MÚSICA
História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 8
Confirmo o que acabei de falar. As canções de cunho político são horríveis. Os italianos nunca poderiam compor músicas como “Apesar de você”, “Cálice”. Eles acham que para tratar de assuntos sérios é necessário ser maçante, um pé no saco. Para mim, porém, tanto faz, chuveiro é chuveiro, e eu sou eu, e se eu quiser cantar as tripas do padre que enforcam o papa, bandeira rossa, e #elenão, vou cantar quanto quiser. Porque quando eu era garoto como você, gentil leitora e prezado leitor, enquanto girava o mundo sempre a cantar as coisas lindas da América, amando Beatles e Rolling Stones, eu fiquei muito admirado em ver quão famosa ficou essa música, e tamanho do alcance dela. Caiu na boca do povo graças a Gianni Morandi, bom rapaz, moço de família, que, em uma espécie de grande acordo nacional, com o supremo com tudo, foi aceito por todos. E lá se vão mais de cinquenta anos. Suas músicas inocentes fizeram dele o queridinho de vovós e raparigas. Soube se manter no auge enveredando pela via certeira da fácil melodia itálica, sem que o lugar comum expressivo tirasse a originalidade e o frescor de sua alegre e amistosa figura. De repente me solta uma música que fala de Vietnam, de metralhadoras, de gente estraçalhada por bombas, uma música onde, como num ritual asteca, o coração do protagonista é arrancado do seu peito e substituído por frias medalhas. Joan Baez, musa dos protestos contra o militarismo, gostou, adorou a canção, e a popularizou como hino pacifista. Dezenas de artistas de todas as épocas e do mundo inteiro cantaram, muitas vezes sem saber que foi ele, Gianni Morandi, o primeiro intérprete.
Rá tá tá tá…, pronto, como Silvester Stallone, matei todos. Não sobrou ninguém para contar a história. E no delírio da água escorrendo misturei alhos com bugalhos. Vietnam, chuveiro e Rambo, tudo a ver. E como uma coisa puxa outra, para fugir da chatice das músicas de assunto político, lembrei daquilo que os italianos chamam de canzone d’autore. Até então os cantores eram cantores. Intérpretes de letras e músicas escritas por outros. De repente apareceu uma gente estranha, esquisita, meio feiosa, de voz mais ou menos aceitável, convencida de que sabia compor e interpretar suas músicas sem precisar da intermediação do cantor. E não é que os caras tinham razão? Eram chamados de cantautori, “cantorautor”, um neologismo usado para explicar ao povão a novidade: um cara escreve uma música, qualquer coisa, vai lá e canta, não importa se ele é feio feito um bode, não importa que não saiba cantar, o cara vai, faz suas bocas, agradece e vai embora. No começo o povão não entendeu nada. Não conseguia juntar as peças, como era possível que um cara sem graça nenhuma cantasse músicas tão lindas? Com o passar do tempo a coisa rolou e caras, como Gino Paoli, não só tiveram o sucesso merecido, mas se tornaram mestres de todos aqueles que vieram depois.
Cantava palavras de amor em que quartos baratos de hotel se abriam para o infinito, cantava de mãos sem fim, de sal no corpo ao sair no mar, palavras de erotismo rebuscado, ousadia senza fine, sem fim, para, época. Aqui vai o velho mestre cantar em estilo jazz, sua música mais linda.
E até aqui tudo bem, estou no chuveiro e canto feliz. A coisa se faz pesada quando os caras começam a se levar a sério, quando pensam que além dá música trazem uma mensagem, tipo assim: eu descobri a verdade, está escondida na letra das minhas canções, na minha forma peculiar de cantar. Ninguém aguenta. Mas os caras se tornam mitos da música italiana, se tornam intocáveis. Se você for lá e criticar, é expulso do país na hora. Estou falando de Luigi Tenco. Suas músicas de uma tristeza incomparável, levavam o ouvinte ao fundo do poço, entre o existencialismo de Sartre, o desespero de Camus; o boteco de Reginaldo Rossi, e a solidão infinita dos personagens das telas de Hopper. E em pleno festival de Sanremo, Luigi Tenco se matou, um tiro na cabeça. Segundo as teorias conspiratórias, não foi suicídio, mas assassinado. Até hoje, sobre essa triste história, paira a névoa da dúvida. Ficam um punhado de canções tristes como essa, em que o protagonista tenta convencer seu par de que tudo vai mudar, não sabe como, não sabe quando, mas vedrai vedrai che tutto cambierà, verás, verás que tudo mudará.
Peguei pesado com ele. Luigi Tenco merece mais respeito, foi um grande autor de textos tristes, morreu de forma trágica; gosto de pensar nele velhinho, depois de décadas de carreira em que teria podido extravasar seus medos, e construir alternativas. Saiu da vida para entrar na história com um tiro na cabeça, sem saber que graças ao seu imenso talento, nessa mesma história já havia um lugar garantido pra ele. Mas sabe quando eu vou cantar uma música dele no meu chuveiro? Nunca, putakipariu. Muito baixo astral, muita tensão. Eu quero dançar lá na rua, quero dançar pra valer, quero ritmo, quero soltar o gogó feito os grandes, sem desespero, sem baixo astral. Quero a música que não precise do texto, uma música que seja autossuficiente, na qual o ritmo domine a harmonia, e a sucessão melódica seja usada como síncope. Eu quero abitare a New Orleans, andare in giro com gli amici, morar em New Orleans, zanzar com os amigos, tutti neri musicisti, vorre saper suonare la tromba, todos músicos negros, queria saber tocar trompete e cantar em inglês porque o italiano não funciona com esse tipo de música. Eu queria ser como ele, e aqui no meu chuveiro, pode apostar, ele sou eu, Nino Ferrer.
De pai italiano e mãe francesa, Nino declara seu amor à música negra, diz que queria ter a pele preta para poder cantar como James Brown e Ray Charles. Eu sei que não é verdade, mas gosto de pensar que foi depois de Nino Ferrer ter assistido ao inacreditável show do Soul Brother Number One na televisão italiana, que entrou para sempre no meu repertório. E como o chuveiro é meu, faço o que eu quero. Cari Amici per la prima volta alla televisione italiana… Caros amigos pela primeira vez na televisão italiana…
Move it, Get Up, Get on up, stay on the sceene like a sex machine!
E assim foi, porque eu estava lá, eu vi Nino Ferrer dançar como James Brown, tirar o casaco, arrancar a gravata, e se retorcer até o chão gritando yeah yeah yeah. Desde então o soul americano ronda a música italiana, querendo entrar escancarando a porta. São inúmeros aqueles que se deixaram levar pelos sons dos mestres, com a cara e a coragem, cantando em italiano mesmo, na cara dura, como Andrea Mingardi, que convocou no palco do festival de Sanremo nada menos que os Blues Brothers. A Soul Music não tem barreira porque, afirma, é la musica che mi salva quando non so dire amore. E lá vai ele, depois de tantos anos, invocar os nomes dos grandes, e cantar como se não houvesse amanhã, como se a Itália fosse o nome de um teatro em Harlem.
Anima Soul, Alma Soul. Andrea Mingardi diz de possuir (como Nino Ferrer) uma alma impregnada de música negra. E eu também. Como já disse, o chuveiro é meu, e esse artigo também, e aqui eu canto como quiser. Anima Soul.