CRÔNICA
Por Marco Dacosta
Paulo Gustavo estava na esquina da Broadway com a quarenta e cinco. Era seu último dia em Nova Iorque e iríamos tomar um café para falar de nossos muitos planos. Ele queria aproveitar a rápida visita à cidade para assistir um show de Beyoncé, sua favorita, mas não conseguiu reservar um ingresso. Mesmo com toda correria ele conseguiu um tempo para que eu tivesse a oportunidade de apresentar uma pequena lojinha que vendia scripts e roteiros. Falabella e outros diretores brasileiros costumavam frequentar o lugar, sempre encontrando algo interessante para levar para o Brasil. “The Drama Book Shop” foi criado em 1917, cheio de estantes com clássicos e também muito material que jamais foi encenado para que produtores possam receber na “fonte” trabalhos e inspiração para peças da Broadway, filmes e novelas. Há muitos anos a pequena livraria entrou no roteiro de jovens atores e diretores de todo o mundo e principalmente da América Latina. Recentemente o espaço foi adquirido pelo diretor da famosa peça “Hamilton” Lin-Manuel Miranda e alguns atores do elenco, numa tentativa de salvar esse patrimônio da cidade, que vinha enfrentando problemas financeiros.
Muitos artistas famosos frequentam a casa secretamente. Como fica situada em uma região de grande movimento turístico, muitos prezam pelo anonimato e fogem das câmeras, circulando pelas diversas estantes do lugar de forma muito discreta, com chapéus e toucas. Paulo Gustavo escutou essa história e ficou muito animado com a possibilidade de transitar disfarçado – mesmo ainda não sendo conhecido a esse ponto. Como gostava de fazer graça com tudo, se vestiu de um de seus personagens, a “mulher feia”. Levei um susto quando a vi entrar, com aquele véu e mostrando somente os olhos. – pronto, ninguém vai saber que sou eu – falou rindo da própria fantasia de celebridade, abrindo o véu e mostrando os dentes amarelados e tortos da personagem. O combinado era Paulo transitar pela livraria e fazer graça com alguns clientes brasileiros.
A Drama Book Shop tem dois andares e no segundo ficam os scripts inéditos. Eu deixei Paulo lá enquanto navegava pelos clássicos no primeiro piso. Jonas, o gerente da época era casado com um amigo Brasileiro e por isso já havia conhecido o espaço em detalhes, sendo apresentado a cada setor. Quando recebo visita de amigos do Brasil e que desejam conhecer livrarias sempre sou lembrado porque todos sabem que conheço todas – e sempre estou explorando novos espaços. Livrarias são meus templos sagrados. É um lugar que me tranquiliza e me enche de inspiração.
Paulo Gustavo voltou esbaforido e rindo. Uma muçulmana havia tentado interagir com ele. – E agora o que faço, o que eu digo ? A mulher o seguia por todos os lugares querendo conversar e ele tentava escapar – Marco, me ajuda. Explica pra ela que trata-se de um personagem, que não sou uma “muça’, ria sem parar. A mulher parece que também escapava de mim. Tentei me aproximar algumas vezes, mas ela só queria falar com o Paulo, ou melhor, com outra mulher.
Depois de algumas tentativas, cheguei próximo e sussurrei em inglês que minha “amiga” era apenas um ator Brasileiro vestido com um de seus personagens. A mulher respondeu em inglês que sabia, que já havia visto na TV esse quadro, que era de certa forma fã de Paulo Gustavo e que também tinha ido à livraria disfarçada por ser também do meio artístico. A artista misteriosa havia se inspirado em Paulo Gustavo, mas não falava português para expressar essa admiração. Além disso, ela teve a ideia de se vestir assim para ir ao Drama Book Shop após ver um de seus clipes, apresentado por um amigo brasileiro. A “mulher feia” era ideal para essas ocasiões – disse ela.
Paulo riu muito desse encontro e abraçou a fã com ternura. Com seu inglês bem engraçado trocou gentilezas, afagos e disse que estava indo embora de Nova Iorque aquela noite um pouco frustrado porque não havia conseguido ingresso para o show da Beyoncé e que amava Nova Iorque, desde os tempos que viveu por aqui fazendo entregas e tentando a vida na cidade.
A mulher dizia estar muito envolvida com as produções e shows da cidade e revelou que era amiga pessoal de Beyoncé. Faria questão de conseguir um ingresso VIP e realmente cumpriu sua palavra deixando na portaria do hotel, horas depois, uma filipeta azul, com um bilhete.
Paulo partiu para o show suando frio, emocionado e feliz pelo encontro no Drama Book Shop – algo que descreveu como “absurdo” e misterioso. Seus personagens já corriam o mundo de diferentes formas e chegaram a tanta gente que ele não tinha ideia. Imagine – me disse – uma americana que se inspira em mim pra sair e fazer palhaçada, que é amiga de Beyoncé. Nos abraçamos antes do show e ele entrou feliz.
Beyoncé entrou divina, como sempre, arrancando lágrimas dos seus fãs. Paulo gritava, estendia a mão, era quase possível tocá-la. Quanta emoção para o jovem ator de Niterói, que já pegou barcas solitárias na travessia da baía de Guanabara, escutando “Crazy in love”. Agora Paulo transitava na Broadway, levava sua cidade favorita para dentro de seus shows e até inspirou atores e atrizes americanos. Como é incrível sentir a arte abrindo novos mundos e transformando vidas.
Antes de se despedir Beyoncé diz que esteve nas ruas para buscar inspiração para seu novo show e que gostava de andar disfarçada pela cidade. Quase paralisado pelo pensamento ágil que lhe era peculiar, Paulo pegou o bilhete deixado na portaria, que nem foi lido na pressa de chegar ao teatro. Estava assinado por Giselle K. e dizia ” tudo é possível essa noite. Obrigado por me amar assim” – Como um flash lembrou – Beyoncé chama-se Giselle Knowles. A mulher disfarçada era ela mesma, sua diva e inspiração. A Diva que se inspirou no fã, que olhou para Paulo Gustavo e percebeu aquela energia imensa. Tudo foi possível para o menino de Niterói.
Nossas vidas são repletas dessas pequenas histórias. É o humor e a fantasia que nos salvam. Nossa vidas são repletas de desencontros também.
Não tive a chance de conhecer Paulo Gustavo e imaginei essa nossa curta e fantasiosa aventura na Broadway. Sua partida precoce me impediu de participar de suas histórias. Meu sonho de promover – mesmo que na imaginação – um encontro entre ele e Beyoncé me faz feliz e me alimenta a alma. Perdemos – em Nova Iorque – oportunidade de encontrá-lo, de esbarrar e dizer “sorry”, como fazia para ilustrar a alegria de estar aqui.
Milhares de jovens Paulos estão hoje cruzando pontes para realizarem seus sonhos, Muitos outros Paulos sonhando com as luzes da Broadway. Abrir caminhos e ajudar esses jovens a realizarem seus sonhos, é a melhor forma de honrar a vida do furação Paulo Gustavo.
Que mil palcos se iluminem.