Os exércitos privados usados em guerras ex-fronteiras (e, às vezes, também em guerras civis) são uma forma ideal de “desresponsabilizar” os Estados pelas barbaridades cometidas, muitas vezes em guerras claramente ilegais. Dessa maneira, os Estados, usando uma espécie de “outsourcing militar”, entregam “os trabalhos mais sujos” a milícias e mercenários, atraindo ao mesmo tempo dinheiros privados para essas criminosas atividades. As atrocidades “privadas” são sempre mais difíceis de identificar e de perseguir…
Essas milícias privadas, por vezes sem qualquer outra ideologia que não a do dinheiro, existem infelizmente em todas as guerras: é agora o Grupo Wagner dos russos; são as milícias fascistas da Ucrânia como o Regimento Azov; mas também as milícias utilizadas e pagas pelos norteamericanos quer no Afeganistão, no Iraque, na Síria, etc.; e não esqueçamos também as tristes histórias da famosa Legião Estrangeira na França ou dos sangrentos “Freikorps” na Alemanha!
Os exércitos privados são também sinal da industrialização das guerras e da sua crescente submissão a interesses privados…


La Jornada de México

As inusitadas revelações do presidente russo, Vladimir Putin, de que o Estado russo “assumiu integralmente os custos do Grupo Wagner”, que entre maio de 2022 e maio de 2023 recebeu cerca de um milhar de milhões de dólares do governo, juntamente com outros 800 milhões para fornecer alimentos ao exército, força-nos a dar uma nova perspectiva à insurreição liderada pelo dono do referido grupo mercenário, Yevgueni Prigozhin, no último fim de semana; Como será lembrado, o magnata retirou as suas tropas do território ucraniano, tomou a cidade russa de Rostov-on-Don e ordenou um avanço para Moscovo, que foi neutralizado por meio de uma negociação na qual interveio o presidente bielorrusso, Aleksandr Lukashenko.

A declaração é chocante, antes de tudo porque mostra a ambigüidade do próprio Putin em relação ao grupo de Wagner: se na sexta-feira passada, quando estourou a rebelião, ele ameaçou com “ações muito duras” contra aqueles que deram “uma facada nas costas” no seu governo “, ontem pelo contrário expressou o seu “respeito aos combatentes e comandantes daquele grupo porque demonstraram coragem e heroísmo”. Como é sabido, o presidente russo promoveu a meteórica carreira empresarial de Prigozhin desde o seu tempo como funcionário do gabinete do prefeito de Petersburgo e, como presidente, continuou a patrocinar os seus negócios, que iam de serviços de banquetes a serviços de segurança.

Por outro lado, o que foi dito ontem pelo homem forte do Kremlin expõe em toda a sua crueza a abdicação do governo russo em relação a um princípio básico dos Estados modernos: o monopólio da violência legítima. Certamente, este princípio tem sido progressivamente abalado pelos processos de privatização das funções públicas, que têm atingido os serviços de segurança e as forças armadas.

Como será lembrado, as empresas privadas desempenharam também um papel importante na invasão e ocupação do Iraque empreendida por George W. Bush a partir de Março de 2003, que acabou totalizando cerca de 182.000 soldados no teatro de operações. Outro exemplo paradigmático deste fenómeno é a proliferação de forças de segurança privadas, que têm vindo a adoptar das polícias públicas muitas tarefas críticas de segurança pública e interna, para não falar já da transferência de serviços de inteligência para empresas privadas.

O risco de violação do princípio do monopólio legítimo da violência por parte do Estado é por demais evidente: todas as empresas privadas estão orientadas, por definição, para privilegiarem os interesses privados, enquanto as instituições públicas têm como finalidade primordial assegurar a predominância dos interesses da coletividade. Sendo assim, a entrega de recursos militares a corporações comerciais acarreta o perigo implícito de que elas acabem por direcioná-los contra as próprias autoridades, como aconteceu com a breve revolta de Prigozhin e das suas tropas. Finalmente, o que o presidente russo disse constitui uma queixa contra as forças armadas do seu próprio país, pois revela a falta de confiança para com elas por parte do seu comandante supremo. Nesta altura, não poucos oficiais russos deverão estar a perguntar-se por que não se aplicaram nas forças armadas oficiais os muitos milhões de recursos que foram destinados a uma empresa de mercenários.


 

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