CRÔNICA
Por Marco Dacosta
A vida é preciosa e não devemos esperar para revelar às pessoas queridas o quanto as amamos. Essa era uma anotação em um velho caderno e repousava em uma mesa de cabeceira, naquele último dia do ano.
Domenico deixou a cama, olhou para a anotação e percorreu um longo caminho até chegar nas portas gigantescas, cravadas à mão, que ornavam sua enorme casa. Ficou ali parado, passando os dedos nos relevos, olhando para o céu, que estava limpo e cheio de luz.
Era uma enorme casa, nas montanhas, em algum lugar no sul da Itália.
Domenico havia decidido fazer uma festa de ano novo com todos seus amigos, que não via há décadas. Milionário, resolveu enviar a sete “sortudos” escolhidos, uma passagem aérea e a hospedagem em seu quase castelo. No dia 31 ficaria na porta aguardando seus amigos de infância e um por um presentearia com os melhores vinhos e agrados. Depois de três décadas sem contato, Domenico finalmente havia reconhecido que sua fortuna de nada valeria se não pudesse compartilhar momentos de fartura e beleza com seus amigos de infância. Por que somente sete, ninguém sabia. Poderia ser excentricidade, ou culpa. Os sete nomes estariam na mesa, cuidadosamente escolhidos em cada posição – “Fernanda não pode ficar próxima ao Silvio” Explicou ao mordomo. Cada lugar tinha uma razão. Theo, o mordomo, cumpriu a longa lista de exigências, flores favoritas, cores, quartos com ou sem visão. O anfitrião fez questão de que cada detalhe fosse acompanhado por seu staff. Seria – disse – a maior e melhor festa de réveillon de sua vida. Uma chance – diria – para recompensar anos de distância e ausências.
Domenico liberou todos os serviços às cinco da tarde. Disse que queria receber e atender seus amigos sozinho. Theo e todos acharam estranho, mas deixaram a mansão na hora combinada. O anfitrião desceu as escadas às seis em ponto, entrou no salão, passou silenciosamente pela sala de jantar, verificou cada nome na mesa, ajustou os talheres. Domenico foi a porta receber os convidados, que estavam agendados para chegar em diferentes horários. A ideia era nenhum encontrar com outro, pelo menos não antes da ceia e dos fogos. Domenico havia ajustado a exibição dos fogos de artifício no jardim, que tinha visão para o mar. De suas janelas brotava um horizonte azul e calmo naquele último dia do ano.
O primeiro a chegar deveria ser Carlos, seu vizinho de infância. Depois a primeira namorada, Silvia. Na sequência, Elizabeth que conheceu aos 19 enquanto estava no exército. Todos eram pessoas que fizeram parte de sua vida antes da riqueza e da fartura. Os amigos do bairro, que pegavam um velho trem juntos para buscar emprego, organizavam quermesses na igreja, brigavam na saída da escola – uma juventude perdida em um passado de memórias, antes de computadores, quando se colecionavam figurinhas e revistas em quadrinhos. Tempos em que havia novelas de rádio e os heróis voavam sobre nossas casas, simples e cheias de esperança em dias melhores.
Embora não tenha recebido nenhuma confirmação, Domenico estava certo de que todos aceitariam aquele generoso convite. Trinta anos ! Estariam eles gordos, cheios de filhos ? Quem havia se casado? Thomas com certeza era gay – pensou. E Julieta ? Era a favorita entre todos, revolucionária, atirada, adorava dançar nua nos acampamentos de verão. Depravada, boca suja – diriam nossos pais. Domenico era um menino de classe média, com pais católicos e que nunca aprovaram seu círculo de amizades. Artistas – diria dona Ângela, sua mãe – não tem futuro.
Duas horas se passaram e os primeiros agendados não apareceram. A falta de confirmação era prevista. Domenico queria saber exatamente quem o havia perdoado por tantos anos de silêncio. Nenhuma carta, nenhum telefonema depois que saiu do vilarejo. Sete amigos que nunca mais soube de seus destinos.
A última da lista chegou às dez da noite. Angélica Dante. Irreconhecível, com cabelos cacheados e cinza, um vestido vermelho ajustado ao corpo, muito acima do peso para sua altura. Era a menos popular de todos e a primeira a se casar e mudar da cidade. Foi assessora de um político, com quem teve um caso amoroso por anos até que a mulher dele a encontrou na cama, na casa de veraneio do casal. Muito elegante, a mulher do político apenas deu um sorriso discreto e fechou a porta, como se tivesse acostumada às traições do marido. Ou teriam algum tipo de acordo? Histórias de amor sempre possuem várias versões.
Domenico a abraçou por minutos. Como poderia esquecer aquele abraço? Foi dela o primeiro, no enterro de seu pai, depois quando recebeu a primeira carta de emprego. Domenico usou durante anos em seu currículo o telefone dos Dante, o único aparelho da rua. A mãe de Angélica costumava descer a rua inteira às vezes para avisá-lo que alguém havia ligado. Geralmente não lembrava o nome ou que empresa. Mas aí já seria pedir demais. – Avise ao seu amigo que não sou secretária dele ! – costumava lembrar a Angélica sobre o uso do telefone.
Ao contrário de Domenico, Angélica manteve contato com todos, foi madrinha de casamento da maioria e até batizou alguns filhos. Chegou a ir a algumas reuniões realizadas pelo pároco, Rafael, para comemorar os anos de chrisma. Ano após ano o grupo foi reduzindo até que somente Angélica aparecia, sentava-se nas primeiras fileiras da missa, fazia o sinal da cruz e ia embora.
Domenico sentou-se à mesa com Angélica. Somente os dois em uma vasta ceia. Sem serviçais, ele a serviu, com vinho e salada. Havia um enorme silêncio até que ela resolveu falar. Eles não estariam ali pelo mesmo motivo que nunca mais foram as reuniões da igreja. Se perderam pelo mundo, alguns morreram e outros simplesmente nem sabiam mais do que se tratava, ocupados com negócios ou cuidando de seus netos. Thomas, sim, era gay e morreu em 1997 – disse Angélica. Também se foram César, Rogério e Silvia. O mundo viu guerras, pandemias, infinitas doenças. A vida é frágil – lembra Domenico – não podemos esperar até que uma tragédia aconteça para lembrar de amigos.
Angélica e Domenico assistiram abraçados aos fogos. Prometeram que iriam voltar a se ver, a trocar cartas e postais. A mesa enorme e a ausência de tantos marcou aquela passagem de ano. Como a vela que ilumina a mesa repleta de distrações, somos afetados pelos ventos que nos apagam ou inflamam. Os anos passam rápido, todos os dias devemos lembrar disso – reafirmou Domenico no abraço de despedida. “Quando acordo, abro os olhos e vejo que ainda estou vivo me dá uma enorme alegria de ainda estar compartilhando esse mundo com tanta gente querida. Não sabemos nunca quem não acordará amanhã – e essa é a magia, desafio e beleza da vida. O Mistério sobre o futuro é nossa única certeza.
Feliz Ano Novo! Brindou Doménico aos ventos. E as cortinas brancas abriram naquela manhã para anunciar um novo ano, cheio, como sempre, de luz.