imprensa. Esteve no Leste da Europa, no Médio Oriente e no Brasil. Trabalhou sediado em Lisboa, Moscovo, Bruxelas, Washington e Brasília. É porventura o mais conhecido repórter português em todo o mundo. Foi um jornalista premiado, escreveu livros e doutorou-se em Ciências de Comunicação. Em 2022, regressou a Portugal para – como ele próprio diz – “não estar mais na boca de cena da política internacional e do jornalismo e levar uma vida mais tranquila” com a sua mulher, procurando viver, à boa maneira dos antigos, a sua “aurea mediocritas”.
Logo à chegada a Portugal em 2022, no entanto, eclodiu a guerra da Ucrânia, cujo desenrolar o choca profundamente. Manteve-se relutante em intervir, mas agora decidiu abrir uma exceção e dar esta entrevista exclusiva à PRESSENZA sobre as suas experiências no Leste da Europa e as possíveis ilações geopolíticas que esse saber, de experiência feito, permitirá fazer.
Na primeira parte da entrevista, publicada há poucos dias, abordaram-se as experiências de Carlos Fino em Moscovo e durante o desmoronamento da União Soviética e o desmembramento forçado da Jugoslávia.
Nesta segunda parte, ele fala sobre a atual guerra na Ucrânia, a Europa de Leste em geral, assim como sobre a desglobalização em curso e a nova ordem mundial emergente.
A atual guerra na Ucrânia
Pressenza:
Falemos agora da atual guerra na Ucrânia. Carlos, onde estava e qual foi a sua primeira reação quando soube que as tropas russas tinham invadido a Ucrânia no ano passado, em Fevereiro de 2022?
Carlos Fino:
Estava a regressar a Portugal vindo do Brasil. Eu vinha com a determinação de não estar mais na “boca de cena” da política internacional e de levar uma vida mais tranquila. Nesse aspeto, esta entrevista é uma exceção que faço. Toda a minha vida foi “gasta” e dedicada à política internacional e ao jornalismo e eu queria afastar-me um pouco disso e fazer aquilo que os antigos chamavam de “aurea mediocritas”, que é estar aqui a desfrutar das coisas boas da vida, longe da grande cena. Mas fiquei chocado com o próprio desenrolar dos acontecimentos.
Embora, em boa verdade, o desencadear das hostilidades fosse cada vez mais expetável, pois a Ucrânia está situada precisamente na fronteira de duas grandes placas tectónicas em termos geopolíticos: o Ocidente e a Rússia. Ela encontra-se, portanto, numa situação muito delicada, que exigiria políticos com grande conhecimento e capacidade para evitar que se chegasse a este ponto.
No entanto, dado o que se vinha passando desde 2014, primeiro com o afastamento pela força do presidente ucraniano que tinha sido eleito em escrutínio validado pela OSCE, e depois a criação dum regime abertamente anti-russo em Kiev e que fazia ataques militares contra o Donbass (que não se queria sujeitar a essa mudança de 2014), uma situação que se prolongou por 8 anos, com milhares de vítimas, era portanto cada vez mais expetável, e até inevitável, que a certa altura a Rússia interviesse – como o veio a fazer.
A guerra da Ucrânia podia ter sido evitada pelo Ocidente?
Podia, claro, seria muito simples: bastava não fazer finca-pé da entrada da Ucrânia na OTAN, ou de ir postergando isso e de garantir o estatuto de neutralidade ao país. Não tem nada do outro mundo: a Áustria manteve-se neutral desde o fim da 2ª Guerra Mundial, só lucrou com isso. E, por outro lado, do ponto de vista interno, Kiev podia muito bem reconhecer a autonomia de Donbass, como Portugal reconhece a autonomia dos Açores ou como a Espanha reconhece a autonomia da Catalunha. Isso teria evitado a guerra.
Portanto, não acha que na Ucrânia o Ocidente esteja a defender a democracia contra as ditaduras — ou pelo menos contra uma ditadura –, mas sim a defender os seus próprios interesses económicos, estratégicos, geopolíticos…
… sim, geopolíticos, pelo menos como eles são entendidos pelas atuais direções ocidentais. Mas nós podemos imaginar uma outra orientação, uma orientação de reconhecer a legitimidade das preocupações russas com a segurança. Não vejo porque isso não poderia ter sido feito. A Rússia tem obviamente preocupações de segurança que podem ser atendidas e que até certo ponto são legítimas e podem ser pelo menos objeto de negociação. Mas agora, pelos vistos, a corrente neo-con[servadora] que domina em Washington entendeu que não, que esta guerra é a maneira de enfraquecer ainda mais a Rússia; por isso a guerra se tornou praticamente inevitável.
