Por Rashme Sehgal*

 

Tais leis reprimem principalmente os jovens que superam o preconceito familiar e a pressão social para se casar fora da fé onde nasceram.

 

Quando os nomes do filho e da futura nora do Prof. Nadeem Hasnain, um docente sênior da Universidade de Lucknow (universidade pública estadual com sede em Lucknow, Uttar Pradesh, Índia), foram colocados em um quadro de avisos público, no gabinete do Magistrado Distrital da cidade houve uma comoção tremenda. A lei exige que os nomes e outros detalhes pessoais de casais inter-religiosos sejam revelados ao público para registrar possíveis objeções ao casamento, antes que este seja solenizado. No entanto, esse recurso “Lei Especial de Casamento” ou SMA (Special Marriage Act), de 1954, é regularmente mal utilizado, levando ao assédio de casais que procuram contrair matrimônio fora da sua religião. Foi o que aconteceu no caso de Hasnain. “A lei está sendo mal aplicada pela brigada Hindutva (ideologia política que promove a afirmação da identidade e da nacionalidade Indiana) para intimidar e assediar casais, especialmente se futura noiva for hindu”, disse Hasnain.

A futura nora de Hasnain começou a receber uma enxurrada de telefonemas ameaçadores de radicais Hindutva alertando-a contra “consequências terríveis” se o casamento fosse consumado. Assim começou uma campanha típica de difamação, repleta de reinvindicações selvagens – como se, ao se casar com um muçulmano, a mulher hindu estivesse “marcada” para ser vítima do tráfico, dentre outras atrocidades. Muitas acusações infundadas foram lançadas contra a família até a data do casamento, manchando o que seria uma ocasião alegre.

E os telefonemas ameaçadores não paravam. Hasnain disse que uma nuvem de tristeza se espalhou no cartório, quando foi a vez de seu filho e sua nora assinarem o registro e selar a união aos olhos da lei. “Todos os oficiais estavam com uma cara carrancuda, como se um crime estivesse sendo cometido, ao passo que, se um hindu se casasse com uma muçulmana, suas assinaturas seriam recebidas com altos parabéns de “mubaraakbaad” (bênçãos), disse ele.

A Vishva Hindu Parishad (VHP), uma organização nacionalista de extrema-direita, tem estado na vanguarda da oposição aos casamentos inter-religiosos e insiste que “milhares” de “garotas” hindus “crédulas” estão sendo seduzidas a se casar com homens muçulmanos. Isso parece ter atingido aos hindus conservadores, que não pararam para questionar por que as “garotas” hindus deveriam ser consideradas ingênuas. É por isso que, em quatro estados governados pelo BJP (Bharatiya Janata – Partido do Povo Indiano), como Haryana, Uttar Pradesh, Madhya Pradesh e Karnataka, os governos estão considerando essas novas leis sem sentido para proibir a “Jihad do amor”.

O evento que desencadeou essas propostas foi o recente assassinato de uma estudante universitária de 21 anos, nos arredores da faculdade onde estudava, em Ballabgarh, Faridabad, Haryana. A jovem estava sendo perseguida por um muçulmano, que por sua vez tentou sequestrá-la. Quando a jovem resistiu à segunda tentativa do agressor, ele a matou com um tiro. A mãe da jovem disse em rede nacional que queria que a polícia de Haryana matasse o agressor, assim como a polícia de Uttar Pradesh fez ao matar o gangster Vikas Pathak. Poucos pararam para questionar por que a polícia recorreu às armas, no caso Pathak, enquanto que essa jovem perseguida e ameaçada não teve a mesma sorte e, por isso, não foi salva.

Razia Baig, uma defensora situada em Dehradun (capital de Utaracanda) e membro da Comissão da Minoria Utaracanda aponta mais razões pelas quais as campanhas e leis da “Jihad do amor” são uma perda de tempo do público e das energias e recursos do Estado. “Mais mulheres muçulmanas se casam com homens hindus do que o contrário”, diz ela. “à medida que mais e mais mulheres muçulmanas buscam estudos superiores, elas procuram parceiros com melhor educação e bons empregos, o que a maioria dos homens muçulmanos não têm. Homens jovens e muçulmanos com um bom nível de escolaridade têm dificuldade em encontrar empregos, então a maioria acaba indo para o comércio, em busca de serviços informais e mal remunerados. Então, a minha pergunta é: a alegação da ‘Jihad do amor’ também se aplica aos jovens hindus?”

