CONTO

 

 

Por C. Alfredo Soares

 

 

Mata alta retendo a visão ao trecho do caminho. Vento forte balançando as árvores. As folhas despencam em pleno outono. Na estrada, a poeira vermelha nos olhos, arde e dificulta a visão. O capim chicoteia entre as os troncos de ypê.

O carro avança em direção oposta ao asfalto da estrada que corta a região. De longe avisto um negro vestido em seus andrajos. Tão negro que nele o sol reluz. Na mão direita, um cajado de madeira nativa. Na cabeça, um torso. São tantos os buracos que acabo desviando o olhar daquele sujeito fantástico, coberto por panos coloridos.

Mas ele está lá no meio da vicinal, como um lobo a vigiar a presa que se aproxima. Os buracos sacolejam o carro pelo caminho. Quando me aproximo, de uma distância segura pra fitar seu rosto, ele some. Mas não some caminhando. Some desaparecendo da minha visão. Um assombro. Agora não sei se era mesmo um homem ou um ser encantado.

Paro o carro subitamente, espero a poeira baixar e olho atentamente.

Nada!

Sigo acelerando meu carro devagar até alcançar o ponto certo da visão.

Mais uma vez não consigo identificar sequer um vestígio daquele ser.

Nem uma pegada no chão percebo, apesar de estar coberto pela poeira.

Cruzo o ponto olhando para os dois lados, como se estivesse numa encruzilhada imaginária. A mata está intacta como se ninguém estivesse entrado por ela a instantes.

Nem mesmo o vento que baixa o capim deixa eu ver pra onde ele foi.

Um misto de medo, alívio e curiosidade acelera meus batimentos.

Ao constatar isso, prefiro acelerar até chegar no meu destino.

Lá sento com os homens do lugar e conto o ocorrido.

Eles riem e dizem que era um Caboclo do Mato – contaram haver muitos que perambulam por lá.

Que vivem nas tocas, escondido de gente que vem de fora.

Perguntei o motivo de tanto ressabio.

Me contaram que ainda remanescem neles um temor de serem capturados e levados para o trabalho escravo, mesmo já tendo passado mais de 100 anos da abolição.

São filhos dos quilombos, apagados pelo tempo e pelas lavouras de cana, que abasteciam os engenhos.

Os caboclos do mato só aparecem para os seus. Ninguém sabe quantos anos eles tem.

São sábios, conhecem os remédios da natureza, sabem caçar e pescar como poucos.

Identificam os cantos dos pássaros e o que significa cada pio da mata.

São tão naturais que se camuflam virando árvore, capim ou bicho arisco e feroz. Quando querem reuni-los tocam tambor e eles surgem em meio a vegetação feito borboletas coloridas. São gentis com os seus e guerreiros com lanças afiadas.

De todos os bichos, me contam, preferem se transformar em cobra coral, por serem ágeis e fatais.

Mas que voam pelos ares como gaviões  vigiando os arredores.

A qualquer sinal de perigo, como fogo, por exemplo, convocam as nuvens carregadas pra fazer chover.

Eles só temem a maldade que vem no coração dos homens. Por isso não se misturam.

São puros de sentimentos ruins.

Deduzo: não são exatamente homens, bichos, mineral ou vegetal, mesmo sendo tudo isso ao mesmo tempo.

São cosmológicos.

Daquele dia em diante sempre quando entro naquela estrada, a caminho do sítio, torço pra encontrar aquela figura negra, alta e arisca pelo caminho. Sei que ele me vê passar,  mas ainda não conquistei sua confiança.

Talvez ele saiba que irei prendê-lo numa conversa infindável com perguntas que ele não pode responder.

Tem coisas que fazem parte do seu encantamento, pra sabermos só virando um deles, nos emaranhando no mato e nunca mais saindo de lá.

Assim a ancestralidade baterá forte dentro do peito, mostrando que tudo é uma coisa só, com causa e efeito, dando sentido ao Caboclo do Mato, que só existe por que nós resistimos, feito a mata, os bichos e os minerais.