Defender a democracia, mas qual democracia? O atual regime de Kiev proibiu pelo menos 11 partidos ucranianos, quis impor o uso da língua ucraniana mesmo em regiões que são russófonas, proibiu canais de televisão: os padrões democráticos do regime ucraniano estão longe da normalidade democrática europeia.
Então esta guerra é, do lado ucraniano, uma “guerra por procuração” dos EUA contra a Rússia, e que a Ucrânia está de certa forma a ser sacrificada para objetivos que não são os seus…
…é o que parece. No limite, esta é uma guerra entre primos pela disputa da herança soviética. Isto podia ter sido limitado a um conflito regional, e não ter sido transformado num conflito de princípios de alcance mundial, que até pode levar à 3ª Guerra Mundial e a uma catástrofe nuclear. Isso não teria de ser necessariamente assim. Ali há outras coisas por detrás. Dizer que se trata duma guerra da democracia contra a ditadura, é um “tour de force” para efeitos de propaganda. A mim, sinceramente, de tudo o que leio, parece-me que o regime ucraniano não é nem mais democrático nem menos corrupto que o regime russo.
Então esta é uma guerra que foi provocada até certo ponto pelo Ocidente e pela OTAN?
Pois, digamos que ela foi provocada sobretudo com a mudança de regime em Kiev, em 2014. No fundo, esta é uma guerra civil, ou era-o até se transformar num conflito com a Rússia, e potencialmente num conflito de ordem mundial. Mas, ao princípio, era uma guerra interna dum país: havia uma parte do país que não se queria submeter à outra parte. Portanto, como disse, uma luta de primos pela disputa da herança soviética, com a agravante de que, da parte russa, há o argumento histórico: porque o Donbass foi russo desde o século XVIII, pois praticamente todas as grandes cidades do Donbass foram fundadas pelos russos pelo menos desde o século XVII, e falam russo, a maioria da população é russófona.
Imagine que Portugal, no final da sua fase imperial, perdia o Algarve, e o Algarve teria sido integrado na Espanha: a Espanha, em vez de aceitar a autonomia lógica do Algarve, passava a impor a língua espanhola no Algarve, proibia os canais em língua portuguesa no Algarve e mandava exércitos atacar os algarvios. Como iriam reagir os algarvios, e como iria reagir Lisboa numa situação destas?
Um outro território que também sempre quis ter uma certa autonomia, mas que isso nunca foi respeitado pela Ucrânia, é o da Crimeia. Há poucos dias li que, quando a União Soviética se desmembrou, em 1991, a Crimeia se tornou independente ainda antes da própria Ucrânia. Foi a Ucrânia que, quando uns meses mais tarde também se tornou independente, tentou integrar a Crimeia no seu seio. Esta entrou, depois saiu, voltou a entrar e de novo a sair porque, sempre que estava dentro da Ucrânia, nunca conseguiu ver respeitada a sua autonomia própria como lhe haviam prometido…
Há um contexto histórico também, há uma disputa secular com a Rússia e a influência russa no Mar Negro. Basta recordar que, no século XIX, houve duas guerras na Crimeia, com a intervenção da França e da Inglaterra, assim como da Turquia contra a Rússia pela disputa de influência naquela zona. O Mar de Azov também foi conquistado pelos russos no tempo de Pedro o Grande. A influência russa na zona veio e foi, e veio e foi, mas ela manteve-se predominantemente russa.
Também é um fator que se tem de ter em conta quando se analisa o problema: há uma disputa histórica entre as grandes potências por estarem presentes e controlar o Mar Negro que, para os russos, é o único acesso que têm para o Mediterrâneo. Os russos sempre foram predominantes naquela zona. O que está por detrás da atual guerra da Ucrânia, tem também a ver com esses interesses estratégicos de alguns países ocidentais e dos EUA em controlar militarmente o Mar Negro: se a Ucrânia entrasse na OTAN, os russos deixariam de ter acesso livre ao Mar Negro, por exemplo.