Por exemplo, a questão no caso de Shalu no oeste de Uttar Pradesh também deveria ser por que ela não conseguiu encontrar um emprego com melhor remuneração, apesar de ser graduada – ela ganhava apenas 1.500 rúpias por mês ensinando inglês e hindi. Porém, toda a discussão centrou-se na religião do casal, desviando a atenção da verdadeira questão.

Baig diz que os muçulmanos também têm elementos conservadores que se opõem aos casamentos inter-religiosos. Ela cita uma jovem muçulmana de uma família rica de proprietários de terras que foi renegada depois de escolher se casar com um sique (religioso hindu) há alguns anos. Por outro lado, os pais de ambos casais compararam a situação de seus filhos com um caso mais recente de um casamento muçulmano–sique. Ela diz: “ Em ambos os casos, os jovens estão levando uma vida feliz de casado”.

A ativista social Ranjana Kumari, que dirige o Centro de Pesquisa Social, diz que ajudou casais inter-religiosos a se casar e a maioria deles optou pela cerimônia de Arya Samaj (cerimônia hindu). “ As jovens hindus e muçulmanas continuaram a praticar sua própria fé e nenhuma delas enfrentou problemas”, diz ela.

“O problema com os grupos Hindutva é que eles não entendem o amor”, diz Ranjana Kumari. “ Ao adicionar a palavra “jihad” ao amor, são eles que fazem com que sua estrutura conduza a jihad contra aqueles que acreditam em casamento inter-religiosos. É mais uma forma de controlar a sexualidade das mulheres. “Em outras palavras, a noção conservadora de que um casal deve pertencer à mesma religião [ou casta] para ter sucesso não é apenas falsa, mas também não tem aderência com a realidade.

Alguns intelectuais muçulmanos dizem que, embora os casamentos Arya Samaj sejam uma opção possível para casais inter-religiosos, o resultado das bizarras campanhas contra a “Jihad do amor” é que muito poucos maulanas (líderes religiosos) querem conduzir um nikah (casamento) para esses casais. “ A maioria dos maulanas tornou-se extremamente cautelosa. Eles não querem ter problemas. A menos que o casal e suas famílias sejam pessoalmente conhecidos por eles, eles não conduzirão seu nikah”, disse o ativista social e jornalista SMA Kazmi.

O jornalista e escritor Mihir Srivastava viajou bastante pelo oeste de Uttar Pradesh para pesquisar e desenvolver seu livro “Love Jihadis”. Ele descobriu que a campanha contra os casamentos inter-religiosos foi construída sobre uma base de ódio e medo. Ele diz: “ Ao contrário de ser uma afirmação da supremacia hindu, isso tudo reflete o senso de medo”.

Seu livro examina o caso de Shalu, uma mulher de vinte e poucos anos que ensinava inglês em uma madrassa (centros de pensamento fundamentalista islâmico, sendo as únicas escolas acessíveis aos pobres) no oeste de Uttar Pradesh, que se apaixonou por Kaleem e se casou com ele. A família dela desaprovou e forçou-a a registrar um processo policial contra ele e mais quatro pessoas, acusando-os de sequestro e estupro coletivo. Um dos acusados, um homem chamado Sanauallah Khan, nem conhecia o casal e passou um ano na prisão, o que lhe custou sua reputação e seu sustento.

“Shalu ficou em uma mahila thana (centro de detenção para mulheres) por onze meses e, quando finalmente compareceu à Suprema Corte de Allahabad, ela corajosamente disse ao tribunal que queria morar com seus sogros. Ela negou ter sido estuprada por uma gangue. Embora ela esteja morando com seu marido, o caso contra Kaleem ainda não foi retirado”, disse Srivastava.

Srivastava também entrevistou Chetna Devi, de Meerut, que chefia uma “Akhand Hindustan Morcha”, um “exército” de mulheres e crianças hindus, cujos membros afirmam que o número de muçulmanos excederá o de hindus na Índia, em dez anos. Devi acredita que os homens muçulmanos são “sensuais” e difíceis para as mulheres hindus “crédulas” resistirem. Srivastava diz que Devi não dirige um grupo alinhado ao BJP, embora compartilhe sua ideologia. Mas, Yogi Adityanath, o, ministro-chefe de Uttar Pradesh, vê Devi como uma ameaça. Quando a organização de Devi realizou uma manifestação em Meerut, as autoridades agiram contra ela por não ter tido permissão prévia da polícia. Essa atitude corrobora o fato de que a direita hindu deseja exercer controle sobre a narrativa de disseminar ódio e medo em nome da “Jihad do amor”.

