Ciclicamente, o mundo inteiro fala da Amazônia brasileira. O fez em ocasião das epidemias introduzidas entre os yanomami por trabalhadores da estrada e garimpeiros, em ocasião do assassinato de líderes indígenas e defensores dos direitos humanos, o faz hoje que incêndios criminosos estão destruindo o que sobrou da floresta. De norma, os ocidentais falam das desventuras amazônicas acusando os que reputam sejam os responsáveis. Assim culpam os militares que quiseram a abertura de estradas, os donos das serrarias, os garimpeiros, os criadores de gado, os fazendeiros das monoculturas e do agronegócio, os que materialmente botam fogo nas florestas. O bode expiatório para os incêndios ocorridos nos últimos três anos é o atual, descerebrado presidente do Brasil, que com seus discursos incentiva a violência e o desmantelamento de direitos humanos e civis; direitos cansativamente conquistados e sancionados pela Constituição de 1988 depois de um feroz, longo período de ditadura militar. Poucas são as pessoas que tentam analisar as causas que levam homens infames a agir com tanta violência contra outros homens e contra a natureza; é isso que espero conseguir elaborando este texto, e o farei resgatando situações por mim vividas na pele durante os dezoito anos em que operei na Amazônia.
A estrada Perimetral Norte, quista pelos militares e nunca acabada, que devia ligar o Brasil à Colômbia, em 1974 cortou ao sul o território yanomami. As equipes de desmatamento, contratadas sem qualquer controle sanitário, penetraram maciçamente na região, trazendo as primeiras epidemias de gripe e sarampo, mortais para os yanomami. Na região do igarapé Repartimento e rios Ajarani e Pacu, o contato com os trabalhadores da estrada causou a morte de inúmeros indígenas, reduzindo treze aldeias a oito pequenos grupos de famílias. Em 1975, após a publicação das pesquisas geológicas do Projeto RADAMBRASIL, em território yanomami desencadeou-se a corrida à mineração, por parte de garimpeiros e grandes companhias de mineração e pesquisa. Em 1977, o segundo surto de sarampo desde a chegada da estrada matou sessenta e oito pessoas, quer dizer, metade da população dos grupos locais Manihipi, Uxiu e Iropi. Nesse mesmo ano, áreas tradicionalmente ocupadas pelos yanomami foram incluídas no projeto de colonização do Distrito Agropecuário de Roraima, por meio do Projeto Apiaú e do loteamento do INCRA ate o Ajarani II. Atraídos pelas novidades e pelos bens materiais da sociedade ocidental, naquela época yanomami de todos os grupos locais intensificaram suas visitas às fazendas e às serrarias situadas na beira da estrada, chegando até a cidade de Caracaraí. Algumas vezes se deslocaram grupos inteiros, com mulheres e crianças. O resultado era sempre o mesmo: eram enganados em suas transações comerciais; obtinham indumentos usados, contaminados, que transmitiam para eles doenças da pele; voltavam para casa com gripe, que rapidamente alcançava todas as comunidades da área. O primeiro período por mim vivido entre os yanomami do Catrimâni foi caracterizado por atividades ligadas à cura e vacinação dos indígenas.
Em agosto de 1987 eu estava preste a voltar entre os yanomami, mas cinco deles foram massacrados por garimpeiros que invadiram a área indígena Paapi U. Dizendo-se preocupada com a integridade física das pessoas que trabalhavam na área, e prometendo evacuar os garimpeiros, a FUNAI – Fundação Nacional do Índio retirou da área profissionais de saúde, cientistas, pesquisadores, missionários católicos. Segundo os próprios yanomami, a FUNAI só deixou permanecerem os missionários das Novas Tribos, cujo alienante trabalho sempre se alinhou fielmente à política indigenista oficial. A medida governamental alcançou dois resultados: encorajou garimpeiros de todo o Brasil a invadirem a área yanomami e isolou completamente os indígenas de seus aliados, com isso impedindo que houvesse testemunho daquilo que estava acontecendo. Proliferaram pistas de pouso clandestinas. Por conta de oligarquias e políticos locais, pequenos aviões transportaram milhares de homens em território yanomami. A historia ensina que os garimpeiros são usados como bucha-de-canhão para “limpar” áreas: uma vez exterminados os indígenas, as mineradoras, multinacionais naturalmente, já com os papeis em regra, se substituem aos garimpeiros nos territórios que deixaram de ser indígenas. A imprensa local e nacional começou a dar notícias de doenças, epidemias e mortes de yanomami, envenenados pelas águas contaminadas pelo processo de extração do ouro, ou assassinados pelas armas de fogo dos aproximadamente duzentos mil invasores. A situação assumiu as proporções do genocídio. A ameaça de extinção até então sempre latente, tornou-se crua realidade.
