CINEMA
Vai ser na segunda metade do século XX que o cinema irá tardiamente adentrar as questões do modernismo artístico. E quando dizemos “tardiamente” é porque certas expressões artísticas como as artes plásticas e a literatura, por exemplo, já na virada do século XIX para o XX tinham na discussão sobre o realismo uma das suas principais questões, aonde podemos destacar nas artes plásticas a crítica ao figurativismo, enquanto na literatura florescia o realismo crítico. É certo que o cinema se fazia presente durante as discussões entre a arte clássica, o modernismo e as vanguardas nas primeiras décadas do século XX, mas muito mais a reboque das outras manifestações artísticas, uma vez que o cinema, naquela época, ainda brigava para obter o status de arte. É difícil estabelecer com precisão as razões para esse “atraso” do cinema. Alguns autores recordam que o cinema é o “caçula” das artes, já outros enxergam nos altos custos da produção cinematográfica a razão para a resistência as mudanças, enquanto alguns acreditam que o fascínio com a especificidade do cinema, qual seja, a ilusão de real a partir da reprodução do movimento, seria a principal causa para a demora na absorção das críticas modernistas.
Com o deslocamento efetuado por Bazin na questão do realismo cinematográfico (que vai ampliar exponencialmente o debate, possibilitando diversas críticas, inclusive às suas próprias ideias, até mesmo dos seus “discípulos” da Nouvelle Vague) e o surgimento do neorrealismo italiano, a discussão sobre o realismo no cinema se descola da questão da impressão de realidade que, de uma maneira geral, era o ponto de partida das indagações acerca do realismo desde os seus primórdios, passando a privilegiar o caráter estético em detrimento de uma abordagem do realismo como “fenômeno”. Não que a questão da impressão de realidade tenha desaparecido, ela continuava presente, como atestam, por exemplo, o texto do semiólogo francês Christian Metz, publicado na revista Cahiers du Cinéma nº 166-167, de 1965, aonde ele aborda as diferenças da impressão de realidade entre o cinema, a fotografia e o teatro; ou, então, o seminal texto de outro pensador francês, Jean-Louis Baudry, intitulado Dispositivo: Aproximações Metapsicológicas da Impressão de Realidade, publicado em 1975; só que, a partir de então, o fenômeno da impressão de realidade e o conceito de realismo não mais se misturam, em determinadas análises eles até se sobrepõem, mas não se confundem.
O realismo no cinema deixa de ter como principal tema a reprodução fidedigna da realidade a partir dos nossos sentidos, assim como deixa de ser encarado com uma perfeita representação da realidade, abandonando o realismo da verossimilhança. Ele passa a ser compreendido não como cópia da realidade, mas como produção, com ênfase no caráter construído da realidade. Dessa forma, o realismo nada mais é do que uma convenção estilística como outras, mas que mascara seu processo de produção ao se apoiar na visão de mundo predominante. Assim sendo, enquanto representação artística da realidade, o conceito de realismo torna-se maleável, abrindo a possibilidade de diversos “realismos”, evidenciando, em última instância, o seu caráter ideológico, como enfatiza o filósofo britânico Terry Eagleton: “realismo artístico não pode significar ‘representar o mundo tal qual é’ mas sim representá-lo de acordo com as convenções da representação do mundo-real”.
O cinema, ao se “tornar” moderno, abandona o conforto do ilusionismo clássico e passa a participar, efetivamente, das discussões do modernismo artístico ao amalgamar tradição e ruptura (a “política dos autores”, engendrada pelos jovens críticos da Cahiers du Cinéma, que mais tarde se tornariam os diretores da Nouvelle Vague é, sem dúvida, o melhor exemplo dessa nova prática). Os filmes vão incorporar essas discussões ao ato de “fazer cinema”, multiplicando as formas e estilos do “realismo”. Como exemplo, podemos citar o neorrealismo italiano e o seu realismo de crítica social, que se materializa nos recursos do plano-sequência e da profundidade de campo. A Nouvelle Vague e o seu realismo precário e artificial, corporificado no uso dos jump-cuts (montar dois planos que são fragmentos da mesma tomada, mas eliminando uma parte da tomada) e dos falsos raccords (o falso raccord é uma mudança de plano que rompe com a lógica da continuidade transparente, mas que ainda mantém a continuidade da narrativa). E o Cinema Novo com o seu realismo radical e violento, fazendo uso constante da câmera na mão.