Isso tudo mostra que aqueles que supostamente mudaram de religião “para se casar” são selecionados como alvo. O antigo Inspetor Geral da Polícia de Uttar Pradesh, S.R. Darapuri, aponta que o proeminente ator Dharmendra teria mudado de religião para se casar pela segunda vez. Entretanto, a posição da lei não é tão simplista quanto as pessoas acreditam e é também um fato que o VHP e outros têm como alvo apenas os casais que consideram presas fáceis.

Como a ativista Ranjana Kumari aponta, “Alguns dos principais líderes muçulmanos do BJP, como Mukhtar Abbas Naqvi e Shahnawaz Khan são casados com hindus – será que o BJP ou seus companheiros, incluindo o VHP, estariam agindo contra eles mesmos?”

Darapuri lamenta os poucos registros mantidos sobre a incidência de casamentos inter-religiosos na Índia, mas diz que é por conta da ocorrência, é muito baixa. “De um modo geral, continuamos sendo uma sociedade muito ortodoxa, que se opõe tanto aos casamentos entre castas quanto os inter-religiosos”, disse ele.

No entanto, em setembro, a Suprema Corte de Allahabad decretou que a conversão religiosa “apenas” para o casamento é inaceitável. O tribunal fez essa observação, considerada polêmica, no caso de uma mulher que se tornou hindu um mês antes de seu casamento. Ela e o marido procuraram proteção no tribunal, pois suas famílias os ameaçaram. O advogado da Suprema Corte e membro da Associação das Mulheres Democráticas de Todas as Índias (AIDWA), disse que a Suprema Corte saiu pela tangente nesse caso. “Em vez de fornecer proteção policial ao casal… foi surpreendente que o tribunal tenha optado por agir dessa maneira”, disse ela.

“A ‘Jihad do amor’ é uma ficção criada pelo BJP e seus simpatizantes para atingir as minorias. É uma ficção onde os muçulmanos estão tentando sequestrar mulheres hindus para conversão e por isso estamos horrorizados que eles criarão uma legislação para justificar esse fim”, disse Singh, sobre as novas leis propostas pelos estados governados pelo BJP. Além disso, o Centro de Pesquisa Social disse ao Parlamento recentemente que nenhum caso de “Jihad do amor” foi relatado por qualquer agência central. Mas, Yogi Adityanath advertiu recentemente às pessoas que, os homens que “escondem sua identidade” para “enganar filhas e irmãs” devem “preparar-se para seus próprios funerais”.

Entretanto, o ministro-chefe Adityanath sustenta uma campanha contra a “Jihad do amor” com pouca base na realidade. “A Constituição assegura o direito de as pessoas se casarem de acordo com sua livre escolha. Eles não podem ser ameaçados de violência por pais e parentes como estava sendo feito ao casal que buscou a intervenção da Suprema Corte de Allahabad. Infelizmente, o tribunal não tomou conhecimento deste assunto”, afirmou Singh.

Mesmo no caso de grande repercussão de Hadiya de Kerala (aquele rapaz muçulmano que queria se casar com uma moça hindu recentemente convertida ao islã), a Suprema Corte apontou que o Artigo 31 concede a cada indivíduo o direito absoluto de escolher um parceiro para a vida, independentemente de sua religião. Mas, em novembro de 2019, o governo de Uttar Pradesh ainda pediu à Comissão de Leis que elaborasse uma legislação para regulamentar e controlar essas conversões religiosas.

Como algo que vai contra os princípios fundamentais da Constituição do país pode se tornar uma lei? Os governos estaduais estão adicionando uma reviravolta em sua manobra legislativa, alegando que eles só querem proibir as conversões religiosas para fins de casamentos O problema é que o público foi mantido inteiramente apartado desse debate. O objetivo é acabar com os casamentos inter-religiosos e reprimir os elementos liberais da juventude de ambas as religiões – o livre arbítrio do coração está condenado.


O autor é jornalista freelance. As opiniões são pessoais.

Traduzido do inglês por Marcela APS Pedroso / Revisado por José Luiz Corrêa da Silva

O artigo original pode ser visto aquí