Mais de 30 anos após a fundação da ACT UP (AIDS Coalition to Unleash Power), suas ações ousadas em resposta à crise da AIDS oferecem lições fundamentais aos que se mobilizam para agir frente à COVID-19.

 

Por Loretta Graceffo

Durante o pico da pandemia de coronavírus em Nova York, o apartamento de Avram Finklestein foi inundado pelo som estridente das sirenes das ambulâncias. “Simplesmente dia e noite…. era constante”, ele disse “Mesmo mantendo o isolamento social, não pude escapar da pandemia por um segundo.”

Para Finklestein, um artista de 68 anos e ativista que mora no Brooklyn, testemunhar o governo dos EUA aguardar enquanto o número de mortos ultrapassa os  200.000  é particularmente doloroso. Como um sobrevivente da crise da AIDS, a pandemia atual é o que ele chama de “retorno a um sofrimento que somente a face mais cruel da America poderia proporcionar.”

No auge da epidemia da AIDS, Finklestein foi motivado a entrar em ação após a morte do seu parceiro, Don. Em 1987, Finklestein ajudou a fundar a AIDS Coalition to Unleash Power, ou ACT UP, um grupo que atuava diretamente em prol das pesquisas, dos tratamentos e das mudanças na política de enfrentamento da AIDS. “Nós estávamos lutando por nossas próprias vidas” disse ele– “aquele foi um momento de fúria, aterrorizante.”

Finklestein também fundou o Gran Fury, um coletivo de arte de guerrilha que visava chamar a atenção para a crise da AIDS através de um design gráfico provocativo, cujo destaque foi o icônico cartaz Silêncio = Morte, que incentivava os transeuntes com as palavras “Transforme raiva, medo, dor em ação.”

“O cartaz tinha a ver com quem podia morrer – ou seja, quais vidas eram valorizadas e quais vidas eram consideradas dispensáveis”, disse ele. “O que não é muito diferente das questões de justiça social nos EUA agora.”

A advogada Terry McGovern, que passou grande parte de sua vida defendendo pessoas HIV positivas de baixa renda, descreve a resposta catastrófica do governo dos EUA ao COVID-19 como “completamente previsível”.

“Muitas vezes, ao longo de toda essa experiência, eu lembrei daqueles primórdios da AIDS”, disse ela. “Existe algo além da busca desesperada por termômetros e máscaras para profissionais de saúde e iPads para que as pessoas possam se despedir de seus entes queridos”, disse McGovern. “Você só precisa se perguntar: ‘como não aprendemos nada?’”

Sete meses desde que o país entrou em lockdown, histórias de resistência, ajuda mútua e solidariedade são mais cruciais para a sobrevivência do que nunca – e o trabalho da ACT UP tem lições a ensinar aos organizadores sobre os meses que estão por vir.

“É uma luta contínua para conseguir que essas histórias sejam contadas”, disse McGovern. “Mas acho que elas são muito importantes porque, em última análise, são histórias de esperança.”

Usando ‘todas as estratégias possíveis’

Quando a ACT UP foi formada pela primeira vez, em 1987, a crise da AIDS já estava acontecendo há seis anos. Aproximadamente 41.000 pessoas morreram e mais de 50.000 pessoas foram diagnosticadas com a doença. O governo Reagan, que foi flagrado rindo da epidemia nos bastidores e não reconheceu publicamente o vírus antes que se passassem quatro anos acumulando vítimas.

“Assim como ocorre hoje com o coronavírus, durante epidemia de AIDS havia dois aspectos importantes”, disse Jim Hubbard, um cineasta cujos documentários narram a vida queer e a resistência, “um deles é doença em si e o outro é a forma como a sociedade lida com ela. Além disso, o governo, quando não era abertamente hostil, simplesmente ignorava o que estava acontecendo”.

A indiferença e frieza do governo dos Estados Unidos ao lidar com a crise assumiu muitas formas: os políticos da época proibiram os indivíduos soropositivos de entrar no país, recusaram-se a atualizar os programas de educação sexual ministrados nas escolas, não estabeleceram programas de troca de agulhas e não fizeram nada para reduzir a venda de drogas.

A zidovudina, conhecida como AZT, acabava de se tornar a primeira droga anti-HIV a ser aprovada pela Food and Drug Administration – e a US $ 10.000 por ano, era a droga mais cara da história.

O engajamento de Hubbard ao ACT UP se deu quando viu um cartaz no metrô anunciando a manifestação de 24 de março em Wall Street. “No início, não entendi por que eles estavam fazendo uma demonstração ali”, lembra Hubbard. “Eu pensei ‘O problema é o governo.’ Mas esse foi o meu equívoco, porque a crise da AIDS foi uma crise do capitalismo.”

Essa análise foi fundamental para o trabalho da ACT UP, que assumiu muitas formas – desde trabalhar com cientistas de todo o mundo até protestos em massa nas ruas.

