Este texto foi escrito antes de que a população chilena votasse, majoritariamente, a favor da reforma da Constituição. Ainda assim, achamos por bem publicá-lo, a fim de ajudar na compreensão do processo de mudança em curso naquele país.
Por Jorge Molina Araneda e Patricio Mery Bell
“Fuja do país onde um só exerce todos os poderes: é um país de escravos.”
“Juro por Deus, juro por meus pais e juro por minha honra que não descansarei enquanto viver até que tenha libertado a minha pátria.”
Simón Bolívar
Por que é necessária uma nova Carta Magna no Chile? Esta é uma pergunta que adquire especial relevância durante esses, às vésperas de um novo plebiscito nacional no qual se resolverá a dúvida.
Apesar disso, é fundamental recapitular como nasceu a Lei fundamental vigente no nosso país e as sequelas perversas que gerou, de forma direta ou indireta, na sociedade chilena.
A Constituição Política de 1980 foi redigida entre quatro paredes por Augusto Pinochet e seus assessores mais próximos; e votada sem registros eleitorais, sem partidos políticos de oposição, sem imprensa livre, sem propaganda eleitoral contrária, sem mesários da oposição nas mesas receptoras dos votos.
Segundo o doutor em Direito Agustín Squella, a Constituição delineou um trânsito à democracia extremamente lento e, ainda por cima, um trânsito a uma democracia grosseiramente limitada no que diz respeito à expressão da vontade popular e a representatividade das instituições. Na prática, Pinochet e seus adversários a denominaram “democracia protegida”.
Jaime Guzmán, ideólogo da ditadura, explicava esta aberração da seguinte maneira:
“A Constituição deve procurar que, se os adversários chegam a governar, encontrem-se impelidos a seguir uma ação não muito diferente da que nós mesmos almejaríamos, porque – valha a metáfora – que o leque de alternativas que o gramado imponha realmente a quem jogue a partida seja suficientemente limitado para ser bastante difícil fazer o contrário”.
A Constituição do ditador tentava assegurar a desigualdade, a pobreza e a concentração de riqueza. As cifras do Chile são eloquentes e assustadoras:
A população 1% mais rica detém, aproximadamente, 17% das receitas fiscais. Além disso, os 10% mais ricos recebem mais de 50% de toda a renda.
E o pior é que essas cifras parecem ser estimativas conservadoras, já que quando se incluem os lucros não distribuídos das empresas (lucros retidos no interior das empresas), os números resultam ainda mais alarmantes: somente 1% do país recebe, aproximadamente, 24% de toda a renda gerada (Top incomes in Chile: a historical perspective of income inequality; 2019).
De acordo com o relatório “How’s Life” (2020), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (ODCE), 53% da população chilena está em risco de entrar na pobreza, caso deixe de receber três meses do seu salário; Chile é o quinto país do bloco com o maior percentual, longe dos 36% que todo o grupo apresenta em média.
Conforme a ONG Techo, entre os anos de 2011 e 2019 os acampamentos informais aumentaram 22% no Chile, chegando a 47 mil famílias; depois da crise social, o número se aproximaria, de acordo com as primeras análises, a 52 mil famílias ou mais; e o mais provável é que, no contexto pós-COVID-19, este número dispare, provavelmente, para 100 mil famílias.
O governo afirmou que, nestes tempos de crise sanitária, deve-se lançar mão do seguro desemprego para receber alguma renda; porém, estima-se que há 2,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras informais que dispõem de poucas economias devido à precariedade dos trabalhos e à grande agitação que é ter que sobreviver um dia de cada vez.
O Presidente da República pediu aos empresários que se esforcem para não despedir,um discurso que ia dirigido, através da mídia, às Pequenas e Médias Empresas (PME), que sofrem dificuldades econômicas em aproximadamente 70% dos casos, segundo a Associação Chilena de Seguridade (ACHS). Mesmo assim, algumas empresas multinacionais que faturam centenas de milhões de pesos mensais, como o caso de Starbucks, McDonald’s, Burger King, a cadeia internacional de roupas H&M, entre outras, com o amparo da Lei de Proteção ao Emprego suspenderam unilateralmente as jornadas de trabalho e, com isso, conseguiram se beneficiar com o não pagamento dos salários a seus trabalhadores e trabalhadoras.
Devido à pandemia do coronavírus, exigiu-se categoricamente que as pessoas idosas não saíssem das suas casas e que agilizassem seus trâmites por internet; ou que pedissem a um familiar que fizesse suas compras. No entanto, de acordo com um estudo da Pontifícia Universidade Católica, 459.686 pessoas com mais de 60 anos vivem sozinhas e mantêm pouco contato familiar ou comunitário. Além disso, a Fundação Sol afirma que 80% dos novos pensionistas no Chile nem sequer podem autofinanciar uma pensão acima da linha da pobreza.
Considerando os níveis atuais de desigualdade e de mobilidade intergeracional de renda, a criança de uma família pobre necessitaria, em média, pelo menos cinco gerações para alcançar um nível médio de renda nos países da OCDE.
Como vemos, o Chile continua vivendo um Pinochetismo sem Pinochet. Somente uma mudança da Constituição permitirá resolver essas desigualdades, através de um novo pacto social que termine com os abusos instaurados a ferro e fogo pela ditadura civil-militar e, posteriormente, mantido pelos governos da social-democracia.
Para a direita política chilena, é inconveniente recordar as palavras que Andrés Chadwick, então Senador da República e dirigente da ultraconservadora União Democrática Independente (UDI) pronunciou, em 2005, por ocasião da reforma constitucional (Lei 20.050), que foi executada durante o governo de Ricardo Lagos: Por mais importantes que tenham sido as reformas, continua sendo a Constituição de 1980… Para que haja uma nova Constituição, requer-se um processo constitucional originário, não de um processo de reformas.
Aqueles que atualmente se opõem à elaboração de uma nova Carta Magna se esquecem, por conveniência, das palavras de Chadwick; e dizem o mesmo que os partidários manifestavam em 2005, quando chamavam essa nova reforma de “Nova Constituição Política”.
É sintomático da época da interrupção democrática que o Código Político surgido em 1980 tenha estabelecido como valor fundamental, de acordo ao artigo 1, inciso 5, a segurança nacional e não a liberdade, a igualdade, a justiça e a fraternidade, valores superiores, acreditamos, que a esta altura da história deveriam ser as pedras angulares de uma nova Constituição, como a Lei Federal alemã de 1949 e outras Constituições da Europa continental.
É hora de que os excluídos, os humilhados e os caluniados do sistema tomem – por fim! – as rédeas do seu destino e que, neste 25 de outubro, seja aprovada a elaboração de uma nova Constituição, em um espaço democrático, pluralista e popular. O Chile necessita dialogar e criar, em consenso, uma nova norma jurídica fundamental que não exclua ninguém baseando-se em arbitrariedades. Sabemos que, ao utilizá-las, os conservadores direitistas bajuladores dos militares, através também da pilhagem, tornaram-se milionários à custa das riquezas do país e das pessoas comuns. Chegou a hora de mudar a história.
Traduzido do espanhol por Graça Pinheiro / Revisado por Verbena Cordula Almeida