Todos estes problemas poderiam, entretanto, a meu ver, ter sido resolvidos, duma forma muito simples: se tivesse sido reconhecida a neutralidade da Ucrânia. Eu pessoalmente tenho muita pena, tenho vários amigos ucranianos, o país é uma região muito bonita, sobretudo a sul e no ocidente, mas ali há uma fragmentação histórica: o Ocidente tem influência sobretudo na parte ocidental, que tradicionalmente está mais ligada à Polónia e à Alemanha, enquanto no sul do país (pelo menos desde os séculos XVII-XVIII) dominam a língua e as tradições russas. Nestas circunstâncias dum país tão fragmentado do ponto de vista cultural, e até linguístico, a única solução possível era manter a neutralidade.
Nesse aspeto, acho que os ucranianos perderam uma oportunidade histórica. Repare: a Ucrânia nunca teve um território tão grande como hoje, pois o seu território foi sempre disputado pelos impérios à volta, ou pelo império polaco-lituano, ou pelo império russo, ou pelo império turco. Uma parte do atual território da Ucrânia tinha sido russa e foi-lhe atribuída por Lenine; mais tarde, no termo da Segunda Guerra Mundial, Stalin fez questão de que a parte ocidental (a zona de Lviv, que antigamente pertencia à Polónia) ficasse também integrada na Ucrânia; depois, já no século XX, Khrushchov entregou a administração da Crimeia a Kiev. Portanto, por várias circunstâncias históricas diferentes, a Ucrânia chegou ao fim do século XX, depois do fim da União Soviética, com um território imenso, sendo até o maior país da Europa. Se Kiev prosseguisse uma política mais democrática e neutral, tinha a oportunidade histórica de se consolidar como um grande Estado europeu, oportunidade essa que, agora, desapareceu! A não ser que haja um colapso militar da Rússia, a Ucrânia já perdeu o Donbass e a Crimeia. E, se perder a guerra, arrisca-se também a perder a parte ocidental do país, pois os polacos acham que ela pertence historicamente à Polónia. Portanto acho que foi um erro histórico do novo regime ucraniano que saiu da chamada “Revolução do Maidan” ter optado pelo confronto em vez de ter optado pela conciliação.
Só mais duas perguntas curtas sobre a Ucrânia. A primeira: quem acha que destruiu os pipelines de gás do Nord Stream, e com que intenção?
Recomendo que você fale com o Seymour Hersh …
… esse jornalista investigativo norte-americano disse que foi a CIA…
Acho que não precisamos de ir à bruxa ou de nos perdermos em adivinhações: isso mesmo foi prometido pelo presidente norte-americano Biden em conferência de imprensa, onde ele disse que os EUA encontrariam maneiras de os destruir se os russos interviessem…
Mas isso significa então um ato de guerra militar contra a Alemanha e a Rússia!
A Alemanha parece não ter feito muito para investigar quem é que o fez.
Os alemães já investigaram algo, mas fazem segredo completo sobre as suas conclusões…
Sim, mas “quem cala, consente”, não é?
E a outra pergunta curta é: como acha que vai terminar esta guerra? Que papel poderão assumir a Ucrânia e a Rússia num pós-guerra?
As previsões, normalmente, não saem certas. “Expect the unexpectable”. Como disse alguém, ou “o mais provável é o que ninguém previu”! Enfim, podem acontecer várias coisas. Os russos, para já, limitam-se a conter os ataques ucranianos e a dizimar o maior número possível de soldados e de material bélico ocidental na Ucrânia. Até que ponto os russos manterão essa tática, ou se estão à espera do momento que achem apropriado para fazerem alguma contraofensiva, e até que ponto poderá chegar essa eventual contraofensiva? Penso que os russos não estão interessados em ocupar toda a Ucrânia, mas que manterão o controle sobre o Donbass e a Crimeia. Será muito difícil pô-los fora dessas duas regiões. O que restará do Estado ucraniano depois da guerra? Até que ponto conseguirá este regime manter o elevadíssimo número de perdas humanas e de destruição de infraestruturas? Até que ponto a população irá aguentar isto sem haver alguma mudança de política em Kiev? Até que ponto os apoios ocidentais irão continuar? O que irá acontecer após as eleições norte-americanas em 2024? Muitas perguntas, muitas dúvidas, poucas respostas, nenhuma certeza. Em qualquer caso, não me parece viável voltarmos ao “status-quo” anterior à guerra.
