“É a América Latina, a região das veias abertas. Do descobrimento aos nossos dias, tudo sempre se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal se acumulou e se acumula nos distantes centros do poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar foram sucessivamente determinados, do exterior, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. Para cada um se atribuiu uma função, sempre em benefício do desenvolvimento da metrópole estrangeira do momento, e se tornou infinita a cadeia de sucessivas dependências, que têm muito mais do que dois elos e que, por certo, também compreende, dentro da América Latina, a opressão de países pequenos pelos maiores seus vizinhos, e fronteiras adentro de cada país, a exploração de suas fontes internas de víveres e mão de obra pelas grandes cidades e portos (há quatro séculos já haviam nascido dezesseis das 20 cidades latino-americanas atualmente mais populosas)”.
Foi em 1971 quando o uruguaio, nascido em Montevidéu em 1940, Eduardo Galeano, nos ensinou sobre essas bases da história latino-americana. Por mais que possa parecer atual no tempo, pois atual continua em seus impactos e significados, trata-se de um escrito que há muito nos foi oferecido para entender, atuar e agir nas guisas do conhecimento, da sabedoria popular coletiva e da organização-formação da consciência. “As veias abertas da América Latina”, livro que ganha sua atualidade a cada desenvolver do tempo, foi oferecido para colaborar com a compreensão e as bases para a superação dessa cerca de espinhos que é o capitalismo.
Organizar o conhecimento, o letramento múltiplo e a sabedoria para o bem viver é um movimento dialético e coletivo que não pode parar. Organizações de pessoas possuem o desafio de conhecer e atuar para que a dignidade na vida não seja uma fábula ou um sonho inalcançável. Mas para que isso se realize, com acesso ao conhecimento acumulado, com a organização do conhecimento para a ampliação dos sujeitos que precisamos ser, questões fundamentais são colocadas, algumas delas em todo o tempo dessa formação social que nos impõe a exploração e a dominação: afinal, quem somos nós?
Quantos nós, com toda a diversidade e multiplicidade, existem na grande América que é Latina? O que podemos fazer para entender, superar, transformar e construir outra história? Quem são os donos dos corpos e das decisões sobre a imensa força de trabalho que é empurrada para o emprego da sobrevivência? E sem plágios: o que fazer?
Ainda que o corpo do professor e escritor Galeano já tenha nos deixado, seus ensinamentos acumulam na inteligência coletiva para uma outra organização da vida. O comum apropriado, com destaque para toda a natureza da qual os sapiens fazem parte, envolve também a apropriação da capacidade, da força de trabalho e dos corpos. Por vezes os sentidos nos fazem crer que nos tempos atuais, em que o capitalismo se apresenta como necrocapitalismo e a política como necropolítica, as pessoas tendem ao amargamento e ao individualismo cada vez mais intensos, causados pelo empobrecimento material forçado e pela solidão para garantir a sustentação à qual somos empurrados.
Há acúmulos e grandezas de conhecimentos que nos desafiam a organizar para ações que sejam favoráveis à vida. De Marx aos dias atuais temos superações do que chamamos de economia, história, ciências e filosofias, que nos impactam e seguirão impactando como desafios para a organização do pensar e do agir.
Mas seguindo as várias contribuições que nos ajudam a organizar conhecimentos – teoria – economia – história – política – viver – podemos destacar uma que, dentre várias, pode muito contribuir para o processo de organização das potências humanas como sujeitos para a vida. Afinal, não estamos falando de todos os sapiens e é justamente na sociedade civil o locus onde tudo está em disputa, desde o peso do Estado, que fere com a opressão, até as ideologias circulantes em disputa.
Nesse sentido, vale pegar uma colaboração para a inteligência coletiva de Frantz Fanon, escrita em sua contribuição intitulada RACISMO E CULTURA: “Tendo o autóctone assistido a liquidação dos seus sistemas de referência, ao desabar de seus padrões culturais, já não lhe resta senão reconhecer com o ocupante que ´Deus não está ao seu lado`. O opressor, pelo caráter global e terrível de sua autoridade, chega a impor ao autóctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um juízo pejorativo acerca das suas formas originais de existir”. E somos nós, com uma força mais ampla de identificação, o autóctone da América Latina, com as marcas de quem foi dominado e sofreu o peso das explorações, imposições e controles dos “externos”. Eis as marcas de nossa própria colonização imposta entre as várias linguagens existentes, as variações de pinturas, músicas e artes em geral que nos movimentam.
De Marx, passando por Galeano até Fanon, muito há o que se organizar e aprender. Vale uma chamada, ainda que Galeano tenha tido o corpo em vida entre 1940 e 2015 e Fanon o corpo em vida entre 1925 e 1961: hoje os escritos do preto, negro da Martinica, estão mais usuais entre nós que queremos superar a exploração com todas as marcas da opressão racistas, machistas, preconceituosas e discriminatórias com os pesos mais duros e que limitam e impedem a sobrevivência humana.
Como nesse caso nem Fanon e nem Galeano eram opositores às teorias de Marx, não há limitações ou barreiras que não apareçam antes na forma dos sintomas da ignorância. Os desafios colocados para nós, portanto, são os de organizar o conhecimento e cultivar o aprendizado do melhor fazer para viver e organizar uma inteligência coletiva crítica que supere toda as ondas dos obstáculos do desconhecimento e de suas implicações narrativas e ideológicas que limitam o avanço para o bem viver.
Há muito que os que têm compromisso com a verdade – histórica e relativa quando de natureza gnosiológica, e não ontológica – sofrem com as ações destrutivas do poder imposto. Sócrates é um dos exemplos mais duros dessa condição, face à organização social que impõe a destruição da vida e impede a criação. No seu tempo cronológico, antes de cristo, já sofreu as consequências por sua busca do verdadeiro e pelo compromisso com a verdade. A retórica operada pelos sofistas foi facilmente incorporada na narrativa do poder da época que usou a mais intensa crueldade contra Sócrates. A busca pelo método sofista nos tempos atuais, a partir da qual se pretende disputar com a narrativa fascista precisa estar no território firme do conhecimento acumulado, sob o risco de se desmanchar no ar antes sequer de ter vencido sua primeira batalha.
Hoje, nos tempos da necropolítica e do necrocapitalismo, a mais dura crueldade imposta à humanidade precisa, para além de ser denunciada, ser superada com produção de alternativas que nos unifiquem em favor da vida e do bem viver. São desafios que clamam no tempo atual. Será nesse movimento para semear a inteligência coletiva e a mais solidária convivência que precisamos nos ampliar e nos libertar.
Registre-se: todas nós somos as pessoas às quais são impostas a fazer do trabalho um emprego para garantir a sobrevivência dos corpos, nas múltiplas formas de exploração, controle e dominação do capitalismo em sua fase atual. Assim compreendemos que as veias estão abertas, doloridas, massacradas, mas não estão necrosadas. Reuniremos o fôlego no mar da inteligência coletiva para nos movimentarmos com a potência humana criativa que será o impulso para superar os limites que impedem o viver. E, ao mesmo tempo, conquistaremos, coletivamente, a humanidade para defender todas as vidas e construir no presente o Bem Viver.