CONTO
Existem outros seres alados?
Já era sete da noite quando Madame Bernadette de Jauvre entrou afobada no camarim do diretor do espetáculo. Ela era muito pequena e precisava subir em um banquinho para poder alcançar sua visão. Ele estava sempre sentado em sua mesa, cercado de livros e mapas, polindo sua coleção de moedas de prata.
– Anna não pode fazer o show hoje. Está de novo com febre – disse, pulando e tentando ser vista.
Jack lentamente retirou os óculos, se levantou da cadeira e a olhou de cima a baixo, com cara de pouca paciência.
– Impossível. Dê um jeito. Ela me deu prejuizo ontem e hoje de novo não pode.
Bernadette fixou o olhar entre as pilhas de livros. Afastou alguns da mesa, então colocados diante do diretor, e aumentou o tom:
– Chame um médico. Eu não posso garantir nada.
Anna, a mais famosa atração do circo, por ter asas, tinha ocasionalmente febre. Desde pequena, quando ficava triste, a temperatura subia. Eram febres altas, ardia.
Madame Bernadette, responsável pelo elenco do “Museu das Curiosidades Vivas”, também treinava os artistas. Era refinada, falava francês, sua língua nativa quando ficava irritada, e falava mal de Nova York – que dizia ser vulgar e que fedia a esterco. Sempre repetia “Quelle journée terrible..terrible” ao subir e descer as escadarias. A pequena Bernadette se dizia uma das mais famosas atrizes francesas de sua geração, prejudicada pelo seu tamanho – e claro, por uma barba que insistia em crescer.
Só Jack, o dono do Circo-Museu, se atrevía a desafiá-la. Havia um segredo na história de sua contratação, mas ninguém ousava perguntar.
– Eu vou providenciar um médico. Diga a ela para não sair dos seus aposentos – se convenceu Jack. – É bom que melhore rápido porque quero fazer uma apresentação para um general, no domingo. E a senhora, por favor, não apare essa barba, vamos usá-la também em um espetáculo.
Madame Bernadette suspendeu suas saias e deixou o escritório com ar de quem ganhou uma disputa, decidida. Foi dali ao quarto de Anna avisar que o melhor era que ela se mantivesse na cama até o médico chegar.
A casa em que as crianças viviam era anexa ao teatro e tinha uma passagem interna até o palco e camarim. A rotina das apresentações fazia com que todos vivessem bem próximos do lugar do espetáculo. Um corredor de várias portas, quase um labirinto, trilhava o caminho para figurinistas, maquiadores, pessoal da orquestra. As escadas acumulavam terra, trazida por inúmeros pares de botas. Havia muito cheiro de cavalo e esterco.
A Broadway era uma rua feita no lugar de uma antiga trilha indígena e nesse ponto, quase nos limites da cidade, muitas vezes era invadida pelo terrível cheiro que vinha dos pântanos. Era um tempo de muitos salões, que recebiam marinheiros e gente fugindo sempre de algo.
O “Museu das Curiosidades Vivas” notabilizava-se como a primeira casa de diversão da cidade. Instalada em um casarão e colada a um salão que já havia sido estábulo, recebia centenas de visitantes, interessados em ver atrações de circo e coisas assustadoras, como mágicas e ilusões. Anna, que havia sido comprada por Jack em Lisboa havia alguns anos, ainda criança, chegava a adolescência como principal atração da casa. Tinha asas brancas, imensas. Todos pagavam alguns centavos para se aproximar dela. Um grande investimento que, segundo Jack, o faria milionário quando ela aprendesse a voar.
O acesso ao camarim se dava por um corredor tão pequeno que todos se acotovelavam para passar. Algumas vezes Madame Bernadette se perdia entre as pernas dos artistas. “le respect!..le respect”, dizia. – Exijo respeito !
A maioria nunca acreditou que ela fizera sucesso como atriz em Paris. Com aquela altura e barba, possivelmente havia fugido de algum circo. Ela sempre justificava a agressividade dizendo que havia sido contratada para colocar no palco o maior show da Terra, “as criaturas mais surpreendentes” da humanidade e que conseguiria fazer isso a qualquer preço.
Doutor Hans era um médico alemão de prestígio, um dos poucos que atendia a artistas, donos de péssima reputação, que nunca tinham dinheiro. Ele jamais havia visto Anna, nem sabia de suas asas enormes. Explicava todos os fenômenos – pessoas com três braços, nanismo, mulheres de barba, mas asas? Nunca presenciara nada igual. Pelo menos foi isso que ele disse a Jack. Mas não era verdade. O médico tinha também um segredo.
Hans usava óculos redondos e pequenos, que se harmonizavam com sua barba branca, e vestia um colete marrom quando entrou nos aposentos de Anna. O quarto estava escuro, naquele fim de tarde, e a janela ainda aberta. As cortinas sopravam forte quando ele abriu a porta.
Ele parecia conhecer a anatomia de uma pessoa alada. Pediu que ela se virasse de lado, manuseou com normalidade as penas brancas. Nenhuma expressão diferente ao ver aquele fenômeno, pouco humano aos olhos da maioria.
Anna percebeu que ele não havia se assustado. Enquanto isso, doutor Hans olhava para os lados um pouco agitado. Rapidamente, andou até a porta, verificou o corredor. De volta ao pé da cama, disse sussurrando:
– Eu conheci um menino, há muitos anos, que tinha … essa coisa ai – falou apontando para as asas – mas hoje ele não tem mais.
– E onde ele está ? Como se livrou das asas? Perguntou Anna, muito interessada. As asas eram sua prisão e não a liberdade, naquele mundo circense.
Nesse momento, Madame Bernadette voltou ao quarto, o que levou o médico a mudar o tom de voz:
– É cansaço – minha senhora – Essa menina, pelo que soube tem feito muito esforço físico, não é?
Bernadette devolveu o chapéu ao doutor Hans e disse firmemente, olhando para Anna com seriedade:
– E vai trabalhar ainda muito mais. Muito obrigada, doutor Hans, Jack vai acertar com o senhor depois. Bom saber que não é nada grave.
Anna foi dormir aquela noite com a certeza de que não era a única a viver naquela condição. Mas precisava encontrar o tal menino e descobrir como ele havia retirado as asas. Ela mesmo tinha muita dúvidas sobre seu futuro se continuasse a trabalhar no circo. Será que poderia voar, como Jack havia imaginado ao comprá-la ? A família que a vendeu garantia que sim, que sua mãe era também alada, mas foi morta porque acharam que seria uma bruxa.
Levar Anna para Nova York era uma forma de salvá-la, dizia Jack. No entanto, imaginava ganhar muito dinheiro com a menina voando, o que faria de seu circo o mais famoso do mundo. Jamais poderia imaginar – ou permitir – perder essa oportunidade.
Seu objetivo era ter Anna no espetáculo e garantir que seguisse crescendo e treinando para um dia, voar.
(a continuar)