Acha que, se o Trump ganhar as próximas eleições na América do Norte, a guerra da Ucrânia irá terminar rapidamente?
Primeiro é preciso saber se ele se consegue recandidatar. E, se o conseguir, se ganhará. Isso é uma incógnita. E o próprio Trump é uma incógnita. Embora seja verdade que, no período dele, não começou nenhuma guerra…
…ele não começou nenhuma guerra nova, mas continuou outras, por exemplo a intervenção militar na Síria. E começou uma guerra comercial contra a China. Enfim, meteu-se noutras guerras…
Isso depende dos interesses estratégicos norte-americanos, que podem estar agora mais interessados em se virar para o confronto com a China. O impasse ucraniano está cada vez mais caro…
A Europa de leste
Gostaria de fazer algumas perguntas sobre o Leste europeu em geral. Que outros países do Leste europeu cobriu com as suas reportagens?
Estive em praticamente todos os países da antiga “cortina de ferro”; em momentos críticos e/ou de transição: Roménia, Checoslováquia, Polónia, RDA, Hungria, Jugoslávia, Bulgária, Moldávia, Lituânia, Estónia, Letónia, mas também Albânia, Geórgia, Ucrânia, Arménia, Azerbaijão, Nagorno-Karabahk, Chechénia e ainda Afeganistão (após os ataques às torres gémeas). E estive na ex-Jugoslávia mais de uma vez, mas não durante a guerra – já estava então como correspondente da RTP em Washington (1998-2000).
Quais foram os momentos ou as experiências mais empolgantes que o Carlos viveu nesse período?
Mais impactantes para mim, pessoalmente e em termos positivos, foram certamente o Movimento Solidariedade na Polónia e a Revolução de Veludo na Checoslováquia. Lamento muito não ter estado na queda do Muro de Berlim, na altura eu estava de viagem para Moscovo e a RTP decidiu mandar outro jornalista para Berlim. Gostaria muito de ter podido partilhar esses momentos de alegria e de libertação. Mas o Movimento Solidariedade na Polónia, com grande influência da Igreja Católica e do Papa polaco da altura [o Papa João Paulo II], o Wojtyła, e depois também as mudanças ocorridas na Checoslováquia, foram os momentos que mais me ficaram marcados na memória.
O caso da Checoslováquia, aliás, é absolutamente exemplar de como um país se pode dividir em dois a bem, sem guerras nem conflitos: na Chéquia e na Eslováquia.
Pois, isso também podia ter acontecido na Ucrânia. Mas nem era necessário chegar a isso, pois o Donbass de início fazia parte da Ucrânia e não era necessário separar- se dela. Mas o caso mais sombrio talvez seja sido o da Roménia e das dúvidas como tudo aquilo teria sido orquestrado. Estou a falar da queda de Ceaușescu, da liquidação dele e da sua mulher. Eu estava na Roménia nesse momento.
Quando o muro de Berlim caiu, ficámos todos muito contentes. Mas na Alemanha tínhamos a consciência de que aquilo era apenas o princípio de grandes mudanças que iriam acontecer em todo o Leste da Europa, que não se tratava, pois, de um fenómeno apenas local…
O Gorbatchov tirou o tapete ao Honecker [presidente da RDA, ou Alemanha Oriental até 1989]! E, por um punhado de marcos, negociou com Kohl [chanceler da Alemanha Federal nos anos 80 e 90] a saída das tropas soviéticas da Alemanha Oriental, permitindo assim a Reunificação da Alemanha, e isso contra a promessa – nunca cumprida pelo Ocidente! – de que não haveria expansão da OTAN para o Leste da Europa.
Mais tarde, o Gorbatchov fez uma única exceção: autorizou a expansão da OTAN só para o território de toda a Alemanha reunificada, desde que, na parte oriental da mesma, não se estacionassem armas atómicas…
Mas falemos agora das implicações geoestratégicas – demográficas, económicas – desta abertura a leste, isto é, do fim da chamada “cortina de ferro”. Apercebemo-nos rapidamente de que, com o desmembramento da União Soviética, se iria dar início a um grande fluxo migratório de mão-de-obra de leste para oeste, de pessoas que queriam mais dinheiro ou melhores condições de vida ou de trabalho; e, ao mesmo tempo, uma migração massiva de meios financeiros e económicos do capitalismo da Europa ocidental para a Europa de leste. A Europa de leste tinha mão-de-obra mais barata, as firmas ocidentais compravam as fábricas e as infraestruturas dos países de leste, investiam, mas também queriam o controle total sobre as mesmas.
