CRÔNICA
Por Lillian Bento
Antes da quarentena eu estava vivendo um tipo de solidão. Uma solidão de parcerias sólidas, uma escassez de afeto com intimidade e entrega. A diferença é que, antes do isolamento social, eu podia enganar esse sentimento em encontros furtivos, beijos sem profundidade e corpos que se acariciavam sem nenhuma entrega. Mas a solidão seguia presente. E eu seguia em fuga.
Agora aqui, isolada nesse apartamento há 9 meses, não há mais como enganá-la. Fomos colocadas uma diante da outra e a olhei nos olhos. Ela mudou de forma, adentrou minhas profundezas e se fez grande companheira. Haja Jung para me manter de pé. Haja Freud para entender minhas fugas pregressas.
O que agora sei é que nesse mergulho de entrega intensa, encontrei no universo onírico parte importante do que penso ser. Comecei a escrever os sonhos que venho tendo durante esse período de isolamento social e são muitos. São intensos. São partes importantes de minha trajetória – sobre isso escrevi nesse primeiro texto-sonho.
Hoje acordei a ouvir em minha mente os versos de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, a lembrar-me que, sim, “(…)gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho./ Nós o que nos supomos nos fazemos (…)”. E foi assim, que guiada por meus desejos mais profundos que voltei a encontrar-te nesta noite. Para lembrar-me que os desejos permanecem mesmo diante das impossibilidades. É onde você está.
Nos encontramos um quarto empoeirado e cheios de telas. Algumas pintadas, outras em branco. Havia uma mala a ser feita e a ideia era repetida tanto por você quanto por mim por diversas vezes. Depois, entregues ao momento, as horas se perderam e a mala foi esquecida. Você vestia uma cueca branca. Eu me inebriava nos pelos do seu peito e contemplava a barba mal feita e o cheiro de sal. Tinha um quê de velho do mar e isso era engraçado e me dava um tesão absoluto ao mesmo tempo.
Sempre tive um desejo guardado por alguma coisa guardada nesse tipo de Hemingway – talvez o mistério ou a solidão bem vivida, a intimidade com o mar, não sei, o cheiro da maresia, o eterno flerte. O que sei é que naquela cama também coberta por lençóis brancos e velhos, naquele galpão cheio de telas em branco e tintas espalhadas, meu corpo e o seu brilhavam de tão suados.
Era um sonho meio cinematográfico. Havia uma direção de arte típica de quem elabora o desejo por mais de alguns meses, mas descrevendo os detalhes da cena não me atenho à intensidade das sensações. Suas mãos deslizavam por meu corpo. Firmes, me apertavam a carne. Seguiam a guiar sua boca e sua língua que me arrancavam boca aberta, coluna ereta e ventre a tremer. Eu convulsionava. Você contemplava.
Te seguirei com firmeza como quem encontra o que procura, como a penetrar a pele com as mãos. Tudo pulsava forte, com ritmo, suor, saliva e gozo. Os braços firmes, a boca aberta e o corpo arrepiado… ah, um sonho regado de cheiros e toques. Mal consigo escrever agora sem contorcer-me diante do computador. Tampouco sei se compreenderias tu meu desejo, mas aqui ele está, quase revelado e você segue a habitar minha vida onírica e despertar desejos intensos. Sem depois, dedico a ti os versos de Ricardo Reis:
Gozo sonhado é gozo, ainda que em sonho.
Nós o que nos supomos nos fazemos,
Se com atenta mente
Resistirmos em crê-lo.
Não, pois, meu modo de pensar nas coisas,
Nos seres e no fado me consumo.
Para mim crio tanto
Quanto para mim crio.
Fora de mim, alheio ao em que penso,
O Fado cumpre-se. Porém eu me cumpro
Segundo o âmbito breve
Do que de meu me é dado.
(Ricardo Reis, 30.01.1927)