Mais da metade do CO² atirado à atmosfera foi produzida pelo mundo eurocêntrico – e a pilhagem colonial bloqueia a capacidade de resposta do Sul. É hora de promover a justiça climática global – e há formas muito concretas de fazê-lo
Por Tapti Sen para o Foreign Policy in Focus | Tradução: Maurício Ayer
Pertenço a uma nação em vias de extinção.
Meu país, Bangladesh, é um dos vários que correm o risco de submergir parcial ou totalmente pela elevação do nível do mar, por causa das mudanças climáticas nas próximas décadas. Cerca de 75% do país fica abaixo do nível do mar.
Bangladesh, um país tropical assentado sobre um delta de baixa altitude, não é estranho a inundações, especialmente durante a estação das monções. Mas a extensão que essas inundações tiveram nos últimos anos não tem precedentes. Inundações em Sylhet e noutros distritos do nordeste de Bangladesh entre Maio e Junho de 2022 deslocaram cerca de 15 milhões de pessoas – aproximadamente 9% da população do país – e arrasaram centenas de aldeias apenas em 2022. Inundações e chuvas torrenciais em Julho de 2020 levaram à submersão de quase um quarto de Bangladesh.
Todas essas inundações e danos tiveram um preço inegável para a nação. Dados demonstram que entre 2000 e 2019, Bangladesh sofreu perdas econômicas no valor de US$ 3,72 milhares de milhões devido às mudanças climáticas. Apesar de sua baixa emissão de carbono, tanto historicamente e como nos dias de hoje, o país é desproporcionalmente afetado pelo aquecimento do planeta devido à sua localização.
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Falamos sobre a crise climática de Bangladesh como se fosse inevitável, como se o país fosse apenas vítima de sua própria localização. Mas a realidade é muito mais sinistra. As nações desenvolvidas são em grande parte responsáveis pelo estado das catástrofes climáticas.
Entre 1765 e 1938, a Grã-Bretanha saqueou quase US$ 45 milhões de milhões do subcontinente indiano. Parte desse saque foi “a hemorragia financeira de Bengala”, realizada não apenas por meio do assalto a seus tesouros e cidades, mas também com a exploração de seus trabalhadores e artesãos para a obtenção de matérias-primas e materiais complexos. Não é surpresa que a colonização britânica e o imperialismo andem de mãos dadas com a industrialização, considerando que a Revolução Industrial exigia matérias-primas baratas e dinheiro para que as fábricas produzissem em excesso e poluíssem. Essencialmente, não é incorreto dizer que uma das principais razões para a crise climática e as inundações de Bangladesh é sua colonização pelo Raj Britânico.
Quando tratamos do tema das emissões de CO2 e da responsabilidade pelas mesmas, precisamos nos concentrar nas emissões históricas acumuladas, pois elas são as causas da atual crise climática. Os dados mostram que 23 países ricos e desenvolvidos, incluindo os Estados Unidos, a Alemanha, o Reino Unido e a França, são responsáveis por metade de todas as emissões históricas de CO2, com mais de 150 países responsáveis pela outra metade.
Os países desenvolvidos são os principais responsáveis pela atual crise climática global, mas as nações em desenvolvimento são as mais vulneráveis aos seus efeitos. O aquecimento global, que aumentou a desigualdade econômica entre o Sul e o Norte Global em estrondosos 25%, pune os economicamente vulneráveis em benefício dos ricos, os colonizados em prol dos colonizadores. Fica claro que esta crise climática não é apenas uma questão ambiental: trata-se de colonialismo, de pobreza e de toda uma estrutura sistêmica que tem a desigualdade gravada nos seus fundamentos.
Os países desenvolvidos devem assumir a responsabilidade pela crise climática que iniciaram, pagando reparações aos países em desenvolvimento. E há várias maneiras de fazer isso.
Uma maneira muito tangível para os países desenvolvidos pagarem reparações é a realocação dos Direitos Especiais de Saque (SDRs). São reservas cambiais suplementares mantidas pelo Fundo Monetário Internacional. Parte destes SDRs foram distribuídos a bancos centrais e tesouros em todo o mundo durante a pandemia, permitindo a estas instituições recuperar quando precisam de recorrer a suas reservas financeiras durante as crises.
No entanto, os SDRs foram alocados por quota, o que significa que países em desenvolvimento de baixa renda, como Bangladesh, receberam 1,4%, países em desenvolvimento de alta renda como a China obtiveram 22%, e países ricos como os EUA e o Reino Unido, mais de 60%. Claro, os países ricos raramente precisam — se é que alguma vez precisaram — de usar os seus SDRs, enquanto os países de baixa renda muitas vezes dependem desses recursos. Acabar com esse sistema de quotas e realocar SDRs para os países mais vulneráveis às mudanças climáticas, é uma maneira viável de dedicar os recursos existentes para a mitigação das mudanças climáticas. Considerando que nem usam os seus próprios SDRs, os países desenvolvidos não teriam razões contra tal medida.