Na Alemanha de Leste, que se assimilou e integrou a 100% na Alemanha Ocidental, esse processo de integração foi mais rápido e mais fácil – mas também mais doloroso para as populações afetadas; nos outros países do Leste da Europa, como tinham conservado a sua independência, a integração capitalista foi mais lenta, mas também menos dolorosa, pois esses países mantiveram sempre um certo poder de decisão e, portanto, um certo controle sobre o que se passava.
A minha pergunta é: as pessoas que o Carlos encontrava na Europa de leste apercebiam-se que que estavam a ser objeto desses dois grandes “terramotos”, migratório e económico, ou estavam mais preocupadas com o seu dia-a-dia, com a sua sobrevivência, ou até com o gozarem as novas liberdades conquistadas?
O aspeto da liberdade é muito importante. Agora que as pessoas tivessem uma noção dos movimentos tectónios que iriam seguir-se, isso eu acho que não estava presente. O que mais as preocupava era o seu dia-a-dia e as coisas imediatas, como é natural. Só os políticos é que poderiam ter uma visão dos processos e das suas possíveis consequências. Mas, ao nível do cidadão comum, dava-se mais importância à liberdade de expressão, à independência política finalmente recuperada, às preocupações com o bem-estar, com o que se podia ou não comprar.
Havia sempre um fascínio muito grande pelo consumo, basta só pensarmos na velha imagem dos habitantes do Leste com a cara encostada ao vidro da montra do Ocidente… Ainda hoje existe esse fascínio, e é isso que movimenta alguns ciclos políticos como por exemplo na Moldávia, na Geórgia, etc. Essa ideia, às vezes exagerada, do bem-estar ocidental e da sedução que ele exerce. Esse bem-estar não é tão deslumbrante quanto eles pensam nalguns casos, é quase sempre mais duro de conseguir do que parece à primeira vista.
A (des)globalização em curso, uma nova ordem mundial
É o que está a acontecer agora na Alemanha de leste. Passados já mais de 30 anos sobre a reunificação, há muitas pessoas desiludidas com as experiências por que passaram, porque as promessas do Ocidente não foram muitas vezes cumpridas.
Mas olhemos para o que veio 20 anos mais tarde: essa abertura ao Leste alargou-se, entretanto, a outros países, desta vez asiáticos como a China ou a India. Já estamos numa fase posterior, aonde a mão-de-obra barata se procura agora na China ou na India, e os investimentos começam a ir também mais para a Ásia. Houve, portanto, uma nítida expansão da globalização. Só que — e isto é uma coisa que me intriga deveras! –, depois do início da guerra da Ucrânia, parece ter tudo voltado um bocado atrás: a expansão da globalização está a terminar, ou pelo menos a retrair- se, nota-se uma contração do comércio global, uma desglobalização, e até uma certa necessidade de re-industrialização por parte dos países ricos (caso dos EUA, por exemplo). Ao mesmo tempo, estão-se a criar novos blocos e uma nova guerra- fria. Em todo o mundo se assiste a um recrudescimento dos nacionalismos, por exemplo através de boicotes contra outros países, de protecionismos, ou do enfraquecimento de organismos internacionais: puseram a Rússia fora do G8, as Nações Unidas estão a perder a sua importância, a União Europeia está dividida e em parte paralisada … O que é que se passou com a guerra da Ucrânia, o que é que está por detrás disto tudo que explique esta grande viragem? ,
Será que estamos, como muitos média ocidentais afirmam, numa luta das democracias contra as ditaduras, ou será tudo culpa do Trump que, como presidente, iniciou guerras comerciais e financeiras contra a China e a Europa? Qual é a sua opinião?
Bom, isso é uma pergunta muito global, eu nunca me distingui por ser um analista de política internacional, sou – fui – sobretudo um repórter e jornalista antes do mais. Com essa questão tão vasta, você está a dar-me um crédito que eu não tenho. Só posso repetir aqui alguns lugares-comuns, por exemplo sobre a preocupação norte-americana em particular — e ocidental duma maneira geral – de que o poder da China possa representar um encurtamento, uma retração do poderio e dos interesses ocidentais, e no fundo a preocupação com a repartição do mundo, isto é, como essa repartição será feita daqui para a frente – e quem é que fica a controlar o quê. É isso que move a política.
