CRÔNICA

Por Guilherme Maia

 

Para Andreia Cristina – sereno sorriso em meio á batalha.

A menina franzina sobe o estrado do púlpito da Igreja do Poço Fundo do Jacó, aproxima-se do microfone onde há pouco o pastor Epifânio havia acabado de prelecionar sobre o amor e reprimir gays, índios e os esquerdistas com o eterno fogo do inferno. Ergue-se nas pontas dos pés para alcançá-lo e solta sua voz angelical, envolvendo cada palavra em melodias melífluas e celestes. Todos se calam, param suas gritarias ao Espírito Santo e de revirar-se em seus transes para ouvi-la.

Tábata, era seu nome de batismo, emana o êxtase da música, dos hinos, e atrai todos os presentes para uma sensação do que seja a transcendência do reino de Deus. Jorram lágrimas e pontuam exaltações, ela domina sua plateia e mesmo sem o saber insufla um real sentimento de amor ao que deve ser entendido como irmandade.

Entre os crentes estava Esfíncter (alcunha de seu batismo no CV), garoto arregimentado pelo tráfico muito novo, formara sua visão de mundo como soldado do movimento na Maré; apesar disso, era um frequentador assíduo da igreja e realmente sentia emoção pelas homilias do pastor. São os entrelaços da vida que juntam opostos e que colidem as pontas: por isso, Esfíncter sente um amor avassalador por Tábata; ela tem que ser dele; impulsionado por este sentimento permanece na igreja mesmo após todos terem saído.

– Diz aí, princesa! Meu nome é Esfíncter e tá de boa nós fazer um rolê eu e tú. – Chega firme na garota de seus desejos já pensando em pô-la no microondas caso ela não o aceite (tão romântico que é).

A menina baixa a cabeça, não fora condicionada por sua família a acercar-se de homens, muito menos de bandidos, mesmo os que frequentam seu templo; ele se joga ao máximo que pode em direção a ela, mesmo sendo do tráfico, sempre se conteve dentro da igreja. Mas a face dela se ruboriza, havia algum tipo de charme naquele jeito de ganso e, por sua vez, ele percebeu e falou ao pé do ouvido dela “Essa noite, tú é minha”; ela ergue os olhos para o garoto e inesperadamente consente.

Conforme o combinado, o soldado do tráfico vai até Tábata, leva-a para a parte alta do morro onde são feitas as execuções de quem não cumpre as ordens. Área erma, ali consumam seu amor clandestino, lambuzando mutuamente na milenar ritualística do amor. Os dois encontram seus pontos, ligadura espiritual à qual apenas a plenitude do prazer carnal alcança. O clímax é alcançado com a saraivada de balas desferidas pelo confronto deflagrado entre o Caveirão e o CV na parte baixa da Maré.

Meses se passam.

Em pleno meio-dia, na Rua da Alfândega, ocorre intensa balaria; seguranças do banco mortos, dois policiais feridos e alguns transeuntes são alvejados, mas passam bem. Observadores apontam que uma moto com um casal foi vista na cena do crime e que, após subir pelo Campo de Santana, conseguiram fugir das viaturas que já chegaram atrasadas ao local.

O casal: Esfíncter e Tábata que, tinha largado sua igreja pelo tráfico. Com o tempo ela passou a ter apelido no mundo do crime e da mídia marrom sangrenta: era conhecida como Betty Bopp.

De fato, ela estava entregue num transe que unia sexo e violência, não tinha discernimento suficiente para entender a vida, o pai sumira bêbado pelo mundo afora e a mãe entendia a total repressão como um sinal de entrega a Deus. Ela não tivera qualquer tipo de referência que não a que Esfíncter lhe proporcionou.

– Amor. Quero voltar para minha igreja, não gosto do que estou fazendo da vida. – Confessa contrita para o namorado após reunir forças para falar.

Prontamente, ele leva sua mão ao pescoço de Tábata empurra seu corpo contra o dela até a parede.

– Cala boca! Si tú tá dentro, só sai morta!

– Mas eu sempre fiz o que você mandou! – Retruca às lágrimas.

Recebe em troca um soco no rosto que lhe tira os sentidos.

