CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

A monogamia é como estar obrigado a comer

Batatas fritas todos os dias”.

Henry Miller (Sexus).

 

Minhas mãos tremiam por causa do efeito dos meus excessos de consumo de álcool, meus pulmões chiavam pelo acúmulo de tabaco; a verdade é que naquela semana eu estivera internado por dois dias em um hospital devido a um colapso nervoso. As ideias se confundiam por momentos, datas, pessoas e acontecimentos. Nada estava ordenado e meu trabalho amontoado em uma pilha infindável de afazeres incompletos. Multas, possibilidade de prisão pela indiferença frente a um processo de pensão alimentícia, assim rastejava a humanidade para mim naqueles dias. Apenas tremor de mãos e tosse se faziam sentir presentes como uma rotina, uma constância tão cara para a manutenção da sanidade mental: eu ainda vivia, estava no mundo.

Acontece que a vida é um redemoinho de contrapontos como se vivêssemos em uma peça musical barroca, repetindo sempre fugas e contrapontos e, seguinte a tudo isso, ela era o contraponto de minha evasão da vida. Disfarço depressões e crises com ironias e falso humor, não sou quem pareço ser, mas não sou deselegante nunca!

Surgida do torvelinho de colapsos estava ela, ela a quem nunca vi; nunca encontrei; não possuo referências plausíveis para conhecê-la e, muito menos, estar ao seu lado em uma cama de hotel.

Assim sempre foi desde Sófocles, Ésquilo e Eurípides, somos marionetes nas mãos dos deuses pagãos gregos; eles se mantêm de alguma forma sacrílega, dentro de um cristianismo burocrático senão fanático, impondo os jogos de existências, onde heróis sofrem sortilégios (eles escolhiam os movimentos do destino, por isso, é foda!) os mais vários em trajetórias de sucesso ou de fracasso total – nunca há um meio termo: morte ou vida. Às vezes, Athenas vinha e, contrariando Apolo, impunha mãos sobre o herói e lhe abençoava com algum refrigério, algum consolo.

Ó, Palas Athena! Em meio ao colapso da linha de seus peões, você veio a mim e proporcionou que uma de suas filhas, a mais radiante, corajosa, de pele morena jambo e cabelos de guerreira malê, viesse até mim e mostrasse que a vida ainda vale a pena! Sim! Que o tremor parasse, que a tosse amenizasse. Sim! Athenas encheu meu peito com o fluxo da vida, impulso de meu sexo e, coupe de foudre, fez-me homem novamente. Assim foi a guerra espiritual que me levou até ela, enviada, abençoada filha da padroeira da Sabedoria e da Justiça, você que trouxe virilidade e decisão a um homem esmorecido.

Jogo da vida, havia um horário e um percurso a palmilhar, percurso extenso, mas necessário como a respiração, cada metro alcançado era um desafio à minha crise de pânico; ao entrar no primeiro ônibus intermunicipal tive de aguentar uma grande pressão interna, uma angústia reflexa no companheiro tremor de mãos; havia uma mulher ao meu lado, precisei me compor ao máximo (entendo que devemos passar mal dentro dos lares, pois, na rua, é deselegante). Consegui passar pelo primeiro desafio; chegar à Rodoviária Novo Rio, ir ao banheiro comum e encharcar o rosto de água sem enxugar após.

Teria de pegar outro ônibus intermunicipal, dessa vez pior, tratava-se de ir a um lugar onde nunca pisara antes, conhecia apenas de épocas de meu avô e da implantação da extração e manipulação de ligas metálicas no país; articulações políticas para que um ditador do passado desfizesse seus laços matrimoniais com o nazifascismo e seguisse, com essa compensação, os caminhos da dita democracia liberal.

Não saber o paradeiro gerou um terror pânico ainda maior e os esforços foram redobrados para manter aquela avassaladora onda interna de antimatéria, de antivida, caos que beira à loucura – tudo provindo e alimentado pelo excesso do álcool e do stress. Mas eu tinha de encontrar minha deusa, minha rainha: ela estaria lá e eu não poderia ausentar ao desígnio do jogo da vida e da padroeira. Beber da fonte da vida, de onde viemos por nossas mães e por onde disseminamos nossas sementes para novos seres viventes surgirem na engrenagem infrene do Cosmos. Eu estaria lá mesmo que o fim do mundo adiantasse seu relógio e a nada deixasse em pé.

Consegui chegar! Como Deus é bom! Tempo suficiente para tomar um banho, comer alguma coisa, o alimento demorava para ser deglutido e não conseguia assimilar muitos nutrientes, mas forcei; vesti minha persona de “um cara descontraído”, enviei vídeos onde só faltei sapatear como o Fred Astaire, em busca dos líricos coraçõezinhos de Whatsaap. Do quarto do hotel ao saguão, do saguão ao entorno, tracei todos os trajetos até o momento da aparição, ela veio destemida como a Xena: a princesa guerreira; eu sabia que nada a deteria; tínhamos construído alguma coisa indizível através de afinidades e palavras de penetração cirúrgica no ponto certo do sentimento da atenção.

Trememos, meu amor, eu e você éramos garota e garoto de quatorze anos de novo. Vozes entrecortadas, respiração pesada, mãos molhadas; assim estávamos e foi então que eu a beijei pela primeira vez, com um impulso disrítmico, a vista chegou a ficar turva de tanta energia emanada de nossos corpos. Palas Athenas soprou em mim virilidade, mas – homens são em sua maioria uns ignorantes – não tive sabedoria suficiente e a Filha de Atenas pôs suavemente suas mãos sobre meu peito e disse “Calma! Estou Aqui”; ato contínuo iniciei o roteiro planejado por nós dois em nossas conversas anteriores: beijar e lamber seu pescoço e orelhas para desarmar resistências e fazer exsurgir a verdadeira mulher natural por trás dos seres sociais que somos. Estava chegando a hora da bênção; eu seria cumulado dos maiores prazeres que a vida pode proporcionar incorporadas na mulher amada! Sim! Você é a mulher amada! E se você não me ama, que se dane, eu amo amar você!

Assim fomos imbricando pernas e braços, lábios e coxas numa construção da ponte de união, éramos um e, por sermos um, estive no mais íntimo interior daquela que veio dos Céus para insuflar vida num moribundo. Força de intensificação dos fluidos sanguíneos enchendo a corpora cavernosa, enrijecendo tudo, onde antes imperava a indiferença, pois mantinha um jogo de esconde-esconde com mulheres com quem saía nos últimos tempos: com a deusa não haveria espaço para jogos; ela exigia autenticidade, verdade e força e eu miraculosamente acompanhei-a.

Lambuzamos nossas bocas em beijos subterrâneos; soube caminhar a sutileza das clássicas preliminares e de novo e de novo fomos um do outro, sem medo algum, e, de repente carinhos sensíveis e sensitivos como passes espíritas, algo transcendente, nada de carnalidade, ali estavam duas almas em movimentos de entrelaces no gris fosco do mar existencial; agora espocavam fogos laranja e rosa, lilás: ela, apenas ela, naquele momento eterno, sussurrou em meus ouvidos que a vida vale a pena; que ela estaria sempre presente em minhas memórias e, talvez, como tudo na vida, ela estaria novamente presente ao som de Cole Porter, You’d be so easy to love, – sim, meu amor, você conhece o poder que tem – numa dança elegante no salão de minha esperança.

Ela estará lá novamente.