CRÔNICA
Por Guilherme Maia
Vermelhinho era o apelido de Savalas na faculdade, era contra os meandros eternos do que chamava infeliz modo de concentração de renda, – fonte de miséria de muitos para regalias de poucos. E estudou com tanto afinco a Constituição e as leis que se formou como melhor aluno adiantando dois períodos letivos e fora recomendado com louvor por todo o corpo docente.
Um pulo foi para iniciar sua vida de advogado num importante escritório da Rio Branco. Com extremo senso de justiça nunca se dobrou às fintas jurídicas que seus superiores mandavam que desempenhasse; “tudo pelo ganho, o dinheiro é nossa única moral” – dizia Fagundes, gordo e suado mesmo em sua sala glacial graças ao ar condicionado ao máximo por todo o expediente: a gordura e a efígie roliça, o rosto untado firmavam sua filosofia jurídica sebenta e amoral.
Nunca se dobrou às exigências da corrupção; um mártir do bom caráter era Savalas. E, por ser correto, durou dois meses naquele escritório. Mesmo tendo sido discreto aos descalabros que via dia-a-dia: sabia que Fagundes levava travestis da Glória para o escritório; que o mesmo Fagundes tinha o asqueroso costume de urinar nas paredes da recepção; que também era traficante ligado ao CV e, por fim, que dormia de cuecas no meio da sala principal do escritório, com sua adiposidade colada nas bordas da escrivaninha de dona Zoraide, a secretária.
Silêncio passou a ser a sua nova alcunha. Enfim passou no concurso de delegado, assumindo o comando da 74ª; era o mais novo delegado fluminense e com muito esforço esmiuçou todas as atribuições do cargo; seria o delegado honesto e poria ordem em São Gonçalo; conduziria como um comandante em campo todas as diligências e operações, nada lhe escaparia. Subiu as escadas da Penha por compromisso com a divindade: a honestidade seria sua guia: seu corpo seria fechado à preguiça e à corrupção.
Dois dias antes de assumir o cargo…. Tã-tã-tãããã… ruflavam os canais de TV anunciando urgências e era justamente em São Gonçalo o fato que vinha no bojo da vinheta da desgraça.
“Encontrados sete corpos de crianças de cinco a dez anos pendurados em árvores da Praça Santa Isabel” – riscava a metálica voz do impassível repórter da Rede Bobo de TV – “Podemos ver símbolos de ritual satânico, como o pentagrama invertido desenhado no chão”. Desafrouxou a gravata encharcada de suor, tirou o paletó, olhou uma última vez aqueles corpos inertes infantis, laçou um olhar vago com um enigmático esgar de canto de boca; assim se retira o repórter e a notícia fora dada como mais uma nota anódina de acontecimentos sem importância.
Às portas de 74ª, Savalas vê uma reunião extemporânea de seus subordinados, subindo uma fumaça escura proveniente do centro daquela roda; inspetores e faxineiros asavam picanhas na entrada da delegacia; riam histericamente; gritavam uns com os outros; no canto esquerdo Amoroso caiu duro embriagado e no canto direito Girafales encaçapava Tunísio na porrada – o motivo nunca fora revelado ao delegado, mas havia uma suspeita de que os dois foram às vias de fato para o vencedor poder seviciar uma modelo de pôster de oficina de mecânico de automóveis: ela estava custodiada na delegacia por porte de entorpecentes, alegava uso compartilhado, mas a despeito disso já tinha sido espancada em lugares estratégicos para não sobressaírem marcas em eventual corpo de delito.
Jogado em farrapos um mendigo jazia transido em meditação no centro do churrasco, todos o olhavam de esguelha, mas ninguém ousava mexer com ele, alteava-se como um totem xamânico, uma divindade animista. No mesmo dia, Savalas soube que aquele mendigo era seu antecessor no cargo de delegado daquela delegacia. Nonato enlouquecera após torturar e matar mais de trinta custodiados que passaram por aquela delegacia, sem contar os cadáveres que deixou na Favela da Chumbada.
Sua amoralidade vinha sofrendo com recaídas de arrependimentos, a última vítima enforcou chorando e com os olhos marejados asfixiou um estudante que estava preso tão-somente por portar um cigarro de maconha.
Pareceu Guernica aos olhos do novo delegado aquela insólita delegacia; passou como uma sombra por toda aquela esbórnia; subiu degraus, abriu a porta de sua sala privativa; abriu arquivos de ferro enferrujados e derreados e iniciou seu estudo sobre inquéritos sem andamento: isso tomou para si como tarefa primordial: dar sequência a todos aqueles inquéritos infindáveis, inertes, imóveis.