Marta era uma advogada que acreditava firmemente nas mudanças pelas quais o mundo poderia voltar ao seu eixo e nada tirava essa sua convicção. Era responsável e aplicada na atualização jurisprudencial e normativa, mesmo assim sofria direta e indiretamente o peso machista de ser uma mulher e uma mulher de beleza inigualável. Nada havia equiparável a seus traços flutuantes em um corpo de tez jambo potencializado por uma sagacidade e inteligência vindas de uma vontade insaciável de conhecimento.

Certa feita, ao representar uma senhora costureira que sofrera um AVC, em audiência demandando aposentadoria ou auxílio-doença; ouviu do juiz o seguinte “que advogada jetosinha a senhora arranjou hein? Minha senhora?”; irritada, num primeiro momento Marta ainda pensou que uma liminar concedida em benefício de sua cliente seria o suficiente para relevar aquela estupidez.

“Mas essa senhora aí ainda tem o outro bracinho para trabalhar, quer se aposentar por quê?”.

Imediatamente Marta, que nunca foi de acovardar frente injustiças, levantou de sua cadeira e ali, em plena sala de audiências, desferiu um tapa na cara do magistrado.

Foi retida na hora e, depois, com a intervenção do setor de prerrogativas da Ordem dos Advogados, foi liberada.

Nos corredores da sede da Ordem dos Advogados na Marechal Câmara, entre o setor de prerrogativas e o de direitos humanos, Marta conhece Tábata. Destinos entrelaçados novamente, a fragilidade dentro de um mundo de crimes e a força dentro de um mundo de leis.

A advogada vê a menina (não tinha ainda dezesseis anos) aos prantos jogada no chão.

– O que aconteceu com você? Quer um copo d’água ou um café? – Cuidadosa e acolhedora tenta amparar o desespero.

– Meu namorado que me matar! Ele é do CV, participei com ele de uns assaltos, eu segurava as armas para ele. – Mais branda continuou. – Não quis mais continuar com essa vida e falei pra ele e ele disse que vai me matar, que não posso deixar o crime.

– Olha. Eu vou ajudar você. Isso é um absurdo. – era aquele o momento em que Marta teria uma revolução em sua vida. Não era a área que mais lhe aprazia atuar, criminal se limitava a algumas causas, mas aquela situação compelia toda sua empatia, sua esperança na Humanidade.

Durante semanas, a advogada impôs sua inteligência sobre o emaranhado desumano da burocracia. Conseguira o ingresso de Tábata em programas de proteção promovidos pelo governo e sua reinserção social.

Nunca mais haveria Betty Bopp e a menina voltou a ser uma menina, estudando e fazendo amizades.

Terminaria a reabilitação em duas semanas, quando um supervisor do Ministério da Justiça vazou informação de que Tábata estava inserida no programa, e com requintes de sadismo o funcionário comunicou diretamente a Esfíncter – este já medrara a chefe de algumas bocas do Complexo de Israel, sujeito de fé que era.

Marta foi receber sua assistida no dia de sua saída do programa.

– Como é bom ver você assim tão bem, querida! Sabia que você superaria todos os problemas que a vida deu para você; agora você termina o seu curso de direito e vem trabalhar comigo no meu escritório. – Falou em tom maternal a advogada.

– Eu não sei o que dizer para a senhora, estou em paz e quero seguir em frente e ser feliz.

Um estampido e toda a esperança deixa de sorrir. Tábata cai morta nos braços de Marta transfixada por um projétil.

A advogada segurou o corpo da amiga ainda pedindo por socorro, mas já era tarde: a indústria da morte se alimenta de pessoas na sua insaciável gula.

Enquanto Marta olhava os despojos daquela vida, pensava sobre todo o trabalho que desempenhara para terminar daquele jeito. Sentiu ódio.

Mas conjuntamente a uma lufada de vento seu peito se encheu de vigor, algo trouxe ao seu entendimento que tudo o que fizera estava escrito no grande livro da vida e que, exatamente por sua perseverança e entrega humana, todos nós ganhamos alguns pontos no imenso joga da libertação. Fazendo o que fez mostrou que somos resistentes e que mesmo com estrelas se apagando pela ganância ainda alimentamos uma grande esperança no futuro.

Estava absorta nesses pensamentos quando percebeu que Tábata sorria jazendo em seu colo.

Mesmo com todo o horror, de alguma forma prevaleceu o amor.