O Estado espanhol deve assumir sua responsabilidade e ser um agente ativo na resolução do problema. A sociedade civil e a opinião pública são elementos fundamentais para alcançar este objetivo
MANIFESTO de Edurne Portela / Olga Rodríguez / Virginia P. Alonso e mais 83 assinaturas
A história do Sahara Ocidental está intrinsecamente relacionada com a do Estado espanhol e das pessoas que o habitam. Por um lado, a colonização desse território por quase um século deixou à ex-metrópole um legado de responsabilidade por sua situação não resolvida. Por outro lado, a posição subalterna a que a população saharaui foi relegada por este fato não impediu a criação de laços sentimentais, emocionais, culturais, sociais, económicos, familiares… com os espanhóis. A história recente do povo saharaui está ligada à nossa nesta dupla dimensão.
Enquanto jornalistas, contadores de histórias e narradores do que se passa no mundo, temos consciência do quadro em que se inscreve esta relação e que continua a condicionar o que se passa no Sahara Ocidental, também agora.
O Estado espanhol tem responsabilidades para com o povo saharaui. Em nenhum momento, os Acordos Tripartites de Madrid transferiram a soberania para Marrocos ou Mauritânia. Conforme reconhecido por organizações internacionais e pela própria Justiça espanhola, o Estado espanhol continua a ser a potência administradora do processo de descolonização do Sahara Ocidental, um território não autônomo definido pelas Nações Unidas. Nesse sentido, em 2014, o Tribunal Nacional declarou em um despacho da Câmara Criminal presidida por Fernando Grande-Marlaska Gómez que:
“A Espanha, ao entrar na Organização das Nações Unidas (ONU), e assinar a Carta das Nações, em São Francisco, 26 de junho de 1945 – publicada no Boletín Oficial del Estado (BOE), em 16 de novembro de 1990 – reconheceu o fato colonial do Saara espanhol, contraindo uma série de obrigações, e se tornando na Potência administradora. Nesse sentido, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 2.072, de 16 de dezembro de 1965, pela qual a Espanha é considerada a potência administradora do Sahara espanhol. Como potência administradora, está obrigada de acordo com a secção a) do artigo 73°: “a assegurar, com o devido respeito pela cultura dos povos, sua ascensão política, econômica, social e educacional, o tratamento justo a esses povos e sua proteção contra todos os abusos… “.
Mas a Espanha permitiu cair no esquecimento sua relação com as colônias que, durante séculos, ocupou com o objetivo extrativista, um passado sombrio que permanece sem solução. A questão saharaui é o caso em que as consequências desse passado não resolvido se mostram de uma forma mais paradigmática e clara. Ao não resolvê-la, o Estado espanhol continua preso em uma página negra da história da humanidade, a colonização, que ainda não conseguiu encerrar.
A Espanha levou os saharauis à guerra em 1975, vendendo o território do Sahara Ocidental ao Marrocos e à Mauritânia. A guerra durou até 1991, quando o cessar-fogo foi assinado sob a promessa da ONU de realizar um referendo sobre a autodeterminação para que o povo saharaui pudesse decidir o seu futuro político. Consulta que nunca foi realizada devido ao bloqueio imposto pelo Marrocos.
Agora, a guerra voltou ao Sahara Ocidental. Foi o Marrocos quem violou o cessar-fogo em 13 de novembro, quando soldados marroquinos entraram na zona neutra para interromper uma manifestação pacífica de civis saharauis. O regresso às armas da Frente Polisario, após 29 anos apostando em uma solução pacífica e diplomática, representa um fracasso da humanidade, mais especificamente, da ONU e da governação global baseada no multilateralismo; bem como da Espanha, que ainda é legalmente a potência administradora do território.
