Resolver a desigualdade extrema do capitalismo norte-americano exige uma mudança sistêmica: o fim do capitalismo que opõe empregadores e empregados.
Por Richard D. Wolff
Para compreender a magnitude da desigualdade econômica dos Estados Unidos nos últimos anos, considere seus dois principais índices do mercado de ações: o Standard and Poor (S&P) 500 e o Nasdaq. Nos últimos 10 anos, os valores das ações listadas neles cresceram espetacularmente. O S&P 500 foi de cerca de 1.300 pontos para mais de 3.800, quase triplicando, e o índice Nasdaq, no mesmo período, passou de 2.800 pontos para 13.000, mais do que quadruplicando. Para os 10% de norte-americanos que detêm 80% das ações e títulos, o período foi bom, enquanto o salário semanal médio real, em contraste, subiu pouco mais de 10% ao longo dos mesmos 10 anos. O salário mínimo real sofreu uma diminuição, dado que a inflação reduziu o seu valor nominal de 7,25 dólares por hora, oficialmente fixado e mantido a esse nível desde 2009.
Todos os outros parâmetros relevantes também mostram que a desigualdade econômica nos Estados Unidos continuou piorando no último meio século. Isso aconteceu apesar de todas as “preocupações” com a desigualdade, as quais foram expressas publicamente, ao longo dos anos, por muitos políticos pertencentes ao establishment (incluindo alguns que fazem parte da nova administração Biden), jornalistas e acadêmicos. A desigualdade se agravou com as crises capitalistas após 1970, assim como com os três crashes deste século (2000, 2008 e 2020). Nem mesmo uma terrível pandemia provocou um exame de consciência ou políticas adequadas para impedir, muito menos reverter, a contínua redistribuição de renda e riqueza para cima.
Nenhuma teoria econômica avançada é necessária para compreender que divisões, amargura, ressentimento e raiva irão emergir de uma brecha que tem aumentado de forma persistente entre os que têm e os que não têm. Entre os milhões que buscam explicações, muitos se tornam presas dos que culpam bodes expiatórios. Os supremacistas brancos culpam os negros e as pessoas não brancas; os nativistas (que se autodenominam “patriotas” ou “nacionalistas”) apontam para os imigrantes e parceiros comerciais estrangeiros; os fundamentalistas culpam os menos fervorosos e especialmente os não religiosos; os fascistas tentam unir esses movimentos com os pequenos empresários ameaçados economicamente, trabalhadores desempregados e pessoas marginalizadas socialmente, para formar uma forte coalizão política. Os fascistas tiraram proveito de Trump para auxiliar seus esforços.
A história dos Estados Unidos adiciona acidez especial à busca por explicações. O argumento dominante a favor do capitalismo no século XX, após a Grande Depressão dos anos 1930, era que ele “gerou uma grande classe média”. Os salários reais nos EUA aumentaram mesmo durante a Depressão e eram, no geral, mais altos do que no resto do mundo, especialmente se comparados aos da antiga União Soviética (URSS). Os altos salários mostravam a superioridade do capitalismo norte-americano, de acordo com os apologistas do sistema na política, no jornalismo e na academia. A destruição daquela classe média, no final do século XX e no novo século, foi especialmente dolorosa para aqueles que haviam acreditado naquelas ideias.
Certamente, a Grande Depressão e suas consequências reduziram significativamente a desigualdade, permitindo que tal defesa do capitalismo tivesse alguma aparência de validade. Entretanto, para que essa defesa fosse persuasiva, dois fatos precisavam ser esquecidos ou ocultados.
O primeiro é que a classe trabalhadora norte-americana lutou mais arduamente por mudanças econômicas significativas na década de 1930 do que em qualquer outro momento da história dos Estados Unidos. O Congresso de Organizações Industriais (CIO) organizou milhões de trabalhadores em sindicatos, utilizando militantes de dois partidos socialistas e de um partido comunista, os quais atingiram, então, seus ápices em forças numéricas e em influência social de todos os tempos. Essa foi a forma pela qual sindicatos e partidos, juntos, consolidaram-se como parte do establishment, implementando a seguridade social, o seguro-desemprego federal, o salário mínimo e um enorme programa federal de empregos, todos inéditos na história dos Estados Unidos.
