MÚSICA
História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap 10
E depois da choradeira da página anterior, chegou a hora da despedida. Esse é o último capítulo desse meu delírio musical na água do chuveiro de casa. Até aqui cantei como um Cauby Peixoto sem peruca abafando a concorrência. Viajei entre ópera e free-jazz e deixei a vizinhança louca, combati o bom combate contra o preconceito de quem não sabe o que é bom. E meu trem musical partiu da principal estação de Nápoles, Napoli Centrale, ao grito de Campagna, com’è bella la campagna, como um trenzinho caipira para atravessar as décadas, pular pelo tempo, sem conexão nem coerência, e chegar na cara daquele atendente da loja de discos. Pino chi? Pino quem? Perguntou para mim. Procurava a gravação daquela música ouvida na noite anterior. Nem eu, e nem ele, sabíamos o sobrenome do tal do Pino. A Itália não é Brasil, lá o sobrenome é fundamental. Sem ele não vai a lugar nenhum. Nas chamadas escolares, nos documentos, em qualquer coisa, primeiro o cognome, depois, talvez, o nome próprio. Imagine o contrário, entrar na loja e falar tipo assim, bom dia, queria o disco do de Holanda; imagine no bar com os amigos: acho que da Silva Santos Junior esse ano vai ganhar a bola de ouro. Holanda é Chico, e da Silva Santos Junior é Neymar. Simples assim. E eu lá, cara a cara com um cara que não tinha a menor ideia do que eu estava falando. Era o segundo disco de Pino e, mesmo desconhecido do grande público, a crítica e eu morríamos de amores: a profecia do grupo Napoli Centrale (gentil leitora e prezado leitor, parem tudo, corram lá no primeiro capitulo) estava se realizando na guitarra e no canto dele. Pino. Pino. Pino.
Blues e mais blues pra mim, somente pra mim, inglês e dialeto napolitano juntos, a guitarra rasgada de Buddy Guy na finesse harmônica de George Benson. Pra mim, somente pra mim. Que venha a água, chuva de chuveiro amigo, molhar meu blues ítalo inglês napolitano, aqui no Brasil depois de mais de quarenta anos que te ouvi, Pino, pela primeira vez, de noite no rádio. O terceiro disco estourou, desbancou os ídolos, não precisávamos mais deles. Pino era a verdadeira música italiana, um pé na tradição melódica de Napoli, outro no blues, no jazz, nos ritmos do caribe, no médio oriente, no flamenco, no samba. Pino centopeia, onívoro brincante da música, chama a si os grandes da Terra que correm para gravar e tocar ao vivo com ele: Pat Metheny, Chick Corea, Eric Clapton, Wayne Shorter, Naná Vasconcellos, Alphonso Johnson, Don Cherry, a lista vai longe. No terceiro disco, entre as belezas mil da sofisticação musical, uma canção volta às origens para apontar o futuro.
Saberei então, que o futuro é feito de maravilha, feeling, assombro. Gente, estamos na Itália, terra dos Peppinos de Capri da vida, terra do Pavarottis, e da chatice das canções políticas, onde ao lado da palavra cuore, coração, se não botar amore, seu disco vai ficar encalhado para sempre. Tirei seu quarto disco da sacola, primeira música. Três minutos de swing endiabrado com piano fender, slapping e todo o resto.
Gente! Estamos na Itália, terra dos Peppinos da vida…; Pino voa longe e sabe tudo, sua capacidade criativa surpreende a cada disco, a cada apresentação, a cada música em que é capaz de arranjos nunca ouvidos e de mudanças de tonalidade inacreditáveis.
Se meu chuveiro falasse, contaria de quando tentei imitar o som do solo de sax, tão simples, complexo, articulado, como canto de gaivota, e o cachorro do vizinho respondia latindo, a mulher do andar de baixo batia com a vassoura no teto para eu parar. Não consegui, mas tentei e continuo tentando. Nápoles, o céu perdido nos olhos da amada, e a profundeza da escuridão do mar, tão fundo de dar medo. Diz a letra do seu disco absoluto, o sexto. Além das harmonias rebuscadas, do equilíbrio melódico construído sobre as nuances da tradição napolitana, meio árabe, meio ibérica, meio jazz, o timbre do som, a escolha dos instrumentos, o uso das novas possibilidades tecnológicas dos teclados, era, e continua sendo, o quanto de mais novo a música italiana produziu em toda sua história.
O sétimo, o oitavo, o nono, o décimo… Pino continua escrevendo, cantando e tocando por muitos anos, e eu com ele. Até um maledetto dia em que seu coração decide parar de bater. A caminho do hospital, Pino morre. A Itália para, Nápoles para, eu emudeço. Pino está morto. O lugar comum quer que agora diga que sua música continua vivendo. O lugar comum quer que eu escreva que os imortais nunca morrem. O lugar comum quer que eu agradeça a Pino por todo aquilo que ele fez por mim. O lugar comum quer que eu escreva coisas tipo assim: Grazie Pino, grazie pelas dezenas de shows a que eu assisti, grazie Pino, por ter acompanhado meus sonhos de glória musical no chuveiro por mais de quarenta anos. Grazie Pino.
Poderia continuar por mil páginas, a música italiana vem de longe, e graças a pessoas como Pino Daniele pode ir longe. Somos filhos de pessoas antigas, Lázaros felizes, gente que não encontra paz, e quando canta se comove e, enquanto isso, passou esse 1900, e até o tempo quer se embelezar para nós (Pino Daniele)
Grazie a você também, leitora e leitor, por ter tido a paciência de ter me acompanhado até aqui. Agora chega de cantoria. Está na hora de deixar fluir em mim o som mais lindo, aquele que todo músico tenta reproduzir entre um suspiro e outro, entre as notas, fora das pausas, antes e depois de tocar: o silêncio.
FIM