O Sahara Ocidental é um território não autônomo conforme definido pela ONU e seu direito à autodeterminação é endossado por tribunais internacionais. Por essa razão, o recente anúncio de que o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirmava a soberania marroquina sobre o Sahara é ilegal e não pode ser considerado aceitável pela própria ONU – organização responsável por encontrar uma solução aceitável pelas partes com base no direito à autodeterminação do povo saharaui–. Trump tem agido contra o multilateralismo, contra uma forma de governança e coexistência global que faz com que todas as pessoas do mundo em que vivemos participem.
Por quarenta e cinco anos, o povo saharaui foi submetido às duras condições de exílio e refúgio ou da ocupação. As áreas ocupadas pelo Marrocos são “uma prisão ao ar livre” para a população saharaui. Seus direitos mais básicos têm sido sistematicamente violados, sejam eles à reunião, expressão, identidade, integridade cultural, bem como os direitos sociais, econômicos, físicos e, inclusive, à própria vida. Desaparecimentos, prisões arbitrárias, julgamentos sem o devido processo…
Desde que o cessar-fogo foi violado, a situação nos territórios ocupados tornou-se mais perigosa e dura para a população saharaui, especialmente, para ativistas que defendem os direitos humanos e os direitos para jornalistas. Relatórios de organizações como a Organização Mundial contra a Tortura ou os Repórteres sem Fronteiras divulgaram o recentes cercos a casas de jornalistas saharauis por grupos como a Equipe Media ou a Fundação Nushatta, bem como tentativas de rapto desses jornalistas saharauis residentes nas zonas ocupadas. Também a Instancia Saharaui Contra a Ocupação Marroquina (ISACOM), da qual fazem parte ativistas de reconhecido prestígio internacional como Aminatou Haidar ou El Ghalia Djimi, fez eco dessa situação. Ameaças e coerção por meio de redes sociais contra essas pessoas que se dedicam à informação e comunicação são comuns.
Tampouco deve ser esquecido, nesse sentido, que sete jornalistas saharauis estão privados da liberdade, espalhados pelas prisões marroquinas. Quatro deles fazem parte do conhecido grupo Gdeim Izik: Bachir Khada (Equipe Media, 20 anos de prisão), Hassan Dah (TV RASD e Equipe Media, 25 anos de prisão), Mohamed Lamine Haddi (Rádio RASD, 25 anos de prisão) e Abdalahi Lechfauni (colaborador da Equipe Media, prisão perpétua). Os outros três são Mohamed Bambari (seis anos de prisão), Oualid El Batal (dois anos de prisão) e Faraji Khatri Dadda (20 anos de prisão). Essa situação também viola o direito internacional. O direito à informação, liberdade de expressão e comunicação são reconhecidos em vários tratados e compromissos, especialmente, quando se trata de uma zona de conflito, como o Sahara. Assim indica a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 19°; o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 19°; e a norma 34 do Direito Internacional Humanitário.
Todo o sofrimento gerado ao povo saharaui durante décadas é consequência dos deveres e obrigações não cumpridos pela Espanha. Portanto, o Estado espanhol tem a possibilidade e a responsabilidade de assumir e liderar a iniciativa que proporcione uma solução de acordo com o Direito Internacional. Uma postura corajosa que devolva a Espanha a uma política externa ativa que esteja de acordo com a Carta Universal dos Direitos Humanos e com o que é indicado pelo Comitê Especial de Descolonização da ONU. Uma política responsável com seu papel no mundo e com sua história.
Para além da responsabilidade legal, a ligação entre a sociedade espanhola e a saharaui é revelada em muitas áreas. Culturalmente, é uma nação irmã com a qual compartilhamos língua, arte e imaginação coletiva. Iniciativas como FiSahara, Artifariti, ArTifariti e Un micro por el Sahara ligam a cultura espanhola e saharaui há anos. Esses laços também têm a ver com a memória histórica e democrática: é preciso lembrar que, assim como temos a responsabilidade de abrir as feridas para resolver nosso passado na Península, também há feridas no deserto. Também há corpos com documentos de identidade espanhóis enterrados sob aquela areia.
