REFLEXÃO

 

 

Por Paolo D’Aprile

 

 

Chegamos ao limite, Bolsonaro tem que ser detido, escreve José Dirceu. É verdade, não dá mais para aguentar: não dá mais.

Faltando um mês para a posse, escrevia eu um artigo em que, além de expressar o temor da deriva autoritária, dizia ter medo que as inúmeras ameaças proferidas durante a campanha eleitoral fossem se concretizar. O artigo prosseguia dizendo que no Brasil havia cinquenta e sete milhões de pessoas dispostas a me torturar, me expulsar do país, me humilhar e até me matar. Escrevia também que os fascistas, sempre cumprem o que prometem: palavras de morte abrem caminhos sem volta.

Dois anos e meio depois, minha profecia não se concretizou, fui desmentido pela realidade dos fatos, tudo aquilo que aconteceu foi mil vezes pior do que eu, e qualquer um de nós, poderia imaginar. As cenas de horror, as montanhas de cadáveres, o esgarçamento dos laços sociais, o desmonte sistemático das instituições, a violência policial, a conivência do judiciário, o execrável comportamento das forças armadas e seus chefes, a pandemia comendo as entranha do povo, o desemprego em massa, a miséria, a fome, o ataque frontal ao convívio democrático, à cidadania, ao meio ambiente, transformaram o nosso País no cemitério do mundo. E nós deixamos tudo isso acontecer. Atônitos, incrédulos, imobilizados pela sucessão dos acontecimentos, ficamos olhando impotentes ao avanço daquela arquitetura da destruição que, como o joelho asfixiante que cortou o ar de George Floyd, nos esmaga a garganta, tirando nossa voz e nossa dignidade.

A Comissão Parlamentar de Inquérito deixou bem claro aquilo que já estava à vista de todos, não precisávamos dela para saber. Nesses longos anos nossa apatia, nossa incapacidade de mobilização, foi o tapete vermelho sobre o qual triunfou a politica de terra arrasada, anunciada pelo próprio Bolsonaro na sua primeira visita a Washington, em 17 de março de 2019, quando, frente aos tubarões do mercado financeiro, disse que “O Brasil não é um terreno aberto, onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo, nós temos de desconstruir muita coisa, desfazer muita coisa para depois recomeçarmos a fazer”. De lá pra cá, mais quatrocentos cinquenta mil mortos gritam seu espanto frente à determinação cínica do governo e seus apoiadores.

De lá pra cá, a arquitetura da destruição, a vontade de aniquilar nossa gente, se concretizou no negacionismo, no boicote, na sabotagem, no incentivo à propagação da pandemia, em cada declaração, em cada aparição pública do presidente e seus sequazes.

Hoje, quando chegamos ao limite e Bolsonaro tem que ser detido, a oposição institucional e os movimentos sociais, nos convocam a sair às ruas, porque, dizem que somente a pressão popular é capaz de derrubar o governo. Sim, naquelas…

Não vai ter golpe, gritamos por meses a fio nas ruas do país: e o golpe se abateu sobre nós e a Presidenta Dilma por um impeachment fraudulento. Fora Temer, continuamos a gritar, e o Vampirão da República conseguiu terminar seu mandato, implantando a PEC dos gastos públicos, a privatização do Pré Sal e a destruição das leis trabalhistas. Ele Não, Ele Não, gritamos até perder a voz. E ele veio. Desde a luta contra o impeachment da Presidenta Dilma, perdemos todas as batalhas, perdemos a nível institucional e principalmente perdemos nas ruas. Achávamos que iriamos conseguir envolver o tiozão do churrasco ou a tia do zap, sem perceber que eram eles o núcleo duro do bolsonarismo, sem perceber que grande parte dos nossos familiares, vizinhos, colegas de trabalho, gostariam de nos ver mortos. O desprezo pela vida expressado em palavras e ações, faz o bolsonarismo descer às ruas para demonstrações de força cujo conteúdo é a propaganda da morte que se concretiza nos hospitais lotados e no sofrimento físico do povo.

Usar o mesmo meio, e a idêntica forma de manifestar, ou seja, reunir-se para grandes passeatas e comícios, significa repetir o erro fatídico que nos trouxe até esse ponto: comportar-se e atuar como sempre foi feito e como sempre se faz em tempos de normalidade democrática: oposição parlamentar, e para pressionar, manifestações de rua. O problema reside no fato de que, desde o impeachment, essa mesma ordem democrática foi quebrada, como bem disse a presidenta Dilma no seu histórico discurso no senado federal: Agora, a ruptura democrática se dá por meio da violência moral e de pretextos constitucionais para que se empreste aparência de legitimidade ao governo que assume sem o amparo das urnas. Invoca-se a Constituição para que o mundo das aparências encubra hipocritamente o mundo dos fatos.

Demos ao fascismo toda a legitimidade democrática para que pudesse implantar sua necropolítica. Menosprezamos sua força e sua capacidade de permear nas contradições históricas da sociedade brasileira. Deixamos que as milícias tomassem os gânglios do poder. E agora, essa mesma oposição impotente convoca o povo no pior momento da pandemia, quando temos duas mil pessoas morrendo a cada dia, as UTIs lotadas e a nova variante indiana chegando. A oposição e os movimento sociais convocam o povo da mesma forma como faz o nosso algoz. Não gente, agora não. Temos o dever de não agir como ele.

Nossa reação deveria apontar a outras direções, inventar outras iniciativas, focando no ponto mais sensível do caldo cultural bolsonarista, a classe empresarial, o nosso trabalho que continua produzindo riqueza para ela. Só através do bloqueio da cadeia produtiva, nossa ação poderia adquirir dimensões drásticas, somente com o boicote do sistema de trabalho, poderíamos alcançar nossos objetivos. Existem mil formas de organização dos trabalhadores e de suas atividades para conseguir atingir a mecânica do funcionamento do capital. Assim como o guarda da esquina pode se tornar o símbolo da opressão, cada lugar de trabalho, cada trabalhador, cada função pode se transformar em baluarte da resistência. Hoje não podemos sair às ruas, fora a vacina, a única defesa que nós temos é ficar em casa, respeitar o distanciamento. Como podemos invocar o lockdown tão necessário se formos nós mesmos a não respeitá-lo?

Amigas e amigos, a batalha contra o fascismo vai ser longa e difícil. Concordo com José Dirceu, chegamos ao limite. Resistir é preciso! Mas não nas ruas, agora não. Nós não somos como eles.

A História ensina que no fim os fascistas sempre perdem. E o castigo será implacável.