CRÔNICA

 

 

Por Marco Dacosta

 

 

Acordei com o vento frio que invadiu o quarto em North Beach.  O ar gelado da baía de San Francisco levantou a fina cortina branca que escondia a silhueta dos prédios e a névoa que encobria a cidade naquela manhã de outono. 

A névoa que todos me diziam que cobria a cidade não apareceu fácil. Foi tímida, rolou durante a noite pelas ladeiras e só se esquivou pelos altos prédios em meu primeiro olhar para cima. Da janela do velho hotel eu a acompanhei com ternura. 

Ocupo um quarto no Europa Hotel, lugar barato e dilapidado,  na mesma rua onde fica a City Lights, livraria e epicentro da “Beat Generation”.  Estou  provavelmente deitado na mesma cama que já foi ocupada por algum poeta nos anos 60. Quem sabe Jack Kerouac ? 

Tomei o café da manhã debruçado na janela de madeira, olhando a livraria, o Bar Vesúvio, pessoas com cabelos longos e calças desbotadas caminhando enquanto os restaurantes italianos se preparam para o dia. Há som de jazz que se mistura aos arranjos de talheres e pratos. 

Pelas fotos antigas no corredor, espalhadas pelo meu andar, que arrastei uma mala na noite anterior, vejo jovens em carros brilhantes, destoando com o papel de parede, descascado,  cor de rosa. 

Um jovem negro fuma um baseado na escada.  Tenho certeza que por ali desceram correndo para atender o telefone no balcão de entrada, Allen Ginsberg, Neal Cassady e William S. Burroughs, escritores e poetas que mudaram conceitos e revolucionaram a literatura norte-americana. 

O tempo parece não ter passado, estou preso nos anos 50 – os móveis de fórmica avermelhados, os pisos com tacos de madeira e escadas de mármore.  Tudo tem uma estética simples mas aí mesmo tempo sofisticada. Não possuem a riqueza das casas Vitorianas de Haight-Ashbury, apenas flores na janela, com adesivos contra as guerras e gestos obscenos. 

Beatnik. A palavra ficou na cabeça. O dicionário me lembra: “movimento sociocultural nos anos 50 e princípios dos anos 60 que subscreveram um estilo de vida antimaterialista” – os que vieram antes dos hippies. 

Beatniks eram arquitetos de poesias bem estruturadas, provocadas por viagens psicodélicas, lisérgicas e de liberação sexual.  Aqueles momentos em que a humanidade avança séculos em uma década – quem sabe para compensar os períodos que perdemos a civilidade e retrocedemos.  Esse movimento pós-guerra parece responder à desumanidade dos anos de conflito mundial. O planeta se está regenerando. E eu ainda não estava por aqui ! Ou estava ? Às vezes sinto que sim. 

Avanço na sensação que já vivi por ali. O velho Hotel as paredes guardam recados em caneta esferográfica, registros de contos eróticos, desenhos fálicos, registro da revolução dos corpos nos anos 60 e do sofrimento da perda quando a AIDS chegou nos anos 80. Nenhuma marca sumiu, está presente nas ruas, nas mensagens das janelas, nos corpos marcados, nas placas históricas, monumentos. 

Como vim parar aqui ? Esse lugar existe? Olho pela janela a névoa se aproxima. O manto branco envolve a cidade várias vezes durante o dia. 

Lembrei. Não cheguei no inverno como sugere a letra da música California Dreamin ” do folk rock do “The Mamas and the Papas”. A Califórnia apareceu pela primeira vez, na janela do avião em um dia de outono, com as montanhas mostrando um leve tom de marrom, de terra seca e aos poucos San Francisco foi se alinhando até o pouso suave e calmo. 

Cresci olhando o Atlântico mas não tive pressa de ir ver o Pacífico. Queria respirar o ar das livrarias, da City Lights, ver as prateleiras desorganizadas e o que restou da geração que animava o mundo quando eu nasci, na metade da década de 60. Trago as lembranças da infância, do samba e da bossa nova, de terras tão distantes. Estava ali para viajar no tempo. 