Temos nesses casos três abordagens “realistas”, mas com construções diferentes. O cinema moderno é um momento que estabelece novas maneiras de filmar, além da demarcação de novos padrões e formas de compreender o cinema.
Bazin e os jovens críticos que dariam origem a Nouvelle Vague tinham uma intensa produção intelectual, porém ela não se apoiava em instituições acadêmicas, seus ensaios circulavam, basicamente, através de jornais e revistas. A partir da década de 1960 esse quadro vai mudar e os estudos sobre cinema vão migrar para o mundo acadêmico. As análises sobre o cinema vão assimilar diversos modelos de pensamento tais como o estruturalismo, a psicanálise, o marxismo, os estudos culturais etc. e vamos assistir ao surgimento de universidades de cinema, assim como a produção de um número expressivo de teses sobre o cinema. Nesse período podemos destacar, entre outros importantes teóricos, Christian Metz, que aplica os princípios da semiologia de Ferdinand de Saussure na investigação sobre o cinema, propondo o estruturalismo linguístico como método de análise e assumindo o cinema como uma forma de linguagem. Jean-Louis Baudry, que vai se utilizar do marxismo estruturalista de Louis Althusser e da psicanálise de Jacques Lacan para pensar o cinema como um dispositivo, com destaque para o seu texto de 1970, Efeitos Ideológicos Produzidos pelo Aparelho de Base. Ou ainda, o crítico marxista norte-americano Noël Burch, com uma análise dialética da relação espaço-temporal no cinema, produzindo uma importante reflexão sobre o fora de campo em seu livro Práxis do Cinema, de 1969.
Esses modelos têm, pelo menos, duas coisas em comum: a disposição de produzir um método científico de análise do cinema e a reflexão sobre cinema com base na tentativa de sistematização de toda a experiência a partir de uma estrutura. É o período das Grandes Teorias, em que determinados modelos de pensamento tentavam abarcar a totalidade dos fenômenos partindo de conceitos universalizantes, tais como o inconsciente psicanalítico, a infra-estrutura econômica marxista ou o simbólico estruturalista.
Nos anos de 1980, começam a surgir os primeiros debates sobre o que se chamou de cinema pós-moderno. Mais uma vez o cinema chegava atrasado ao debate. Desde o final dos anos 1950, início dos anos 1960, que a questão do pós-modernismo já circulava nas discussões a respeito das artes plásticas, da literatura e da arquitetura. O principal aspecto destacado na conceituação de uma obra como pós-moderna concentrava-se, predominantemente, na dificuldade em enquadrar certas obras no léxico modernista, especialmente por conta da absorção por parte dessas obras de elementos da cultura pop e da cultura de massa. Esse seria, também, o ponto que viria a ser destacado no cinema dos anos 1980, ou seja, havia filmes que escapavam a toda tentativa de categorização, principalmente pela utilização de recursos híbridos, derivados da TV, da publicidade, dos quadrinhos, do vídeo etc.
Porém, o conceito de pós-modernismo é, até hoje, um conceito controverso. Não há um consenso na sua aplicação, nem mesmo no seu entendimento, podendo adquirir uma conotação positiva ou pejorativa, dependendo da perspectiva que se assuma. Talvez, o primeiro pensador a tentar delimitar o conceito tenha sido o francês Jean-François Lyotard que, ainda nos anos de 1970, escreveu o ensaio A Condição Pós-Moderna. Nele Lyotard associa o quadro cultural à descrença nas explicações totalizadoras do processo histórico, à “incredulidade quanto às metanarrativas”. Em outras palavras, os esquemas interpretativos das Grandes Teorias eram postos em xeque e o modernismo, ancorado nas ideias de progresso, de futuro e na produção do “novo”, foi atingido em cheio por essa condição. A quantidade de textos produzidos a respeito do pós-modernismo foi gigantesca, é impossível reproduzirmos aqui, mesmo que resumidamente, as diversas interpretações aplicadas ao conceito. Contudo, dois pontos merecem destaque, a onipresença do cinema como objeto de análise em todos os estudos sobre o pós-modernismo e a prevalência do conceito de simulacro.