Os laços de solidariedade perduram até hoje. O programa Férias em Paz fez com que dezenas de milhares de famílias espanholas recebessem menores saharauis durante décadas. Famílias que agora veem como esses jovens se vestem de soldados e vão para a frente, dada a falta de perspectivas e possibilidades de futuro.
Em termos de vínculos econômicos, o Sahara é um território rico em recursos naturais, que estão sendo exploradas pelo Marrocos e por empresas multinacionais (muitas delas, espanholas), sem que beneficiem a população saharaui, ao contrário do que estabelece a legislação sobre os territórios não autónomos. É uma pilhagem constante. A política externa espanhola não pode servir apenas às grandes empresas: deve levar em conta os direitos humanos.
É curioso observar que, no momento em que o regime de Franco se fechava e se iniciava a transição democrática, o Sahara estava no centro do momento político; e que também agora, quando a história política espanhola passa por um novo ponto de inflexão, o Sahara está, mais uma vez, presente. Naquela época, a solução não foi essa e o problema e o sofrimento de todo um povo persistiram por décadas. Hoje, embora tarde, pode ser a hora de começar a buscar soluções de acordo com o direito internacional.
Se o problema é político, a solução é política. O Estado espanhol deve assumir a responsabilidade e ser um agente ativo na resolução deste problema; e a sociedade civil e a opinião pública são elementos fundamentais para atingir esse objetivo. Se nenhuma ação for tomada hoje, o conflito no Sahara Ocidental continuará a ser uma vergonha, uma hipoteca para a dignidade da Espanha.
Estamos cientes dos laços históricos e dos laços atuais. Temos consciência da responsabilidade com a memória e com o futuro. E porque estamos cientes, temos que refletir ao relatar e narrar o que acontece. Não podemos permitir que um silêncio informativo jogue mais esquecimento sobre esse povo.
Lista de signatários:
Rosa Montero, Javier Gallego, Virginia P. Alonso, Antonio Maestre, Andrea Momoitio, Pascual Serrano, Olga Rodríguez, Daniel Bernabé, Ana Pardo de Vera, Pedro Vallín, Edurne Portela, Miguel Mora, Yolanda Sobero, Gerardo Tecé, Pepa Blanes, Raimundo Castro, Alejandro Torrús, Ana Camacho Urtiaga, Pablo Elorduy, Miquel Ramos, Anita Botwin, Guillem Pujol, Fabiola Barranco, Sato Díaz, Carmen Domingo Soriano, Manu Tomillo, Teresa Villde Martínez, Aitor Albizua, Ebbabba Hameida, Pablo Morán Martínez, Leila Morán , Ignacio Pato, Ary Suárez, David Bollero, Isabel García Caballero, Miguel Muñoz, Laura Casielles, Xosé Manuel Pereiro, Mónica Santos Carrillo, Manuel Martorell, Beatriz Asuar Gallego, José Antonio Bautista García, Sarah Babiker, Rafa Panadero, Sara Montero, Jalil Mohamed, María F. Sánchez, Fernando Íñiguez, Esther Ferrero, Luis Díez Álvarez, Tato Puerto, Mª Ángeles Fernández González, José Ovejero, Violeta Muñoz, Santiago Escribano López, Clara Asín, Gorka Andraka, Kristina Bera sain Tristan, Santi Donaire, Isabel Cadenas Cañón, Marcelo Ortega Picazo, Silvia Casado Arenas, Emilio Martínez, Naciu Varillas, Manolo Ballesteros, María José Fal Miyar, Pedro Menéndez González, David Artime Coto, Marisol Flórez Borges, Iván G. Fernández, Cristina Natal, Francisco Álvarez González, Xicu Ariza Fernández, Javier Cuevas Domínguez, Miguel Ángel Pérez Suárez, Germán Rodríguez Lourenço, Diego Díaz, Raúl Álvarez Rodríguez, Pablo Zariquiegui, José Pé, Míguel Pérez Suárez, Ordóñez, David Orihuela Sancho, Isidoro Vegue García.
Traduzido do espanhol por Mercia Santos / Revisado por Graça Pinheiro