Em sua autobiografia, Yo Soy El Diego, Maradona refletiu sobre a vitória contra a Inglaterra na Copa do Mundo, que aconteceu posteriormente à Guerra das Malvinas.
“De alguma forma, culpamos os jogadores ingleses por tudo o que aconteceu, por tudo o que o povo argentino havia sofrido. Sei que parece uma loucura, mas era como nos sentíamos. O sentimento era mais forte do que nós: estávamos defendendo nossa bandeira, as crianças mortas, os sobreviventes.”
O esporte, nestes termos, havia se tornado um substituto da guerra, uma oportunidade para os derrotados infligirem dor nos vencedores através de todos os meios possíveis. Além do conflito nas Malvinas, este sentimento foi moldado pela forte influência britânica sobre a vida econômica e cultural argentina.
O nacionalismo argentino foi marcado de diferentes maneiras pela construção das ferrovias pelos britânicos, bem como pela crise Baring, em 1890, que quase levou a Argentina à falência e da qual a Grã-Bretanha escapou relativamente ilesa. Havia também a loja de luxo Harrods, em Buenos Aires, os clubes de polo e a grande comunidade britânica na cidade e nas pampas (planícies férteis nos arredores de Buenos Aires).
Na Inglaterra, a raiva incessante por Maradona ter “se safado” surge das cinzas do império. Sob uma perspectiva histórica, podemos ver a recusa britânica em abandonar as Malvinas em 1982 refletida na sua resistência em aceitar a derrota na partida de futebol e, posteriormente, como parte de uma relutância em se afastar de dois séculos de envolvimento imperial com a América Latina.
Maradona e a masculinidade
Desde a morte de Maradona, muitos notaram que ele deixou um rastro de destruição por onde passou. Ele pode ser visto tanto como uma vítima de algumas pessoas do seu entorno, mas também como o causador de grande parte dessa destruição. As drogas, a política revolucionária, os abusos domésticos e as explosões emocionais, que são as partes mais visíveis da narrativa da mídia, encaixam-se perfeitamente no estereótipo que os britânicos têm do latino-americano agitador e explosivo.
No entanto, conforme estudiosos argentinos como Eduardo Archetti e Pablo Alabarces apontaram, o conceito do futebol e da masculinidade estão amarrados há mais de um século. Esta combinação faz de Maradona a figura de destaque de uma cultura futebolística que se vangloria diante da humilhação do adversário. Ela vê a derrota como resultado da fraqueza feminina, enquanto também se maravilha com a beleza artística do corpo do jogador de futebol em voo e com o arco perfeito da bola achando o canto superior do gol.
Como observou o escritor Ayelén Pujol, as conquistas e rebeliões de Maradona foram uma inspiração para milhões de cidadãos marginalizados; incluindo as jogadoras de futebol, que hoje se esforçam para transformar o sistema do futebol à sua maneira.
Com a atual proibição dos torcedores de frequentarem os estádios devido ao coronavírus, estamos cada vez mais ansiosos por lendas e heróis que nos unirão. Ansiamos por espaços comunitários e públicos onde possamos compartilhar momentos de alegria e tristeza juntos. Diego Maradona foi uma figura fundamental em muitos desses momentos no passado e, como resultado, sua vida continuará a ser um ponto de referência essencial na história do mundo.
Traduzido por Marcella Santiago / Revisado por Graça Pinheiro