Referiu o retrocesso da globalização e o reemergir dos sentimentos nacionalistas. Acho que isso é lógico, pois se constatou que a globalização responde mais aos interesses do capital financeiro internacional, sem ter em conta as tradições e os interesses nacionais. É, pois, natural que haja uma contenção desse movimento globalista iniciado nos anos 90. E provavelmente aquilo a que vamos assistir será a constituição de agrupamentos que vão pôr em questão a ordem internacional que resultou da 2ª Guerra Mundial, incluindo as suas principais instituições, desde a ONU à Organização Mundial de Saúde, ao Tribunal Penal Internacional, etc. Todas essas instituições estão marcadas por uma vertente muito pró-ocidental. E, com o reemergir dos interesses nacionais de outras grandes potências como a China, a India, a Indonésia, o Brasil, a Venezuela… é natural que haja uma revisão de toda essa ordem mundial vigente até agora: as questões do comércio e das leis que regem o comércio internacional, a própria há muito necessária revisão do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Portanto, muita água passou aqui sob as pontes desde a 2ª Guerra Mundial. E com a experiência sentida, em muitos aspetos negativa, daquilo que foi a globalização dos anos 90, assim como com o emergir de novas potências, é natural que essa ordem internacional tenda a ser questionada. Vamos a ver como as coisas se compõem … mas o que é certo é que as coisas estão a mexer!
O que pensa do bloco dos BRICS? Será que eles poderão dar uma contribuição válida para uma nova ordem mundial mais justa?
Isto ainda está em aberto, ainda está tudo muito no começo. Uma coisa que não abordámos ainda, é a do papel do dólar. Se grandes países como a China, a India, o Brasil, a Indonésia, países demografica e territorialmente muito importantes, e também outros como a Venezuela ou a Arábia Saudita, que têm grandes reservas de petróleo, puserem em causa o papel do dólar nas trocas comerciais, é natural que essa ordem global também seja questionada e que novas regras possam surgir. O grupo dos BRICS é ainda mais uma promessa do que uma realidade, mas a sua tendência é para o seu alargamento e, eventualmente, a sua consolidação. Não sei como irão os BRICS interagir com os G20, que agora aliás são os G21: como será, de futuro, a sua interligação, o que ficará para uns e o que ficará para os outros? Enfim, acho que já embarcámos num conjunto de mudanças que estão em curso, mas cujo resultado final ainda é uma incógnita.
Mas parece que estamos a assistir, de qualquer forma, ao recuo do império norte-americano e da sua capacidade de intervenção – o que se passou (e ainda se passa) na Síria é revelador: não foi possível ao Ocidente, e em partícula aos EUA, operar a mudança que pretendiam fazer na Síria. Essa mudança foi abortada. E isso é um indício. A retração do dólar como moeda nas trocas comerciais internacionais também é outro indício de tendências que já estão em curso. Agora com que rapidez e com que profundidade é que iremos assistir a essas mudanças, é isso o que não sabemos ainda, mas o movimento já começou.
E não falámos sequer das questões do meio-ambiente. Estamos à beira dum abismo, dum “point of no return” em relação ao aquecimento global, mas o mundo parece preocupar-se só com as guerras entre si, em conquistar zonas de influência, em formar blocos, mas não blocos para proteger a natureza e as pessoas, mas sim apenas os interesses dalguns países ou de grupos económicos.
Sim, mas por outro lado também há aí alguma incerteza científica, que limita um pouco as possibilidades de mudanças nessa área. Às vezes é tido por ciência aquilo que não passa de uma ideologia. Embora haja avanços, mas ao mesmo tempo realizam-se uma série de reuniões que não conduzem a nada e que só servem para umas centenas de “habitués” se encontrarem ora aqui ora ali por todo o mundo, sem trazerem avanços significativos.
Tendo eu vivido como jornalista o fim da União Soviética, estamos agora a viver a não-concretização das enormes esperanças que se abriram nessa altura.
