Cresce a campanha para incluir as diaristas na Previdência Social. Direito conquistado em 2013 beneficiou só um terço da categoria. Motivos: crise e tentativas de parte da classe média para burlar a lei, substituindo as antigas mensalistas
O Brasil é um dos países com maior número absoluto de pessoas empregadas no trabalho doméstico. A importância dessa ocupação, majoritariamente feminina, está relacionada à trajetória de mulheres e meninas pobres no mercado de trabalho e ao contexto de profundas desigualdades raciais e sociais característico do país. Relaciona-se ainda com a forma como o país organiza o sistema de cuidados, já que estas trabalhadoras, até hoje, são a principal mão de obra para o atendimento da demanda por cuidados de pessoas e da casa, em domicílios de classes média e alta.
Dados do 4º trimestre de 2022 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, revelam que o Brasil contava com 5,8 milhões de pessoas ocupadas no trabalho doméstico, o equivalente a 5,9% da força de trabalho no país, das quais 91,4% eram mulheres. Destas, 67,3% eram negras; em 2013, era 63,9%. 52,9% destas trabalhadoras eram a responsável pelo seu domicílio.
O Dieese destaca que somente 35,3% das trabalhadoras domésticas eram contribuintes da Previdência Social, contra 66% do conjunto das mulheres ocupadas – notem que é o dobro! Entre as trabalhadoras domésticas negras, a proporção de contribuintes para a Previdência era ainda menor: 33,6%.
Em comparação com 2013, houve queda de 2,6 p.p. na proporção de domésticas contribuintes para a Previdência Social e, em sentido contrário, aumento de 1,7 p.p. na proporção de ocupadas nessa condição – isso com 10 anos da EC 72/2013, um desdobramento da chamada PEC das Domésticas, regulamentada pela Lei Complementar no 150, em 2015.
Mas as mesmas tendências cíclicas verificadas em relação à posse da carteira de trabalho também estiveram presentes no caso da contribuição previdenciária, que cresceu em ambos os grupos ocupacionais, até 2015, atingindo os respectivos picos das séries históricas analisadas. Depois, entrou em trajetória declinante, até 2021, voltando a crescer em 2022.
Em relação à forma de inserção das trabalhadoras domésticas na ocupação, entre 2013 e 2021, cresceu continuamente a proporção de diaristas, que saltou de 37,5% para 46,2%, respectivamente, ampliação de quase 9 p.p. Nesses oito anos, a maior alta na proporção de diaristas ocorreu entre 2015 e 2017 (4,1 p.p.), ou seja, logo após a entrada em vigor da Emenda Constitucional nº 72, que estabeleceu os direitos das domésticas. Cabe lembrar que o novo estatuto das domésticas não assegurou proteção trabalhista e social a essa modalidade de trabalhadoras, o que só foi estendido – sem justificativa aceitável – às trabalhadoras domésticas que trabalhavam pelo menos três dias por semana em uma mesma residência.
Em consequência dessa restrição legal e do contexto de grave crise econômica e sanitária, pode ter ocorrido, no período analisado, aceleração do processo de substituição de mensalistas por diaristas, processo esse que já ocorria desde os anos 1990, pelo menos, em razão de mudanças demográficas e socioeconômicas no perfil das famílias brasileiras.
O rendimento médio real das trabalhadoras domésticas correspondia a 47,6% do que era recebido pelas mulheres ocupadas, no quarto trimestre de 2013, percentual que se reduziu a apenas 44,9% ao final de 2022. Com esses dados, com esses rendimentos e com essa inserção precária não há como falar em inclusão previdenciária nas condições atuais, a não ser por meio de uma PEC que assegure a aplicação de alíquotas diferenciadas e reduzidas sobre seus salários-de-contribuição.
Além do mais é crescente a elevação da faixa etária dessas trabalhadoras. Em 2013, 31,1% tinha entre 45 e 59 anos e 5,3% mais de 60 anos. Em 2022, 40,2% já estavam na faixa etária de 45 a 59 anos e 9,0% tinham mais de 60 anos — o que nos alertar para a necessidade da redução urgente da idade de aposentadoria destas trabalhadoras. Nunca é demais lembrar que essas trabalhadoras iniciaram sua jornada ainda na infância sob o manto de falsas promessas de estudo ou de terem um lar confortável — ou ainda da penosidade e desgaste da saúde física e mental de quem labora nessa profissão por anos a fio, por décadas e durante a velhice.
No mundo moderno, a noção e a realidade da cidadania estão organicamente ligadas à ideia de direitos, entre eles, os direitos sociais que inclui, em sua composição, aqueles direitos que integram a seguridade social, como trabalho, previdência social, saúde e assistência social. Mas foi somente na Constituição de 1988 que se introduziu um sistema de seguridade social no país. Essa longa construção começou nos anos 1960 e, em 1977, em plena ditadura, ocorreu a organização do Sinpas, o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social.
Convém destacar que no passado o Estado, via institucionalização dos IAPs (Institutos de Assistência e Proteção Social), exercia uma ação discriminatória na identificação dos cidadãos. O estatuto da cidadania era válido apenas para os trabalhadores que tinham ocupações regulamentadas em lei. Os restantes eram “pré-cidadãos”, ou seja, um contingente representativo de trabalhadores urbanos, como os autônomos e empregados domésticos, ou ainda, os trabalhadores rurais. Nesse sentido, Wanderley Santos (1979) formulou a expressão “Cidadania Regulada” para caracterizar esse período, o que reforçou a estrutura de desigualdades sociais do país: cidadãos estratificados em categorias profissionais e benefícios desiguais. Consagrou, ademais, a excludente vinculação entre acumulação e equidade.