Membros da ACT UP interromperam as transmissões de notícias, cobriram a casa de um senador homofóbico com um preservativo gigante, acorrentaram-se a uma varanda na Bolsa de Valores de Nova York e deitaram no chão durante a missa na Catedral de São Patrício para protestar contra a igreja que condenava a contracepção.

“Quando se trata de resistir ao capitalismo, sempre achei que você realmente precisa usar todas as estratégias possíveis”, disse Finklestein. “Quer dizer, nós éramos movidos pela raiva e pelo fato de que as pessoas estavam literalmente morrendo nos corredores dos hospitais. Não havia nada que considerássemos inadequado.”

À certa altura, a bancada feminina da ACT UP registrou-se como republicana para que pudessem participar de um fundo republicano. Em contrapartida, eles forneceram biscoitos da sorte que continham dados clínicos sobre imunossupressão em mulheres.

Em outra ocasião, ativistas invadiram os Centros de Controle de Doenças de Nova York, onde inseriram folhetos informativos sobre a AIDS em cada uma das pastas e livros do escritório do diretor de forma que ele não pudesse abrir nada sem antes ver as reivindicações do grupo.

Wikipedia/ Domínio público. NAMES Project AIDS Memorial Quilt

Em outubro de 1992, mais de 300 pessoas marcharam do Capitólio até a Casa Branca, gritando “traga os mortos para sua porta, não vamos aguentar mais”. Lá, ativistas encenaram um funeral político para aqueles que foram “assassinados pela AIDS e mortos por negligência do governo”, espalhando as cinzas de seus entes queridos no gramado da Casa Branca.

“Fizemos todo o possível”, disse Finklestein. “A natureza [da luta contra] o capitalismo é o engajamento constante. Não é uma ação isolada. Não é ao acaso. É constante.”

Embora os membros da ACT UP fossem treinados em desobediência civil não violenta, muitos adotaram a não violência como uma tática, e não como uma filosofia absoluta. À medida que a contagem de mortes e o desespero aumentavam, um grupo pequeno mas significativo da ACT UP começou a considerar o emprego de bombas corporais para chamar a atenção para a causa, tirando suas próprias vidas. “Não se pode dizer que foi uma surpresa o surgimento de posturas mais radicais”, disse Finklestein.“Muitos de nós sentiam que já estavam morrendo e que íamos morrer de qualquer maneira.”

Finalmente, as campanhas de ação direta empregadas pela ACT UP tiveram sucesso em mudar drasticamente a resposta do governo dos EUA à epidemia. As suas vitórias incluíram a garantia que indivíduos HIV positivos fossem incluídos em ensaios clínicos, mudando os procedimentos do FDA para acelerar o lançamento de medicamentos experimentais, o desenvolvimento de um plano de distribuição de preservativos que foi aprovado pelo Conselho de Educação de Nova York e a redução significativa do preço de drogas que salvam vidas.

A luta pela acessibilidade

De acordo com Hubbard, uma das semelhanças mais devastadoras entre AIDS e COVID-19 tem sido o efeito desproporcional com que atinge pessoas “não brancas” de baixa renda.

“Às vezes, nas reuniões do ACT UP, pessoas se levantavam e falavam sobre essas coisas, e outras gritavam:‘O que isso tem a ver com a AIDS? ’” Lembra Hubbard. “Mas se você é um morador de rua com HIV, não se trata apenas do tratamento, mas de uma casa. É sobre um lugar para dormir. É sobre comida. Nem todo mundo está na mesma situação. E coisas que não parecem estar conectadas para algumas pessoas, mas podem estar intimamente conectadas para outras.”

Em 1989, McGovern fundou o HIV Law Project para fornecer serviços jurídicos a indivíduos soropositivos de comunidades carentes, particularmente mulheres negras de baixa renda que não tinham a quem recorrer.

“Havia muita discriminação”, disse ela. “Lembro-me da recepcionista borrifando Lysol quando meus clientes chegavam. Muitos advogados sequer aceitavam casos de pessoas com HIV”.

No início, McGovern representou um homossexual não assumido que estava gravemente doente. Seu parceiro havia morrido com o vírus – e como o aluguel do apartamento estava no nome dele e a lei não reconhecia casais homossexuais, o homem enfrentava um processo de despejo.

“Quando fomos à autoridade habitacional para defender o status de família, eles eram muito homofóbicos e basicamente nos expulsaram”, disse McGovern. Pouco depois, seu cliente morreu por suicídio. A tragédia levou os ativistas a organizarem uma manifestação, que gerou uma série de mudanças proibindo a discriminação contra o HIV em habitações sociais.

Um ponto de inflexão no ativismo pela AIDS ocorreu em 1990, quando McGovern entrou com uma ação coletiva contra o Departamento de Saúde e Serviço Social para expandir a definição de AIDS no âmbito da Administração da Previdência Social.