“Quantas pessoas necessitam do socorro dessa delegacia e estão sendo negligenciadas por essa cambada de vagabundos! Isso acaba hoje. ”
Três foram os tiros que Savalas disparou de sua 38; todos ficaram em silêncio e Amoroso abriu um sorriso deixando expostas suas cáries nos dois caninos, ou o que sobrara deles. Podia-se ver um brilho de respeito em seus olhos – admirava a força, e, por conseguinte, o certo, o bom, a razão vinha sempre da violência: apenas a violência era seu crivo moral.
– “Sou o novo delegado daqui. Todos estão sob minhas ordens e quero que nunca mais aconteça churrascos e brigas nas dependências dessa delegacia” – Com o cenho crispado impunha sua autoridade com um ímpeto que nunca pensara ter.
– “Porra, chefe, qual é o pobrema d’agente se divertirmus? ” – Irrompeu histriônico Girafales.
Savalas atravessou a cortina formada pelos outros inspetores ofuscando Girafales e acercando-se deste, encarou-o empostando sua voz como um Dirt Harry da Baixada: – “ Palhaço, aqui mando eu, quer continuar aqui aprende a calar este lixo de boca que você tem; a partir de agora você está sob investigação, vou levantar tudo o que tiver contra você! “
O inspetor coagido esgueirou-se como um cão intimidado com o rabo por entre as patas, sumiu às sombras de uma frondosa Cabeça-de-Macaco e ali ficou silente acuado.
Apontou para Amoroso e Tunísio, chamando-os para sua sala.
– Temos aqui um maníaco que sacrifica crianças em rituais satânicos; temos a obrigação humana de envidarmos todos os nossos esforços para descobrirmos quem é esse cretino. Eu e vocês dois vamos formar uma força tarefa exclusiva para desvendarmos quem é essa pessoa, custe o que custar. – Assim iniciou seus comandos oficiais em sede daquela delegacia.
– Que frescura, chefe, sobrevive quem tem força; vítimas são sempre fracos dependentes de assistência de outros fracos. Chefe, na vida manda quem pode, os coitados que se danem. – Parecia acreditar realmente em todas aquelas considerações enlouquecidas o inspetor Amoroso. Savalas até pensou na possibilidade de aquele homem ser um niilista convicto, mas logo tirou essa ideia da cabeça: “Não, não pode ser….”.
– Se você admira tanto o poder, eu ordeno a você na condição de seu chefe: estará comigo e com esse aí (Tunísio) nessa operação e quero que comece a me deixar a par de todos os dados que temos sobre essa ocorrência. Até mesmo o que vocês ouviram nas ruas de São Gonçalo.
– Bem, chefe, admiro sua pessoa, sua coragem, por isso vou auxiliá-lo no que puder: ouvi no bar do Moreira que Alberico, o bicheiro, e Figueiredo, o pastor da Igreja do Poço Fundo do Jacó, andavam juntando esforços para erguer o novo bordel de São Gonçalo para atender aos vereadores e aos juízes da Comarca.
– Porra, Amoroso, e que que tem a ver isso com rituais satânicos com crianças?
– O Moreira me disse que ouviu os dois falando em auxílio do demônio para conseguirem verba e que o pastor tinha conseguido um livro vermelho quando estivera em Veneza, na Itália – viagem que empreendeu com o dinheiro dos seus fiéis na campanha do Cerco de Jericó.
– Mas…. Como pode um pastor estar envolvido em rituais satânicos, sacrificando crianças para construir um bordel para a elite de São Gonçalo? Que loucura!
– Chefe, não sei, só sei que foi assim.
– Tragam esses suspeitos aqui para interrogatório; o mais rápido possível, por favor.
Amoroso soergueu a sobrancelha, “por favor”? Isso não é expressão de autoridade, de força – pensou com seus botões, mudando seus sentimentos pelo novo delegado: os tiros que dera para o alto e suas palavras impositivas tinham despertado admiração, – aliás, até mais do que admiração, algo de platônico eriçava seus pelos e seu pênis quando próximo àquele homem florescente.
Mas agora, aquele “por favor” aniquilara sua paixão. Era mais um fraco travestido de autoridade, mais um frango burocrata que assumia o comando.
Já passava das três da manhã quando Amoroso e Tunísio trouxeram os dois suspeitos mais Moreira, o dono do bar.
