[media-credit id=1045 align=”alignnone” width=”198″][/media-credit]Os municípios de Loures e Odivelas, na periferia da cidade de Lisboa, tomaram neste mês de Outubro a iniciativa pioneira de deixar de cortar o abastecimento de água aos consumidores com faturas em dívida. Em alternativa, estes municípios passaram a aplicar um redutor da quantidade de água fornecida por dia, enquanto a dívida se mantiver.
De acordo com as respetivas câmaras municipais, o propósito desta iniciativa é o de reconhecer a efetividade do direito à água, garantindo um mínimo de subsistência a todos os cidadãos, apesar de estarem em situação de não poder pagar por ela. Desta forma, não há uma alteração de fundo na política da água, já que o fornecimento desta continua a ser oneroso e cobrado aos cidadãos. Porém, ao contrário do que acontece em todos os outros municípios portugueses, onde em muitos casos o fornecimento de água foi concessionado a empresas privadas, a falta de pagamento já não implica a suspensão do serviço, mas apenas a sua restrição. Ao mesmo tempo, os consumidores que não pagam o serviço não ficam impunes, quer por efeito da referida restrição quer porque o município pode tentar a cobrança coerciva da respetiva dívida.
No entanto, a iniciativa já está envolta em polémica, tanto à direita como à esquerda. Enquanto uns acusam a medida de populista, por causa da difícil situação financeira dos municípios, outros dizem que a mesma é escassa, tanto em função da quantidade de água que é disponibilizada diariamente aos cidadãos em mora como também por causa do preço da água.
Certo é que o Observatório dos Direitos Humanos (ODH) já tinha defendido publicamente uma tese similar, sustentando ser possível defender juridicamente a inconstitucionalidade da suspensão do fornecimento de água em caso de dívidas do consumidor.
Na verdade, o ODH tinha afirmado que o corte do abastecimento de água violava o direito ao mínimo de existência condigna, extraído do princípio da dignidade humana (artigo 2º da CRP), e o direito à água e ao saneamento, reconhecido como um direito humano pela ONU, por meio da resolução A/RES/64/292, de 28/07/2010, da sua Assembleia Geral, a acrescentar àqueles que já constavam da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Aliás, Portugal foi um dos Estados que votaram a favor da mesma resolução, proposta pelo Governo boliviano. Por outro lado, a Constituição da República Portuguesa (CRP) tem uma cláusula aberta de receção de todos os direitos humanos reconhecidos em instrumentos internacionais, ainda que não expressamente consagrados no texto da mesma (cfr. artigo 16º, nº 1 da CRP). Desse modo, ainda que não expressamente consagrado na respetiva legislação, o direito à água já vigora na ordem jurídica portuguesa e carece de uma tradução prática.
Nessa medida, segundo o ODH, para além da Lei dos Serviços Públicos Essenciais (Lei nº 23/96, de 23 de Julho) carecer de revisão de modo a dar conteúdo efetivo ao direito à água, a norma legal respetiva que autoriza a suspensão do fornecimento de água, em caso de dívidas do consumidor, devia ser declarada inconstitucional pelos tribunais portugueses, por violação do direito ao mínimo de existência condigna (o qual é de aplicação direta, conforme o disposto no artigo 18º, nº 1 da CRP), em articulação com o direito à água.
Aliás, o ODH teve o cuidado de esclarecer que não estava a dizer que o consumidor não tivesse que pagar a sua dívida, mas sim que não podia ficar privado em absoluto de água em razão da mesma, considerando o quadro jurídico vigente.
Desse ponto de vista, a prática adotada pelos municípios de Loures e Odivelas constitui realmente um passo em frente no sentido da consagração do direito à água, embora não esgote o caminho para a sua efetividade.