A batalha pela democracia em Israel, se não mesmo a batalha pela sua alma, tem sido travada desde que o atual governo de Netanyahu tomou posse, há sete meses. A aprovação da primeira ronda de “reformas” deixou uma fenda indelével na democracia de Israel; se o protesto público para impedir novas “reformas” desse género não tiver sucesso, o próprio país perderá a sua razão de ser.

Por Dr. Alon Ben-Meir (*)

Tiro o chapéu a cada um dos manifestantes israelitas, os heróis que têm saído todos os dias à rua desde há 30 semanas para protestar contra o plano sinistro do governo de “reformar” o sistema judicial. Estão bem conscientes das consequências devastadoras que essas reformas — cuja primeira fase tinha acabado de ser concluída à data desta publicação — terão para o país. Não é segredo que o governo quer usurpar o poder do imparcial Supremo Tribunal, a jóia da coroa da jurisprudência israelita que assegura o carácter democrático do país, e colocá-lo nas mãos de representantes eleitos tendenciosos e corruptos que colocam os seus interesses egoístas e a sua ânsia de poder acima do interesse nacional.

Os partidos da oposição afirmam, com razão, que a aprovação do primeiro projeto de lei sobre a “adequação” permitirá ao governo exercer um poder sem controlo e eliminar a proteção dos direitos individuais e das minorias. Além disso, polarizará perigosamente o país entre liberais seculares e messiânicos ultra-religiosos e criará uma divisão permanente que poderá conduzir a uma violência generalizada entre os dois lados – uma perspetiva que destruirá as notáveis conquistas do país em todas as esferas da vida, alcançadas através do trabalho árduo e da dedicação de muitos israelitas, abrindo assim caminho para uma ditadura.

A falsa alegação do Primeiro-Ministro Netanyahu de que a reforma judicial reforçará a democracia em Israel, em vez de a corroer, é absolutamente contrária ao que constitui a democracia tal como é amplamente praticada no hemisfério Ocidental. Mas Netanyahu, completamente consumido pelo seu inflacionado ego, pela sua mentalidade autoritária e orientação ideológica radical, esqueceu-se do que significa uma democracia. Deixem-me recordar-lhe isso.

A outra falsa afirmação que Netanyahu e os seus sequazes fazem, é a de que a maioria dos israelitas votou no seu governo, o que lhe confere um mandato para governar como bem entender. Em primeiro lugar, embora o atual governo tenha de fato ganho as eleições, foi essencialmente uma votação empatada – 2,36 milhões dos eleitores com direito de voto votaram no bloco pró-Netanyahu e cerca de 2,31 milhões votaram nos partidos da oposição – portanto cerca de 39% contra 38,9% de todos os eleitores com direito de voto. Mais de 1,3 milhões de eleitores com direito de voto não votaram, além dos cerca de 3,05 milhões de israelitas com menos de 18 anos.

A ideia de que um governo eleito por menos de metade da população possa usurpar os poderes do Supremo Tribunal consagrados na Lei Básica por uma maioria simples é, portanto, absurda, pois é completamente contrária à vontade e aos interesses da esmagadora maioria do povo. Além disso, afectará o futuro dos israelitas com menos de 18 anos – um terço da população total do país – que poderão vir a viver numa ditadura com consequências desastrosas. Dezenas de milhares de jovens abandonarão o país, conduzindo a uma fuga de cérebros catastrófica que terá um efeito paralisante em quase todos os sectores económicos e científicos do país.

Para além dos esforços para restringir maciçamente o poder judicial, o ataque à democracia começou logo no momento em que o atual governo de Netanyahu foi formado, quando cada um dos parceiros da coligação quis assegurar a sua quota-parte de poder e de riqueza financeira.