Justamente naquela altura havia a ideia de que terminava a “Guerra-Fria”, que terminava o confronto global entre blocos, que seria possível uma nova era em que os homens se entenderiam melhor para resolver as questões que preocupam de facto a Humanidade há tanto tempo como a fome, as mudanças climáticas, e tudo com menos confrontos e menos guerras, menos desperdícios. Estamos a viver um grande desencanto. Será possível ultrapassar isso um dia? Estamos sempre entre o “lá e cá”. Os homens, duma maneira geral, não se congregam para grandes esforços positivos antes duma tragédia: primeiro a tragédia, depois a luta contra as consequências. E, depois, de novo uma tragédia: parece que há um destino trágico na nossa condição humana!
Conhece as posições do Robert Francis Kennedy Jr., que é agora um candidato à Presidência dos Estados Unidos em 2024? Ele diz que, se for eleito, acabará com as guerras dos EUA e dissolverá por dentro o império militar dos EUA, passando a investir apenas no desenvolvimento do país e na paz e na igualdade entre os povos.
Sim, com esse programa ele é candidato a ter o destino do seu tio [John Fitzgerald Kennedy, presidente dos EUA, e do pai, Robert Francis Kennedy, ambos assassinados nos anos 60].
O perigo das forças internas, nomeadamente do complexo militar-industrial dos EUA, contra o qual Eisenhower alertou o mundo já no final do seu mandato, é real: essas forças são muito poderosas e dominantes. O chamado “deep state” que controla os Estados Unidos da América, é muito poderoso, e de facto, dadas as atuais circunstâncias internacionais, não vejo de imediato nenhuma possibilidade de uma evolução mais pacífica e mais consentânea com os interesses reais da Humanidade. Para isso, teria de haver uma profunda mudança no interior dos próprios EUA. Quando é que isso acontecerá, se é que algum dia acontecerá, é uma incógnita.
A decadência do imperialismo norte-americano a que estamos a assistir, explica por si mesma muitos dos males e das contradições da atualidade…
Sobre isso, o que podemos dizer – como disse Mark Twain sobre os rumores da sua morte – é que as notícias sobre a morte do império americano “são um tanto exageradas”!
O império americano, a força e a capacidade de intervenção que tem, a sua presença física através de centenas de bases militares espalhadas por todo o mundo, de homens, influências, riqueza, meios de intervenção e – the last but not the least – em termos de redes de satélites e meios de influência mediática, ainda é enorme.
Carlos, teve assim uma palavra final um bocado pessimista, mas a esperança ainda não morreu. E continuaremos a lutar por um mundo melhor, mais humano.
A esperança, como se sabe, é a última a morrer. O problema é que essa nossa luta por um mundo melhor, tal como aconteceu com o comunismo, está – também ela, infelizmente! – manchada por enormes crimes. Os comunistas também vinham com essas promessas: a paz, o desenvolvimento, a fraternidade. E também ainda não passámos dos lemas gerais da Revolução Francesa: “Liberté, Égalité, Fraternité”: temos, é verdade, pelo menos em parte, liberdade, embora hoje muito controlada.
E também não falámos dos média, do poder extraordinário que os média têm – e que ninguém controla. Todas as tentativas de rever esse poder, desde o célebre Relatório McBride da UNESCO nos anos 80, patrocinado pelas Nações Unidas, ainda não houve quaisquer mudanças nessa área, e o poder dos média tem-se tornado cada vez mais forte. Depois desse relatório, os EUA saíram da UNESCO, fizeram um boicote total, e tudo “ficou em águas de bacalhau” até hoje! Nesse relatório já era denunciado o poder extraordinário de meia-dúzia de Agências de Notícias que controlam toda a Informação. E quem controla a informação, controla o mundo. E essas Agências são sempre as mesmas, algumas já vêm do século XVIII ou XIX: a Reuters, a France Press, etc. E os jornais, as grandes redes de rádio e televisão, algumas globais, controlados por um punhado de grandes magnatas. São eles que “fazem a chuva e o bom tempo”, como costumam dizer os franceses. São eles que dão sempre a nota do que se está a discutir, do que é que interessa falar. O jornalismo não faz esse trabalho hoje em dia, apesar de ter os meios próprios para o fazer: quem é que nas redações contraria a agenda que já vem marcada pelas grandes agências? Quem é que faz o esforço de ir à procura doutros temas? Tudo isso seria tecnicamente possível, mas são raros os que fazem esse esforço, ou são esforços muito ocasionais, não se faz um trabalho sistemático. O relatório McBride já questionava essas agências nos anos 80, que são as mesmas de sempre.
E a esquerda também está marcada pelo crime, esse é que é o problema: O Gulag, o assassinato do Trótski, etc.