Somente dias depois da minha chegada a Costa Oeste é que vi pela primeira vez o oceano, azul e frio, diante da longa praia de areia amarelada. O nome Pacífico não é apropriado para um oceano de erupções e tsunamis. Olho as ondas gigantescas e a indiferença das pessoas pelo mar. A cidade está de costas para o oceano, voltada para as águas calmas da baía. 

Há algum tempo uma amiga jornalista – Ellen – me disse: “A Califórnia é o lugar para quem deseja criar”.  Pode ser, porque fui logo invadido por nostalgia e vontade de escrever.  Corri para Oakland, percorri guetos e vales de tecnologia, passei por campus e por prédios com calçadas cheias de gente abandonada pela vida. Em Berkeley achei uma pequena loja de máquinas de escrever. Era como uma fantástica fábrica de chocolates, cheia de deliciosas maquinarias de transformar páginas em livros. Olhei atentamente para uma remington dos anos 60 e pensei – quem estava deitado naquela cama do Europa Hotel tinha uma dessas, e a ancorava nas coxas ao sentar na janela, teclando e rasgando papéis. 

Sabe aquela sensação de que nascemos e vivemos uma época diferente da nossa ?  San Francisco a todo momento me desafia a invejar quem teve o privilégio de ver tanta coisa acontecer naqueles tempos. Chego a imaginar que estive naquele hotel quando Kerouac fumava na esquina. 

Há lugares que sentimos que nossa capacidade de criar é ampliada, outros que nos deixam em estado de total inércia. Já estive em tantos lugares que começo a entender o que cada um deles faz com minha cabeça.  Meus dias em San Francisco não me trouxeram o passado, mesmo mergulhando naquele hotel impregnado de história. Parece que os beatniks não param de olhar para o futuro, “On the road” como eu tento viver, escrevendo sem parágrafos, em rolos de papel. 

Minha viagem quase lisérgica não para. Não muito longe de North Beach caminho em um vale imenso feito de silêncio, silício e sonhos. Foi graças a esse lugar que hoje posso ser lido em outra parte do mundo, numa teia mundial de letras e sinais. Sou grato por ter testemunhado esse avanço civilizatório. No Google, em um imenso Campus de inovação, peguei uma bicicleta colorida para visitar os prédios, deixei-a na calçada, como algo descartável.  Um jovem apressado cuidou dela. Todos parecem estar descobrindo algo, vidrados no celular.  Em pouco tempo sai de um lugar nostálgico e baseado na máquina de escrever e já estou em um planeta diferente, lugar de experimentos cerebrais.  A mesma chama de inspiração da geração Beat parece contaminar aqueles jovens que transitam sem carro por jardins floridos. É a visão do paraíso tecnológico e de filmes de ficção científica onde somos transportados para um futuro onde cada um está ligado a um computador e indiferente aos outros.  Assustador e delicioso ao mesmo tempo poder percorrer décadas em minutos.  De Keruak a Jobs, cercado por códigos indecifráveis aos olhos humanos. Só os Deuses parecem entender as rimas binárias e os códigos beatniks. 

Uma música também dos anos 60 diz que se você for a  San Francisco “se prepare porque vai encontrar lá gentileza” – confirmo os versos nas minhas andanças por North Beach, Castro e Russian Hill: O motorista brinca com a colegial que entra, o policial toma café no bar,  o senhor para para te dar informação com um sorriso. Não sinto tensão no ar, nem o stress da grande cidade. 

Aqueles dias parecem ter ficado na memória como se tivesse viajado a Copacabana dos anos 50, assistindo boleros na Praça Tiradentes. Há uma poesia e perigo, em cada esquina. O passado que não vivi em ambas cidades cercadas por montanhas – São Sebastião encontra São Francisco nessa nostalgia. 

E não paro de explorar a região. Em Berkeley conheci o jardim onde os hippies resistiram ao Vietnam, andei por ruas e ladeiras. 

San Francisco  vai desaparecendo na janela do avião. Volto a Nova Iorque com a certeza de que há pontos de extrema energia do planeta.  Eu conheci mais um nessa jornada beatnik. Do Cowboy da corrida do ouro ao jovem que desenvolve aplicativos, passando pelas memórias da geração de poetas de rua e de estradas abertas. São Jardins que vamos buscar a beleza e energia que precisamos para seguir vivendo, máquinas que jogam pólen em nossos pés, para fertilizar a mente.