Inúmeras são as pessoas que foram assassinadas por defender a Amazônia e seus moradores. Na minha memória é carinhosamente conservada a lembrança de Vicente Cañas Costa, porque o conheci pessoalmente e juntos participamos de alguns eventos organizados pela OPAN – Operação Amazônia Nativa, que na época era conhecida como Operação Anchieta. Vicente era um missionário jesuíta espanhol, naturalizado brasileiro, chamado Kiwxi pelos índios mỹky. Em 1974, ele e Tomás de Aquino Lisboa estabeleceram os primeiros contatos com os indígenas enawenê-nawê, no Estado de Mato Grosso. Em 1977 Vicente começou a residir entre eles, cuidando da saúde dos índios e trabalhando para a preservação e demarcação de seu território tradicional. Foi assassinado, provavelmente, entre os dias seis e sete de abril de 1987. Encontraram o corpo acerca de quarenta dias depois; tinha dentes e crânio fracassados, um furo na parte superior do abdome, os órgãos genitais cortados. Vicente foi sepultado ao lado da barraquinha onde morava. O primeiro ato do processo contra os assassinos aconteceu dezanove anos depois, e todos foram absolvidos; somente em 2017, um novo processo levará à condenação do único homicida anda vivo, Ronaldo Antônio Osmar, delegado aposentado da Polícia Civil de Juína.
Non foi pela imprensa local que fiquei sabendo do assassinato de Chico Mendes, ocorrido no dia 22 de dezembro de 1988. A notícia chegou alguns dias depois através de um boletim informativo que semanalmente uma organização não governamental do sul do Brasil mandava para seus colaboradores. Fiz logo alguns telefonemas para avisar amigos e conhecidos, me sentindo cada vez mais angustiada pois à minha ia se acrescentando a tristeza dos outros. Húmidas de pranto ou engasgadas na garganta, as nossas palavras não verbalizaram quanto poderíamos ter dito em memoria de Chico Mendes, ou seja: que tinha sido um sólido líder rural, intrépido fomentador de ações denominadas empates, não corrutível vereador, brilhante sindicalista, excepcional organizador do movimento popular no Acre, um dos fundadores nacionais do PT – Partido dos Trabalhadores. Para os seringueiros e índios do Estado de Rondônia, o asfaltamento da estrada BR-364 tinha sido uma catástrofe. Chico Mendes sabia muito bem que, se a estrada fosse naquele momento prolongada até o Acre, sua luta estava perdida. Essa preocupação inspirou suas palavras durante a reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento, da qual participou em Miami em março de 1987. Foi ele, humilde trabalhador, a convencer o banco a suspender os financiamentos para o prosseguimento da BR-364; a partir daquele momento os projetos brasileiros passaram a ser subordinados à avaliação de equipes especializadas na analise do impacto socioambiental de tais projetos. Chico argumentou que era preciso reconhecer e consolidar o direito de ocupação dos territórios por parte de seringueiros e índios e que eles mesmos deviam administrar os recursos. Quer dizer que ele não defendeu a inviolabilidade da floresta, mas sua exploração racional em prol da população local, e é justamente esse o princípio inspirador das reservas extrativistas, que são áreas reservadas à colheita dos produtos da floresta. As ações denominadas empates, fomentadas por Chico Mendes, merecem ser lembradas. No Estado do Acre, ao avanço dos incêndios, do latifúndio, da agricultura intensiva, da monocultura e da criação de gado, correspondeu a tomada de consciência por parte de índios, seringueiros e coletores: da união de seus esforços para defender a floresta e seu peculiar jeito de viver, brotou a forma de resistência pacífica chamada empate, termo que significa ato ou efeito do interromper, suspender, mandar parar. Quando se perfilava a ameaça da criação de uma nova fazenda, homens, mulheres, velhos e crianças se deslocavam no local e, com seus corpos, impediam o abatimento da floresta.