O segundo fato é que os capitalistas, na década de 1930 e posteriormente, lutaram mais do que nunca contra todo e qualquer avanço da classe trabalhadora. O status de “classe média” alcançado por grande parte da classe trabalhadora (de forma alguma por toda ela e, especialmente, não pelas minorias) aconteceu apesar do capitalismo e dos capitalistas, e não por causa deles. Mas, certamente, reivindicar os créditos pelos ganhos da classe trabalhadora, que os capitalistas tentaram, mas não conseguiram evitar, foi uma propaganda inteligente a favor do capitalismo.
A redução da desigualdade econômica dos Estados Unidos, alcançada até então, mostrou-se temporária e se desfez após 1945. Particularmente após 1970, a trajetória normal do capitalismo de aprofundamento da desigualdade econômica foi retomada e segue até os dias atuais. Simplificando, a estrutura básica de produção do capitalismo — como ele organiza suas empresas — posicionou os capitalistas de forma com que revertessem a redução da desigualdade econômica alcançada pelo New Deal. Grande parte daquela classe média norte-americana temporária já se foi; o restante está desaparecendo rapidamente. Ao longo do último meio século, o capitalismo norte-americano levou a desigualdade aos extremos em que se encontra atualmente. Não é de se espantar que a população, uma vez persuadida a apoiar o capitalismo, já que ele havia fomentado uma classe média, agora tenha motivos para questioná-lo.
Nas empresas capitalistas, somente uma minoria das pessoas envolvidas ocupam posições de liderança, comando e controle. O proprietário, a sua família, os diretores ou os principais acionistas fazem parte dessa minoria: a classe dos empregadores; no lado oposto está a grande maioria: a classe dos empregados.
A classe empregadora, exclusivamente, determina o que a empresa produz, quais tecnologias utiliza, onde ocorre a produção e o que é feito com a sua receita líquida; já a classe empregada tem de viver com as consequências das decisões dos empregadores, das quais está excluída. A classe empregadora usa sua posição de superioridade nas empresas para distribuir os lucros, em parte, para enriquecimento próprio (por meio de dividendos e pacotes de remuneração de executivos de alto escalão), utilizando uma parcela desse lucro para comprar e controlar políticos. O objetivo é evitar que o sufrágio universal mova o sistema econômico para além do capitalismo e da desigualdade econômica que ele reproduz.
O aprofundamento da desigualdade nos Estados Unidos deriva diretamente dessa organização capitalista de produção — seu sistema de classes. Ocasionalmente, em circunstâncias excepcionais, movimentos sociais rebeldes obtêm reversões dessa desigualdade. No entanto, se tais movimentos não mudarem a organização capitalista de produção, os capitalistas tornarão essas reversões temporárias.
Resolver a desigualdade extrema do capitalismo norte-americano exige uma mudança sistêmica: o fim do capitalismo que opõe empregadores e empregados. Se a produção fosse organizada em empresas (fábricas, escritórios, lojas) democratizadas — um trabalhador, um voto — como cooperativas de trabalhadores, a desigualdade econômica poderia ser e seria drasticamente reduzida. Decisões democráticas sobre a distribuição das rendas individuais tomadas por todos os participantes de uma empresa teriam muito menos chances de alocar uma enorme riqueza para uma pequena minoria, à custa da vasta maioria. A mesma lógica utilizada para se livrar dos reis na política se aplica aos empregadores nas empresas capitalistas.
Este artigo foi produzido pela Economy for All, um projeto do Independent Media Institute.
Richard D. Wolff é professor emérito de economia da Universidade de Massachusetts, Amherst, e professor visitante no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da New School University, em Nova Iorque.
Traduzido do inglês para o português por Samuel Francisco / Revisado por Graça Pinheiro