Na época, a definição utilizada incluía sintomas encontrados predominantemente em homens gays, cujo diagnóstico automaticamente os qualificava para invalidez e uma série de benefícios de moradia. Enquanto isso, os pedidos dos usuários de drogas intravenosas e das mulheres com o vírus ao Seguro Social e ao “Medicaid” eram negados por não se enquadrarem nas regras para invalidez, mesmo quando estavam morrendo. Muitos viviam em habitações públicas e enfrentavam o despejo. Alguns estavam enfrentando batalhas judiciais com a cidade para evitar que seus filhos fossem levados.

“A maior lição que aprendi com o ACT UP é que um pequeno grupo de pessoas – extremamente focado em análises e soluções práticas para o problema – pode mudar o mundo”

Os autores do processo judicial, dentre os quais alguns optavam pelo anonimato, eram em sua maioria mulheres negras homossexuais, incluindo Iris De La Cruz e Phyliss Sharpe, cuja filha de 5 anos também tinha o vírus. “Todas eram mulheres extremamente empoderadas e muito corajosas”, disse McGovern. “Para muitos deles, essa luta estava acontecendo no último ano de suas vidas.”

Entre seus clientes estava Katrina Haslip, uma mulher negra muçulmana, ex-prostituta e advogada carcerária que era amada por suas colegas presidiárias. Durante seu tempo na instituição correcional de Bedford Hills em Nova York, houve um surto de HIV atrás das grades – e depois de meses adormecendo ouvindo outras pessoas morrerem em suas celas, Haslip se tornou uma educadora e defensora da causa.

Duas semanas após ser posta em liberdade, Haslip violou as regras da liberdade condicional ao se dirigir a Washington, D.C. para protestar no Departamento de Saúde e Serviço Social, onde ela compartilhou publicamente sua história.

“Ela esteve muito, muito doente no final da sua vida”, disse McGovern. “Foi muito perturbador e envolvente. Ela morreu sem nunca cumprir os requisitos necessários para obter o auxílio do governo para a invalidez.”

Haslip morreu em dezembro de 1992, apenas um mês antes de o CDC anunciar a ampliação dos critérios a fim de incluir também os sintomas frequentemente encontrados em mulheres, permitindo, assim, que milhares de mulheres obtivessem os serviços de que necessitavam desesperadamente. Nenhuma das oito mulheres envolvidas no processo sobreviveu para ver o avanço do tratamento de 1995.

Para McGovern, a corrida atual para desenvolver uma vacina COVID-19 levanta questões semelhantes de acessibilidade: “digamos que recebamos uma vacina que funcione – quem será imunizado? Como podemos ter certeza de que haverá igualdade na distribuição?” Perguntou McGovern. Ela teme que, devido ao histórico de experiências médicas com negros americanos, muitas comunidades carentes possam considerar a vacina suspeita. “Vamos precisar de líderes de saúde pública que conheçam as características das comunidades e que contem com a confiança das pessoas.”

Razões para ter esperança

Finklestein passou os últimos meses servindo no comitê organizador do Free the Vaccine for COVID-19, um coletivo internacional de artistas, estudantes e profissionais da área médica que lutam para garantir a distribuição equitativa de uma vacina COVID. Enquanto a comunidade global luta com um futuro incerto, ele acredita que é decisivo estudar os movimentos sociais do passado em toda a sua complexidade.

“A história da ACT UP pode ser descrita como: uma comunidade que, agindo solidariamente em seu própriointeresse, protestou, e isso levou ao lançamento de drogas que acabaram colocando a AIDS na posição de uma doença crônica”, disse ele. “Na realidade, a história é muito maior, perturbadora e complexa do que isso. Mas convém ao capitalismo contar sua versão, porque indica que o sistema funciona”.

O que muitas vezes fica de fora da história é que o lançamento acelerado de medicamentos para a AIDS andou de mãos dadas com o movimento de direita pela desregulamentação durante a era Reagan. “Os medicamentos que salvam vidas foram apressados por consequencia do ACT UP”, disse Finklestein. “Mas se você pensar nisso no contexto, as pessoas estavam pedindo uma liberação rápida de medicamentos, e as empresas farmacêuticas adoram isso.”

Ainda assim, Finklestein acredita que há motivos para ter esperança – entre eles, os levantes em todo o mundo após o assassinato de George Floyd. “Pode ser um reflexo do meu próprio privilégio dizer que considero este momento de resistência nos EUA inspirador, quando tantas pessoas estão sofrendo e morrendo, mas é inspirador”, disse ele. “Assistir a este momento político é como uma aula magistral de organização.”

McGovern também ficou comovido com os protestos. “O que eu adorei no ACT UP é que estava cheio de artistas”, disse ela. “E tem havido uma criatividade incrível em todo o movimento Black Lives Matter -Vidas Negras Importam. Então, eu diria que o ativismo está vivo e bem, apenas está tomando uma forma diferente.


Traduzido do inglês por Magui A. Vallim / Revisado por Elisa Dias da Silva

O artigo original pode ser visto aquí