Da mesma forma, as nações mais ricas poderiam ajudar os países em desenvolvimento na realização de vários projetos de mitigação e adaptação climática. Com a Mitigação climática referimo-nos a ações que envolvem a redução dos níveis de gases de efeito estufa na atmosfera, seja reduzindo a poluição de fontes pontuais (por exemplo, a queima de combustíveis fósseis para a obtenção de eletricidade), seja aprimorando os mecanismos que capturam e armazenam esses gases (por exemplo, as florestas).
Atualmente, cerca de 63% da energia de Bangladesh vem do gás natural. Embora o governo esteja explorando fontes alternativas de energia renovável, o país já vive uma enorme crise energética que tem levado a cortes generalizados de energia. Bangladesh não pode simplesmente mudar de uma fonte de energia para outra. No entanto, as nações desenvolvidas poderiam canalizar recursos para projetos de desenvolvimento de fontes renováveis e bem exploradas de energia, como as marés e o vento, impedindo assim que a situação, que já é ruim, piore.
A adaptação climática é tão necessária quanto a sua mitigação. Os países desenvolvidos poderiam ajudar em diversos projetos de adaptabilidade climática, incluindo trabalhar com agricultores locais para desenvolver novas práticas agrícolas menos vulneráveis às inundações, fortalecer extensões costeiras de terra, prevenir a salinização da já escassa água potável ou construir “cidades amigas do clima”. Embora as ONGs tenham ajudado Bangladesh nesses empreendimentos, os países desenvolvidos também devem usar seus próprios recursos para essa transformação.
Mas a devastação causada pelas mudanças climáticas simplesmente não pode ser evitada apenas com técnicas de mitigação e de adaptação. Os países que estão na linha da frente, precisam de apoio financeiro para recuperarem de desastres inevitáveis. A expetativa é a de que os custos econômicos para os países em desenvolvimento em razão dessas perdas e danos atinjam algo entre US$ 200 e US$ 580 milhares de milhões até 2030. O Diálogo de Glasgow foi estabelecido pela Conferência de Mudanças Climáticas da ONU de 2021 (conhecida como COP 26) como resposta aos apelos de nações em desenvolvimento pedindo assistência nas crises climáticas. Zowa Shawo, cientista do Instituto Ambiental de Estocolmo, aponta diferentes princípios que a ONU e as nações desenvolvidas podem usar para financiar perdas e danos. Entre estes, estão fornecer financiamento com base nas necessidades de cada país, ou garantir que sistemas nacionais sejam usados para distribuir os fundos.
Todos os países devem reconhecer e oferecer porto seguro aos refugiados climáticos. Mais de 21,5 milhões de pessoas em todo o mundo já foram obrigadas a deslocar-se devido às mudanças climáticas. No entanto, muitos países, incluindo os EUA, na verdade não reconhecem os refugiados climáticos como “refugiados”. Quem é ameaçado não por outras pessoas, mas por desgraças ambientais induzidas pelo homem, muitas vezes não consegue solicitar asilo ou ter acesso a abrigo, alimentação ou necessidades básicas. Essa negligência faz com que os refugiados climáticos, como diz a rede de mídia alternativa NPR, “caiam pela grelha”.
As nações desenvolvidas não estão muito preocupadas com as mudanças climáticas porque, pelo menos nas próximas décadas, os desastres e as alterações do nível do mar não irão perturbá-los ou afetá-los de forma intensa (e também porque as corporações lucram com a degradação ambiental). Mas falhamos em reconhecer como o nosso mundo é global e interconectado agora. Bangladesh, por exemplo, está entre os maiores exportadores de têxteis no mundo. Quando o país afunda, esse vazio não pode ser facilmente preenchido por outro país em desenvolvimento que venha a assumir a tarefa. Embora as perdas causadas pelas mudanças climáticas possam parecer relativamente pequenas agora, o ciclo de feedback positivo do aquecimento global acarretará a que cada um deles tenha ramificações globais massivas no futuro.
Em sua essência, a mudança climática acaba por ser uma forma de genocídio – não apenas genocídio humano e ambiental, mas também cultural. Com cada centímetro de Bangladesh que se afunda, cada vila perdida, cada província inundada, uma parte da cultura bengali desaparece, e com ela: costumes esquecidos, pátrias ancestrais abandonadas e submersas. Nós, os países em desenvolvimento e ex-colonizados, já perdemos tanto, já tivemos muito das nossas histórias apagadas pelo imperialismo e pela desumanização dos nossos povos. Somos fortes – a colonização exigiu essa força –, mas quanto mais ainda seremos capazes de suportar?
Se Bangladesh se afundar – quando Bangladesh se afundar –, não será uma perda ambiental abstrata, mas o último suspiro de um povo que começou a morrer no minuto em que os britânicos desembarcaram em solo indiano. Os países desenvolvidos criaram esse desastre climático. Agora eles precisam de consertar o que fizeram.