CONTO

 

 

Uma criança anda habitando meus sonhos a algumas semanas. Ela sempre perpassa por eles sem dizer nada. Mas tudo gira em torno dela. Talvez essa criança seja eu com 7 anos subindo num pé de jabuticaba pra pegar a fruta mais doce no alto da árvore. Talvez ela queira apenas me lembrar disso, já que faz bastante tempo que não sou mais uma criança. Tenho tentado decifrar esse sonho na esperança de poder voltar a subir numa monark imaginária pra descer ensandecido as ladeiras da minha antiga rua. Num pega com Eduardo ou Serginho. Pode ser que seja um erê sapeca, um neto, um sobrinho que esteja a caminho, quem sabe? Eu não sei. No fundo percebo que deixar de ser criança não é tão bom assim. Perder o olhar e a inocência infantil pra encarar o mundo adulto é frustrante.  Aqui não há lugar para o lúdico. As pessoas se comportam com se estivessem numa linha de largada para um corrida de obstáculos sem fim. Nessa corrida vale tudo pra chegar em primeiro. Quem se solidariza acaba sendo superado pelo esperto que não respeita regras pré estabelecidas. No final, quem pensa estar em primeiro perde o fôlego pelo caminho e definha antes de cruzar a fita de chegada. Prefiro pensar que a criança do meu sonho está tentando me resgatar desse desatino que tomou nossas vidas de assalto. Desse engano materialista que se esgota em si mesmo e nada de novo traz. A criança do meu sonho tem aquele olhar cativante da tenra idade. Não sabe falar nada e não precisa. Ela me desconcerta pra me conectar. Confesso que ainda não desvendei o significado. Talvez não seja esse o objetivo. Quem sabe num próximo sonho saberei decifrar. Por hora ela areja minha cabeça com mil possibilidades, assim como é quando criança somos.


* Pintor, cartunista e ilustrador. Também é professor de desenho. Instagram