O conceito de simulacro remete a Platão e tem a ver com a separação entre um mundo sensível – o nosso mundo, lugar das imagens e dos corpos – e um inteligível – mundo superior, ideal, das essências e das matemáticas. Em Platão, o conhecimento só é possível em relação aos objetos do mundo inteligível, contudo, há uma forma de garantir que mesmo no mundo inferior o conhecimento torne-se possível, o que demandaria que suas imagens e matérias submetam-se aos objetos ideais do mundo inteligível, tornando-se cópias dos modelos. Como é possível perceber, Platão nos instaura no mundo da representação, já que as cópias seriam imagens de seus modelos, interiorizando uma semelhança com a identidade superior da Ideia. Os corpos que não se deixam subjugar pelos modelos, que não interiorizam convenientemente um nível necessário de semelhança, isto é, que não estabelecem uma ligação com a Ideia, são os simulacros, cópias degradadas.
Nas décadas finais do século XX, a sociedade capitalista globalizada está inteiramente midiatizada. A produção de realidade (e, também, de subjetividade) está atrelada aos fluxos incessantes de imagens (ficcionais ou não) produzidos pelos meios de comunicação. Nesse quadro, o conceito de simulacro é resgatado para tentar dar conta desse novo real. Alguns autores despontam como centrais nessa discussão sobre essa condição pós-moderna.
Um desses autores é o situacionista francês Guy Debord, que em seu livro A Sociedade do Espetáculo sustenta que na lógica capitalista que prevalece na segunda metade do século XX as imagens midiáticas imperam, impondo um domínio da aparência sobre o real, gerando um efeito de alienação.
O sociólogo francês Jean Baudrillard vai radicalizar a ideia de Debord, ao afirmar que não existe mais nenhuma correspondência entre o real e sua representação. Estaríamos, simplesmente, imersos em uma realidade inteiramente composta por simulacros, que seriam narrativas, cópias e imagens autônomas, sem mais nenhum lastro com o real. Para Baudrillard, não estamos mais nos domínios da realidade, mas da hiper realidade.
Já o marxista norte-americano Fredric Jameson vê o pós-modernismo como um reflexo do que ele chama de capitalismo tardio, aonde teríamos o apagamento do sentido da História. Nesse quadro, a arte pós-modernista é regida pela combinação eclética de estilos, imaginários e tradições culturais, só que completamente desenraizados das vivências históricas, produzindo um presente eterno, saturado de imagens e mercadorias.
O cinema, como dito acima, vai ser um meio privilegiado para a constatação desse novo cenário. A análise de filmes vai ser um recurso constante nos ensaios sobre o pós-modernismo, ao ponto de alguns filmes terem se tornado referências obrigatórias dessa temática. Podemos destacar, entre outros, Blade Runner, de Ridley Scott; Veludo Azul, de David Lynch; O Fundo do Coração, de Francis Ford Coppola; e, já na década de 1990, Matrix, das irmãs Wachowsky.
Nos filmes dos anos de 1980, o que prevalece é a intertextualidade, é a “impureza” em relação a outras expressões artísticas e, especialmente, em relação a outras mídias, gerando um caos de signos e significações, uma fragmentação que produz a instabilidade absoluta de todos os referenciais (essas características se tornaram tão marcantes, que quando um filme se enquadra em variados gêneros e estilos é automaticamente categorizado como “pós-moderno”). Os filmes pós-modernos incorporam elementos do ilusionismo clássico, ao mesmo tempo em que utilizam recursos não-clássicos que causam uma ruptura no real do senso comum. Porém, por trabalharem com elementos da cultura pop e da cultura de massa, eles são perfeitamente inteligíveis ao espectador médio, diferentemente de muitos filmes icônicos do cinema moderno. Dependendo do ponto de vista, essa afirmação pode ser um elogio ou uma crítica.
Paródia, pastiche, maneirismo vão ser alguns dos conceitos aplicados ao cinema pós-moderno, mas o que há de comum a todas essas abordagens é que a partir dos anos de 1980, o real vai perdendo, gradativamente, o lugar de referência das representações da realidade. As imagens não se ancoram mais, necessariamente, no mundo real, mas passam a ser autorreferentes. E esse quadro vai ficar ainda mais complexo com o acelerado desenvolvimento do cinema digital a partir dos anos 1990.