CRÔNICA
Por Guilherme Maia
“Sabedoria da serpente, mansidão da pomba e
Coragem do leão”
(Robert Owen citado por Edmund Wilson)
Holofotes em Cipião Macaco, o chefe do tráfico do morro, transtornado responde ao repórter da Rede Bobo que “aqui não entra alemão do São José”, e, com o cenho ensombrado afirma “aqui quem manda é nóis, é tudo 2’. “Aníbal vai morrer, vou passar o cerol nele, depois de cortar ele, vou passear com as partes do corpo no campo dele”. Olhos injetados de vermelho, expondo cicatrizes de guerras passadas, e com a boca escancarada mostrando as cáries várias em meio à ausência de dentes finaliza dramaticamente “Tá fudido”.
Cipião nasceu no Morro do Macaco, cria do tráfico desde garoto, amava sua favela e seu povo. Tinha amigos no Cartel de Medelín, tivera aulas com personalidades históricas do CV – época do monopólio e de incipientes dissidências. O mercado do pó ainda no auge, o Macaco absorvera o know How de firmar organizadamente o crime. De fato, se perguntarmos a um garoto se é melhor ser um líder da glamourização midiática do crime ou chegar a algum tipo de profissão anônima, a resposta é óbvia – até mesmo por que à época ainda não se propunha acesso às Universidades ou mesmo a cursos profissionalizantes.
O Macaco se estendeu por mais de várias bocas e passou a comandar algumas comunidades, tornou-se um chefe arrendando bocas e, com isso, assumiu o papel do Estado nas favelas. Remédios, pensões por morte entre parentes da caixinha e médicos para atender à população. O escudo humano estava pronto. Cipião era imbatível e o Macaco assumiu uma posição importante no tráfico do Rio.
Na época, havia uma vertente social e assistencialista, hoje sobrou apenas a visão empresarial – não se dá nada mais para o escudo humano das favelas.
Quando o poder se alastra, o chefe perde seu controle, afinal ninguém é onisciente. Mesmo com o Tribunal dentro das favelas, com direito ao contraditório e o intermédio de Aristides, o pastor, como defensor dos acusados, as “Sentenças de pena de morte” dos julgados eram quase unânimes. Mais de cem homens formavam o cordão de sua segurança. A população o adorava como um messias. Cipião arrendou uma de suas bocas no São José para o emergente Aníbal, aquele que decepava as cabeças de traíras, os vermes arrombados que atrapalhavam a qualidade do pó. Aníbal estabeleceu um império autônomo quando misturou cocaína com anfetaminas.
Aníbal quis estender suas ambições e inapelavelmente teria de passar pelo Macaco.
Começo da guerra entre as favelas, começo do caos na Tijuca. A balaria queimava no asfalto.
O Tróia da história foi o irmão de Cipião, que deu a rota certa até onde estava o chefe do Macaco. O cara da mochila ia levar a grana e Aníbal fez o bonde do caminhão da Light para pegar o rival. Para tomar o castelo do inimigo só na covardia, não tinha como chegar na bala. E assim travestidos de funcionários da concessionária de luz, os soldados de São José efetuaram a primeira incursão.
Cipião estava com seus guardas e conseguiu reagir à altura: não era daquela vez que o Macaco foi tomado. Eliminado o Tróia de imediato, o Macaco já estava pronto para as futuras contra-arremetidas e não ia capitular fácil, na verdade estava pronta a retomada do São José, já que os lucros do arrendamento não retornavam mais à matriz.
O poder fala mais alto do que laços de sangue, isso desde Cain e Abel, por isso, o irmão foi eliminado prontamente, suprimido até mesmo o Tribunal – tratando-se, assim, de Tribunal de exceção exclusivo para a execução fraternal.
O comando: “dois pipocos na testa”!
Não demorou muito para a resposta, ambição e violência eram o norte do genocídio; era uma geração de loucos tomados pelo ódio – tanto que foram eles os criadores da execução pelo pneu (encher de querosene o corpo da vítima ainda viva dentro de um pneu e atear fogo). A luta deixou de ser carnal para, até um certo ponto, dirigir-se pelo empreendedorismo dos negócios e Cipião mandava que os assassinos enunciassem “pelo ‘frente’ do Macaco” ao dispararem suas armas no inimigo: achava que isso dava ares legítimos de supremacia.
O primeiro passo era reaver a mochila (não havia apenas dinheiro: continha joia de lavagem de grana, além de documentos comprometedores da boca e o arrego anotado). Cipião organizou um contra-ataque. Juntou o seu bonde para tacar o terror no São José.