As reivindicações dos líderes indígenas, bem como os documentos finais produzidos durante os encontros e cursos de formação de professores indígenas, foram levadas em consideração durante os trabalhos da Constituinte, que os índios acompanharam criativamente e até fisicamente. A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada no dia 05/10/1988, dedica aos povos indígenas dois artigos de importância vital:
Capítulo VIII, “Dos Índios”, Artigo 231:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.”
Capítulo III, “Da Educação, da Cultura e Do Desporto”, Artigo 210, Parágrafo 2:
“O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”
A introdução na Constituição dos dispositivos favoráveis aos índios, não foi apenas uma grande vitória do movimento indígena, mas representa o marco da mudança na abordagem da questão indígena por parte do Estado, que deixa de tentar emancipar, absorver, aculturar os índios e passa a reconhecer seu direito à terra e à diversidade cultural. Uma vez assegurados esses direitos, o movimento indígena canalizou suas lutas na demarcação das terras; terras que foram regadas com o sangue de inúmeros líderes assassinados. Hoje em dia muitos territórios estão homologados, de outros se pede a inclusão de lugares que ficaram por fora da demarcação, para outros se continua a lutar e morrer como no caso dos guarani-kaiowá do Mato Grosso do Sul. A demarcação das terras desencadeou uma nova fase existencial para os povos indígenas, gerando tranquilidade e estabilidade social e, consequentemente, avanços nas áreas da educação, da saúde, do desenvolvimento sustentável. O dado mais animador é que de 220.000 que eram no começo dos anos noventa, hoje em dia se fala de 900.000 indivíduos. Pertencentes a várias etnias, eles se organizaram em associações; se tornaram professores e agentes de saúde em suas comunidades, vigiantes de seus territórios. São estudantes e professores universitários; são graduados, mestres, doutores, pós-doutores. Seus líderes, entre os quais sobressaem mulheres corajosas e determinadas quanto as amazonas das quais descendem, percorrem o mundo para manter viva a atenção sobre problemáticas e direitos. São pintores, cineastas, atores, cantores, condutores de rádio, jornalistas, advogados. Não menos vital é o movimento dos escritores indígenas que organiza cursos de formação para educadores e alunos brancos, apresentações de livros, conferencias, debates, dando seu imprescindível aporte à construção da identidade nacional, sendo que sem os indígenas o Brasil não existe. Em nível político temos vereadores de várias etnias, um prefeito ashaninka, a primeira deputada federal indígena, a advogada Joênia Wapichana, eleita 32 anos depois de Mário Juruna que foi o primeiro deputado indígena do Brasil.