A criação e distribuição de novos ministérios supérfluos, como o dos doces, para os quais são afectadas centenas de milhões de shekels apenas para satisfazer os egos dos vários líderes partidários, é doentia e alarmantemente prejudicial para o bem-estar do país. Os fundos afectados a tais ministérios totalmente desnecessários, como o Ministério da Segurança Nacional, chefiado por um criminoso, Itamar Ben-Gvir, poderiam ter sido gastos com os pobres e necessitados: dezenas de milhares de crianças que vivem na pobreza, que vão para a cama com fome e que vivem na miséria. Isto não é democracia; isto é hipocrisia e um desperdício criminoso dos recursos do país.

Quando não existe uma separação clara entre religião e Estado, a democracia fica intrinsecamente comprometida, uma vez que infringe diretamente o direito de todas as pessoas não religiosas a viverem como bem entendem. Mas este governo alargou de facto a autoridade do partido religioso. Para além do seu controlo tradicional sobre os casamentos, divórcios e rituairs de passagem como os bar mitzvahs, circuncisões e funerais, querem agora impor uma proibição total dos voos da companhia El Al no Shabbat e impedir os tribunais de intervir em casos de violação dos direitos humanos que afectem pessoas LGBTQ, árabes ou outras minorias. Além disso, recusam-se a alistar os seus filhos no serviço militar, ao mesmo tempo que exigem e recebem todo o apoio do governo. Isto não é uma democracia, mas uma teocracia e uma violação flagrante da separação entre a religião e Estado.

Quando demagogos e criminosos – incluindo Netanyahu, que foi indiciado por suborno, fraude e desvio de fundos, Ben-Gvir, que foi sancionado pelo seu fanatismo e opiniões extremistas, e Smotrich, que quer incendiar todas as aldeias palestinianas – detêm as alavancas do poder apenas para promover os seus interesses, marimbando-se para o resto do país, estão a fazer pouco da democracia em Israel. Uma verdadeira democracia é um sistema de governo que coloca o bem-estar e a segurança do povo em primeiro lugar, mas este governo só se preocupa com a tomada de poder, que nada mais faz do que minar a reputação de Israel no estrangeiro e destruir o tecido social no país.

Quando um país é uma potência ocupante e aplica duas leis diferentes (uma para os judeus israelitas que vivem na Cisjordânia, e outra para os palestinianos), violando assim regularmente os direitos humanos dos palestinianos e sujeitando-os a uma ocupação dura e implacável, não pode ser uma democracia. Mas, agora, só resta a este perverso governo manipular a opinião pública para que acredite que os palestinianos são um perigo real e presente para a segurança nacional de Israel e que por isso têm de ser tratados com mão de ferro. A ocupação da Palestina corroeu a democracia de Israel desde o primeiro dia e, enquanto este governo autoritário se mantiver no poder e impuser a sua vontade, submetendo o poder judicial aos seus caprichos, anexará grande parte da Cisjordânia e enterrará o que ainda resta da democracia de Israel.

É terrível e vergonhoso que a Lei da Adequação tenha acabado de ser aprovada. Mas este ato desastroso e arbitrário deve tornar-se o catalisador para continuar a luta contra este governo e impedi-lo de aprovar mais leis que irão paralisar completamente o Supremo Tribunal ao nomear juízes comprometidos com a ideologia de uma perigosa seita messiânica.

Este governo tem de ser derrubado pelo povo, não só para o impedir de destruir os últimos vestígios da democracia israelita, mas também para salvar Israel da sua própria autodestruição. Todos os manifestantes que ergueram a bandeira israelita não devem permitir que a história se repita e provoque a destruição do “terceiro templo” por causa de conflitos internos, desunião, rivalidades e um governo moralmente falido e irredimível.

Cuidado, Netanyahu! A verdadeira batalha pela alma de Israel está apenas a começar agora, e tu serás recordado como o faraó desprezível que levou Israel à beira do desastre.


Tradução do alemão por Vasco Esteves para a PRESSENZA

(*) O Dr. Alon Ben-Meir é um professor reformado de relações internacionais no Centro de Assuntos Globais da Universidade de Nova Iorque. Lecciona cursos sobre negociações internacionais e sobre o Médio Oriente.