É o que se passa na Alemanha: ela veio diretamente do nazismo de Hitler para um comunismo de tipo soviético (no caso da Alemanha de Leste, antigamente chamada República Democrática da Alemanha), portanto para uma nova ditadura. Por isso eles agora estão “queimados”, quer à direita quer à esquerda, e não sabem para onde deverão ir.
E onde está hoje o Movimento pela Paz que acabou com a guerra do Vietname? Onde está ele hoje para acabar com a guerra da Ucrânia? Ninguém levanta a bandeira da Paz!
Na Alemanha, o Movimento pela Paz estava nos anos 1960-80 associado sobretudo à revolta da juventude e àqueles que hoje fazem parte do Partido dos Verdes, que também era contra a energia atómica e as armas nucleares…
… e que, agora, é dirigido por essa rapariga Ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha [Annalena Baerbock ], uma pessoa por demais belicosa …
Sim, agora os dirigentes do partido dos Verdes na Alemanha são maioritariamente a favor de se fornecerem armas cada vez mais letais à Ucrânia para combater a Rússia. Já não têm uma posição pacifista, nem mesmo sequer de exigir negociações! Ou de pelo menos se manterem neutrais e de fazerem pressão sobre os grupos em conflito do tipo “parem lá com isso!”
Muito obrigado, Carlos, por esta entrevista!
Eu é que agradeço a lembrança e o interesse.
(*) Carlos Fino
1948: Nasce em Lisboa, mas vive e cresce no Alto-Alentejo (Portugal).
1967: Estuda Direito em Lisboa, é dirigente estudantil e membro do PCP na clandestinidade, sendo como tal perseguido pela PIDE, polícia política do fascismo.
1971: Atravessa a fronteira “a salto” (ilegalmente) rumo a Paris, seguindo daí para Bruxelas, onde obtém o estatuto de refugiado das Nações Unidas.
1973: Segue para a União Soviética, onde trabalha como locutor da Rádio Moscovo para Portugal e a África de expressão portuguesa.
1974: No fim deste ano, e a seguir à Revolução dos Cravos, regressa a Portugal e colabora com vários jornais e a antiga Emissora Nacional (EN).
1975: Em finais deste ano, regressa a Moscovo, mas desta feita como correspondente internacional da EN e, mais tarde, da Rádio Televisão Portuguesa (RTP).
1982-1989: Trabalha na RTP em Lisboa como repórter, apresentador e comentador.
1989-1995: De novo em Moscovo, cobre como jornalista o desmembramento da União Soviética e a democratização do Leste da Europa: Rússia, Roménia, Bulgária, Checoslováquia, RDA, Polónia e Hungria, assim como os conflitos na Abkhásia, Geórgia, Nagorno-Karabakh, Moldávia, Chechênia e Afeganistão.
1995- 1998: Correspondente da RTP em Bruxelas.
1998-2000 – Correspondente da RTP em Washington.
2000-2004: Cobre várias guerras e conflitos: Albânia, Palestina, Afeganistão, e também a invasão do Iraque em 2003 pelas tropas americanas, sendo o primeiro repórter do mundo a transmitir imagens ao vivo do início dos bombardeios americanos a Bagdad.
2003: Publica o livro “A Guerra em Directo”, com a chancela da Verbo.
2004-2012: Desempenha funções na diplomacia como conselheiro de Imprensa da Embaixada de Portugal no Brasil nos dois primeiros mandatos do presidente Lula da Silva.
2013: Aposenta-se e mantem-se no Brasil.
2019: Doutoramento em “Ciências de Comunicação” pela Universidade do Minho, em Braga com uma tese que serviu de base ao seu novo livro “Portugal-Brasil: Raízes do Estranhamento” publicado em 2021.
2022: Regressa a Portugal e ao “seu” Alto Alentejo.
Carlos Fino recebeu, ao longo da sua carreira de jornalista, inúmeros prémios e condecorações, nacionais e internacionais. Tem cerca de 37.000 “followers” no Facebook, tendência crescente.
A PRESSENZA publicou também uma entrevista em vídeo com Carlos Fino realizada pela UTAD TV que pode ser vista aqui.
Mais informações sobre o entrevistado aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Fino
Todo o conteúdo produzido pela Pressenza está disponível gratuitamente nos termos da Licença Creative Commons 4.0.