Estava indo tudo um pouco melhor quando, em outubro de 2018, foi eleito presidente da Republica Federativa do Brasil um ser ignóbil do qual me recuso até de escrever o nome. Como Bosta em português significa merda, modificando seu verdadeiro nome eu o chamo sempre e somente Bostanaro. Este energúmeno levou sua campanha eleitoral se exibindo no obsceno gesto de apontar a mão como fosse um revolver; vomitou palavrões contra mulheres, homossexuais, negros, índios; ele nega que teve ditadura no Brasil e seus heróis são hediondos ditadores latino-americanos; nos ministérios colocou seres ignorantes, obtusos, retrógrados; como presidente continua a falar a toa e a ofender mulheres de presidentes de outros Países e filhos de personalidades assassinadas durante as ditaduras militares latino-americanas. Seus discursos de ódio, naturalmente, incentivam a violência contra as minorias sobre citadas, especialmente contra os indígenas que têm preservado intacta a floresta amazônica até os nossos dias. Mas não é Bostanaro o responsável dos incêndios na Amazônia. Ele é capitão do Exercito, o vice-presidente da República é o general Antônio Hamilton Martins Mourão, sete ministros são militares, dois dos quais trabalham diretamente com o presidente. Acerca de cem pessoas provenientes das Forças Armadas ocupam cadeiras no segundo e terceiro escalão de ministérios e órgãos federais. Em 1966, o governo da ditadura militar varou o projeto chamado Operação Amazônia; sonhando transformar o Brasil numa grande potência, e sem se preocupar com as consequências de suas escolhas, os militares seduziram grandes investidores a empregarem seus capitais na região amazônica. Até o final da ditadura, a gerenciar o poder político e econômico no Brasil foram os militares; e é aquilo que “democraticamente” continuam fazendo hoje em dia se servindo do Bostanaro, que foi eleito “democraticamente” através de fake news, mensagem compradas e disparadas pelo whatsapp, e até através de um presunto atentado à sua vida. Este presidente, tão “democraticamente” eleito, é livre de externar tudo aquilo que atravessa sua mente doentia sendo que, mais tolices ele fala, mais a atenção da opinião pública é desviada daquilo que realmente está acontecendo. O que está acontecendo? Bostanaro é o fantoche, os militares o manobram, o enredo da tragédia em curso é escrito por um ser obeso e repugnante que se chama Capitalismo Selvagem.
Até as palavras, os chavões, os conceitos que circulam hoje em dia são os mesmos dos anos da ditadura: os índios são um obstáculo ao dito progresso e eles mesmos querem ser “emancipados”, os missionários estrangeiros são espiões a mando de potências mundiais, a Igreja católica quer internacionalizar a Amazônia. Até as intervenções dos simpatizantes e amigos dos índios e da Amazônia são sempre os mesmos: vamos começar a dizer que os indígenas reivindicam de serem considerados nossos contemporâneos, e não seres pré-históricos, ou românticos e exóticos dos quais se fala usando verbos no passado remoto? Porque se continua a utilizar o adjetivo “últimos” quando se escreve algo sobre os yanomami enquanto que, em relação à época em que eu operava entre eles, praticamente dobraram? Sendo nossos contemporâneos, os indígenas têm algo a nos dizer. Vamos parar de falar deles para começar a ouvi-los? Eles estão aí. Existem. Resistem à invasão de suas terras há mais de 500 anos. Suas culturas e sociedades não são inferiores, são apenas diferentes. Têm muito a nos ensinar, se só tivéssemos a humildade de escutá-los por aquilo que são: seres humanos com conhecimentos, experiências, direitos, sentimentos, sonhos, mesmo como nós somos. Acumulo, consumismo, agressão à natureza, exploração selvagem dos recursos naturais, têm transformado a terra numa desmedida lixeira. Não mais conseguimos eliminar os detritos. Aqueles que são tóxicos envenenam o ar, a água, o subsolo, tudo aquilo que comemos, e nos morremos de câncer. Os peixes morrem sufocados pela plástica; no mar morrem os emigrantes que o nosso egoísmo rejeita. Paridas por mentes doentias, faraônicas centrais hidroelétricas e nucleares têm se transformado em catástrofes ambientais, chegando a devastar territórios até muito longínquos dos lugares onde foram construídas; a mesma coisa acontece naquelas áreas onde os minérios são extraídos a céu aberto e em larga escada. Tudo é feito em nome do pretenso progresso que, aumentando, só consegue esvaziar o animo dos homens, tornando-os individualistas e desconsoladamente sozinhos. Os guardiões da floresta estão nos dizendo que não são e não serão os últimos, porque eles sabem como cuidar da terra, como gozar com ela sem violentá-la, como engravidá-la e perpetuar a descendência.
Bibliografia
Yanomami, em A conquista da escrita – Encontros de educação indígena; L. Emiri, R. Monserrat (org); OPAN/Iluminuras, São Paulo, 1989.
Dossiê elaborado em função da Celebração dos 50 anos do CIMI, Loretta Emiri, 06-2021.
Da oralidade à formação superior indígena, Loretta Emiri, 09-2021.