Arregimentados os seus soldados e o mais pesado armamento para a arremetida, esta seria frontal e na base do boladão, morresse quem morresse: a honra era para ser lavada e o Império do Macaco seria um monopólio autocrático novamente.
Aníbal tremeu nas bases quando seu antigo padrinho irrompeu no morro à frente de seus soldados; eram tiros para todo os lados, estavam fechados e iam matar muito; Cipião estava colhendo poder e fazia a sua lei frente ao inimigo. Sem consideração nenhuma ao passado, fez morar no inferno os soldados de São José e Aníbal saiu ileso por pouco. Vermelho era a cor predominante e o assalto estava prevalecendo. Tudo parecia perdido quando Aníbal puxou um bonde.
Tinha uma D20 no meio do caminho, foi eliminada como mosca sem apelação, o comandante, que era fechado com o tráfico de Aníbal, não teve efetivo suficiente para contrapor o ataque de Cipião.
Os bandidos partiram para o chefe depois de matarem dez “alemãos”; “pesadão”, partiram para o tiroteio e explodiram a entrada do São José. Na bala chegaram ao centro de poder e os gerentes já estavam capitulando no papo do conquistador.
A grana das bocas do São José já estava contaminando a alma de Cipião, nunca imaginara que o dinheiro estava rolando tão solto no arrendamento. Descarregou suas armas no centro da favela a ser tomada; era a hora de Aníbal e era para esquartejar e expor as partes do corpo para a população.
Aníbal mantinha sua disposição de resistência e não estava com medo, achava-se protegido por Jesus Cristo. O último combate foi no topo do morro; sangrento e aniquilador, os últimos soldados já estavam estendidos e “fedendo” no chão e sobrara apenas Aníbal com dois fuzis 762 disparando rajadas indistintas aleatórias. Seu intuito era formar uma cortina de fogo.
Como não havia precisão, desperdiçou sua munição sem atingir a nenhum alvo, apenas Hermínio, pedreiro que passava no caminho para seu barraco.
“Pau no cu do mudo!” – assim Cipião nomeava Aníbal morto aniquilado enfrente ao seu exército. Entendeu o cadáver do inimigo como um mudo – ele não falaria mais nada.
Dia de tiroteio, a chapa esteve quente, moradores assustados; a bala perdida encontrou seu alvo. Cipião era o chefe de todas as bocas de Macaco e de São José.
Começado há tempos como vapor era o mais novo imperador do Rio de Janeiro. Seu poder era tão extenso que chamou a atenção das forças de segurança do Estado: sempre é preciso manter as aparências para a opinião pública e os eleitores incautos que imaginam que o “bandido bom é bandido morto” como a solução final da realidade imposta pela concentração de renda, o despojo da educação como meio de dominação eugênica e pelo amor aos bodes expiatórios.
Pronta estava a realeza de Cipião como o formador do novo império quando a Polícia foi em cima dele.
Numa produção hollywoodiana, armou-se o circo midiático da cobertura pela rede Bobo sobre o cerco a Cipião, o rei do Macaco. E mata polícia daqui e dali, chegou a hora do enfrentamento e não sobrou efetivo para abater o chefe do morro.
Com os policiais capturados sobressai um que a um passo de ser torturado se põe como intermediário de uma proposta de capitulação.
O negociador fita o rosto de Cipião diretamente e resoluto oferta condições para manter sua vida e intentar a rendição do dono do morro.
– “Escuta, Cipião. Quero estabelecer uma possibilidade para você se entregar. Te ofereço a segurança do Estado para você manter seus negócios; um regime diferenciado onde ninguém consegue devassar. O Seu comando vai ser garantido, preciso apenas que se renda para que os jornais mostrem a força da polícia.” – em tom servil sussurrava o policial para satisfação do alto comando.
– Você consegue mulher e luxo pra mim na cadeia, seu mandado filho da puta? – Rasga o ar Cipião já enleado pela tratativa do policial: entende que um homem apenas diz a verdade quando está à beira da morte.
“Sim” é a resposta e a segurança futura das ordens e da incolumidade física de Cipião é garantida. Por isso, seu reinado perpetuou-se até sua morte; saldo bom: para manter o escudo humano de seu território continuou suprindo o povo de remédios, pensões da caixinha e médicos para consultas por anos a fio.
O negociador não foi morto, sequer perdeu seus dedos, e conseguiu até condecorações e um mandato de deputado com o lema “acabar com o tráfico na bala é a bênção de Cristo”.