– Eu não mandei trazerem o dono do bar aqui, inclusive está errado exporem ele aos verdadeiros suspeitos, que são esses dois aí: o bicheiro e pastor.
– Chefe, esse é o vagabundo, Moreira é o assassino das crianças!
– Como assim? Nunca ouvi tese mais absurda: vocês me dizem que o Moreira foi o informante e de repente ele é o culpado?
Tunísio pega uma cadeira e inquire Moreira: – Você matou as crianças, vagabundo? Confessa aqui pro autoridade nossa. Vamu logo, palhaço!
Savalas ficou inerte, transito em uma suspeita irrefreável de que aqueles dois inspetores manobravam para jogar no colo do Moreira os crimes perpetrados pelo bicheiro e o pastor. Com esse sentimento e algo que começava a avisar-lhe de que ele próprio, delegado, corria perigo naquele momento, incitava-o a deixar os dois inspetores articularem suas mentiras (Savalas já empunha por trás e acobertado por seu paletó, sua 38). Deixou os dois cretinos desenvolverem sua tara por tortura, tara atávica às autoridades latinas (ibéricas e americanas).
– Amarra o vadio na cadeira, Tunísio – ordenou Amoroso consumado de prazer, olhos esgazeados e parecendo extático com o prenúncio da tortura a ser empreendida sobre Moreira.
– Não! Eu não sei de nada. Vocês sabem muito bem que apenas comentei o que a minha vizinha viu na Praça Santa Isabel: ela viu pela fresta da janela da casa dela que estes dois aí (pastor e bicheiro) punham as sete crianças nos laços de garrote e puxavam as cordas enforcando-as. – Chorava com os primeiros sopapos que pespegavam em seu rosto; enquanto Tunísio trabalhava no baço e estômago, Amoroso sentava a porrada na cara de Moreira. – Não foi só Odete quem viu o genocídio, todos os moradores do local viram. As crianças gritavam e choravam e o som das porradas dadas por esses desgraçados nelas formara uma algazarra tal que chamou a atenção de todos que ali estavam em suas casas.
Todas as palavras de Moreira estavam gravadas na memória de Savalas. Nada seria esquecido. Seus subordinados apodreceriam em Bangu junto com o pastor e o bicheiro; guarnecido de sua pistola era só esperar Moreira terminar suas palavras para dar ordem de prisão aos verdadeiros criminosos ali presentes.
Intensificaram a tortura sobre Moreira. Este já desfalecido respondia com golfos de sangue como resposta aos golpes que Tunísio e Amoroso persistiam em arrojar sobre baço, estômago e rosto da pobre testemunha.
Tudo se passou muito rápido: Moreira estava morto; Savalas aponta sua 38 para Amoroso; o pastor joga a cadeira de ferro velha, enferrujada e envergada, de encontro ao ombro do delegado; com o impacto sua arma é projetada. Amoroso atinge o maxilar e, em seguida, joga sua outra mão como um aríete no queixo de seu chefe. Savalas estava rendido, com sua vista nublada pelo sangue que irrigava de seu supercílio. Ainda pôde ver o pastor traçando com um giz branco um pentagrama invertido no chão de sua sala – ele sabia o que aconteceria: o ritual exigia o sacrifício de uma autoridade após o das crianças; ele era a rês, em suas condições não tinha como opor resistência ao que aconteceria.
Perdendo os sentidos ainda pode entender que todos os funcionários da delegacia estavam presentes naquela sala; que o pastor assumira o comando de tudo o que acontecia ali…
– Meu adorado Deus, me esforcei de corpo e alma para tentar ser honesto, aceite-me como seu fiel súdito em seu Reino, pois deixo agora esta vida transitória para estar junto a Ti – balbuciou entremeado ao sangue que jorrava de sua boca enquanto Amoroso destripava as vísceras para prendê-las na parede da sala da autoridade.
Tã-tãtãtã…. Ribomba a vinheta da desgraça da Rede Bobo de TV.
“Mais uma vez temos aqui em São Gonçalo um ritual satânico, desta vez o delegado Savalas, que tomara posse de seu cargo há um dia atrás, foi a vítima. Seu corpo foi pendurado aqui na Praça Santa Isabel com o pentagrama invertido aos seus pés. Esperamos que agora seja empreendida pelas autoridades os esforços necessários para a solução desses crimes brutais”.
Sempre com o tom apático, o jornalista olha de esguelha, faz seu esgar de canto de boca, porém, desta vez, aproveita a desatenção de todos os circunstantes e escarra em Savalas… Savalas, o delegado honesto de São Gonçalo.