CRÔNICA

 

 

Ele é um menino preto
Filho de mãe branca e pai preto
Abandonado pelo pai
Que caiu no mundo
Buscando sua vida de preto.
Abandonado, pouco tempo depois,pela mãe
Que se casou, novamente
Com um branco
E foi criar os filhos brancos dele.
Não permitindo que levasse os dela
Cresceu, criado pelos avós brancos
Que maldiziam seu ex-genro preto.
Cresceu sem saber se era
Branco ou preto.
Às vezes o rotulavam de pardo,
Afinal tinha cabelos lisos.
Não era tratado com a deferência de filho caçula
Nem com os mimos de neto
Ficou no meio do caminho
Desde pequeno percebeu
Que precisava encontrar seu lugar
Na adolescência perdeu o rumo.
Tímido, se sentindo inferior a todos,
Encontrou logo cedo,
Quem lhe oferecesse bebida
Pra ter coragem
Pra ser percebido
Pra existir
Na bebida se entorpecia
E tentava estancar a dor
Que lhe rasgava o peito
Seu pai era alcoólico
Era a única informação segura
Que tinha dele.
E, talvez, numa tentativa de sentir o que o pai sentira,
Entender porque o abandonara
Afogava-se cada vez mais na bebida.
E assim sentia uma falsa ilusão
De que era aceito pelos amigos brancos,
De que fazia parte de um grupo,
Que pertencia a um lugar.
Arriscava-se pela noite.
Sofreu acidentes,
Foi humilhado.
E, no dia seguinte,
Morria de vergonha da família
Chorava
Num desespero de cortar o coração
No colo da tia que o amparava
A tia que não podia sentir a dor por ele
Mas sentia a dor dele
Não podia livrá-lo do sofrimento
Mas sofria em vê-lo sofrer
Não conseguiu impedir que ele caísse
Naquele mundo de dor,
Porém saía à sua procura,
Pela noite escura e perigosa.
Trazia-o pra casa,
Cuidava
Ouvia seus lamentos dolorosos
Verdadeiros
Até que, depois de tanto sofrimento
Já casado e com uma filhinha
Pequenina e frágil
Já tendo flertado várias vezes com a morte.
Ele se reconheceu doente
Doente pela bebida
Doente pelo preconceito
Doente do preconceito
Da invisibilidade de uma vida inteira
Do menosprezo de uma sociedade moribunda
Atravessado por todas as dores
Do corpo e da alma
E se rebelando contra a sina previsível
Foi cuidar
Do seu corpo e do seu espírito
Pra então encontrar seu momento
Agora expulsa essa dor, Homem preto!
Você está encontrando seu lugar!
E seu lugar é do outro lado
Na Universidade
Terminando seu Curso Superior
Pronto pra ajudar os seus
Que, como você,
Cresceram em meio à dor
Sem nem saber
Que existe outro jeito de viver
Você é um sobrevivente.
Hoje você é Resistência!

* Pintor, cartunista e ilustrador. Também é professor de desenho. Instagram