Teria esperado mais uns dias. Chegar a cem. Noventa e quatro não impressiona tanto assim como cem. Um número redondo, lindo, feito, limpinho, completo. Cem, e poder escrever um Réquiem, não para os mortos, mas para os vivos.
Um Réquiem para os vivos mortos em vida. Vivos, que aceitam viver como mortos, inertes insensíveis e inconscientes de sua condição. Rostos, caras, expressões sem forma e sem corpos, na uniformidade de uma vala rasa comum, exposta à luz do dia como continuidade do tempo, sem distinção entre o momento presente e o futuro, que nunca chegará e que vemos anular-se no átimo infinito. Corpos sem rosto, sem cara, sem expressão alguma, em convulsão permanente, debatendo os membros desmembrados na visão de sonho indigesto, que acompanha o condenado ao patíbulo.
O direito negado, o respiro negado, o ar negado, o último respiro negado como um peixe em agonia.
Como se estar morto fosse a coisa mais normal do mundo. Como se estar morto em vida fosse o novo paradigma, ou melhor, fosse o paradigma de sempre, hoje, finalmente renovado e confirmado.
Mas não consegui esperar. Escrevo agora, quando para chegar a cem, faltam seis. E faltam seis, porque são oito horas da manhã. É só esperar o finalzinho da tarde, que serão cinco. Sim, mil a mais no espaço de poucas horas. Mil por dia… há semanas. O novo paradigma.
Um Réquiem para os cem mil mortos de Covid e para aqueles que virão-, uma oração fúnebre para mim também. Sim, para mim também, que trabalho faz quase quarenta anos com os derrelitos, os doentes, os incuráveis, os mancos, os velhos, os paralíticos, os imobilizados, os condenados da Terra, os mortos de fome, os abandonados em leitos anônimos, as crianças e aqueles que não tiveram infância alguma, por serem assassinados antes de qualquer escolha.
Sim, teria escrito um Réquiem dedicado aos cem mil mortos, aos meus pensamentos, a como eu era ontem, um Réquiem para mim também. E como Sor Juana Ines de la Cruz teria assinado com sangue: Libera me Domine de morte aeterna.
Meses atrás, já escrevi que tinha medo. Cinquenta e cinco milhões de pessoas estavam prontas a me jogar na cadeia, torturar e aniquilar. Elegeram um presidente que para falar de mim e daqueles que são como eu, usava a palavra “matar” “eliminar” “metralhar”. E falava em alto e bom som, entre gargalhadas escrachadas e aplausos.
Hoje, aquele mesmo presidente da república, através de uma canetada, vetou a lei que previa ajuda financeira aos profissionais da saúde incapacitados pela Covid. Fácil assim: não se pode determinar o lugar de contágio, nem a modalidade do mesmo: nada de ajuda. Nada de nada. Eu e os meus colegas podemos morrer e para nossas famílias não vai ter ajuda nenhuma. Acabou.
Agora, o que acabou mesmo é o tempo do diálogo. A história ensina o que acontece quando o fascismo e os fascistas não são levados a sério. A história ensina que os massacres começam sempre com palavras, frases, ironias, com a mamata que vai acabar, com a repetição da mentira até que se torne realidade. Eu acuso os eleitores de Bolsonaro – todos, um por um. Sim, acuso os eleitores de Bolsonaro de serem pessoalmente responsáveis pela morte de cem mil pessoas e pela minha morte também, se mais fodido, ainda eu for. Agora chega.