Enquanto não incluímos de forma consistente todos/as trabalhadores no sistema de seguridade social e no direito à aposentadoria, continuaremos com a clivagem social de pré-cidadãos que vigorava antes da Constituição de 1988. Um grande passo é a garantia dos direitos à aposentadoria das trabalhadoras domésticas.
As reivindicações e pressões organizadas pelos trabalhadores na década de 1980, em período de redemocratização no país, provocam a incorporação, pela Constituição Federal, de muitas demandas sociais de expansão dos direitos sociais e políticos. Um dos maiores avanços, em termos de política social, foi a adoção do conceito de seguridade social, englobando em um mesmo sistema as políticas de saúde, previdência e assistência social.
A Constituição, como sabemos, universalizou o direito à saúde, reconheceu a política de assistência social como política pública a quem dela necessitar, universalizou o acesso à previdência social, ainda que mediante contribuição, mas criou a categoria do segurado especial na área rural (que defendo que seja estendido para área urbana) e igualou os benefícios de trabalhadores/as urbanos e rurais.
Contudo, a edificação do Estado Social previsto na Constituição ficou incompleto. A realização progressiva dos direitos sociais buscando a redução de desigualdades, o que requer instituições apropriadas, financiamento adequado e um arcabouço político, jurídico e administrativo para sua implantação, não ocorreu. O desmonte começou pelo esvaziamento do fundo público para a seguridade social com o direcionamento de seus recursos para honrar as despesas financeiras do orçamento.
No seu conjunto, as políticas do Artigo 6º (direitos sociais) da Constituição de 1988 e a sua projeção no arcabouço de uma seguridade social ampliada nunca tiveram a oportunidade de beneficiar-se de uma economia política orientada na sustentação de políticas sociais transformadoras, e acabaram prisioneiras de um incremento moroso de recursos orçamentários frente às crescentes necessidades sociais ou de um franco desmonte em suas aspirações mais radicalmente redistributivas da renda, da riqueza e do bem-estar.
A presença de tais direitos nas Constituições, e seu reconhecimento legal, não garante automaticamente a sua efetiva materialização, como aponta o filósofo político Carlos Nelson Coutinho. Esse é, particularmente, o caso do Brasil. Mas, embora a conversão desses direitos sociais em direitos positivos não garanta sua plena materialização, é muito importante assegurar seu reconhecimento legal, já que isso facilita a luta para torná-los efetivamente um dever do Estado.
A desertificação neoliberal e suas contrarreformas do Estado brasileiro (principalmente a partir de 2016) ferem quase de morte os direitos da cidadania nas políticas sociais, em especial, com o surrupiamento dos recursos da seguridade social e o ataque aos direitos previdenciários. Não resta na Constituição mais nenhum artigo original de 1988 no direito previdenciário. O Brasil tornou-se um dos países mais rigorosos e perverso no acesso ao direito previdenciário, de forma que se permanecer a situação atual lograremos ao país uma geração de idosos dependentes de benefícios da assistência social, uma situação agravada pela contrarreforma trabalhista de 2017, que precarizou a quase totalidade do nosso mercado de trabalho.
O acirramento da disputa do fundo público envolve a capacidade que o Estado tem de mobilizar recursos, principalmente tributos, para realizar intervenções em políticas públicas, mas que são capturados pelo capital, notadamente o financeiro, marca do capitalismo contemporâneo. As instituições financeiras hoje têm parcelas de seus lucros vinculadas ao que os bancos chamam de produtos da seguridade. Ou seja, estamos transformando o direito que deveria ser assegurado pelo Estado para todos/as em um produto a ser comprado no mercado financeiro.
Como economista, nestas palavras finais, não posso deixar de apontar que há formas de recuperamos o cambaleado Orçamento da Seguridade Social, ferido de morte pela EC 95 do teto dos gastos. Como, então, ficaria esse financiamento para garantia dos direitos?
Posso assegurar que a seguridade social e seu orçamento podem ser superavitários como foi ao longo da sua história. O orçamento está subfinanciando ou desfinanciado, sem a garantia integral das fontes previstas no artigo 195, com o fim da DRU e sobretudo com ampla revisão das desonerações tributárias, que vem retirando um expressivo volume das contribuições sociais, que sequer chegam a ser arrecadadas pelo Estado.
O demonstrativo de gastos tributários, a que acompanhou a PLOA, revela que em 2023 tem-se um dos maiores montante de renúncia tributária da nossa história, cerca de 499 bilhões, ou 23,77% das receitas estimadas na arrecadação, sendo 262 bilhões ou mais da metade sobre contribuições sociais exclusivas da seguridade social.
Ademais, espero que o debate da reforma tributária que esta Casa vai fazer não se limite a simplificação tributária, mas que de fato caminhe para uma reforma tributária justa que onere os mais ricos deste país para financiar a reconstrução do Estado Social de Direitos que foi abandonado nos últimos anos.
Para tanto, é necessária a eliminação da isenção da taxação de lucros e dividendos gerando um impacto de R$ 55 bilhões; aumentar a alíquota de imposto sobre herança para os super-ricos, o que geraria um impacto positivo de R$ 35 bilhões; a regulamentação do Impostos sobre Grandes Fortunas (IGF), com um impacto de R$ 36,7 bilhões. “A economia que não se preocupa com a justiça social (…) é uma economia que condena os povos a uma brutal concentração de renda e riqueza, ao desemprego e a miséria (…)”, já disse Conceição Tavares (1995).
Exposição na audiência pública “Desafios para o acesso à aposentadoria para as trabalhadoras domésticas”, realizada Câmara Federal, em 23/5.