Por Lu Sudré/Brasil de Fato
Projeto do senador Tasso Jereissati facilita venda de outorgas entre empresas para explorar rios e fontes
Seja no tratamento das águas que saem das torneiras ou no controle das águas que correm pelos rios e lagos, o capital externo encontra, a cada dia, mais espaço no Brasil. Os caminhos abertos pelo novo marco do saneamento básico e pelo PL 495/2017, que cria o Mercado de Águas, seguem a trilha de um movimento global no qual a água tornou-se fonte de lucro primária.
Documentos da Organização das Nações Unidas da década de 1990 como a Agenda 21 e a Carta da Terra já alertavam o risco de a água ser a maior razão de guerras futuras. Décadas depois, é inegável que a substância é alvo de cobiça dos setores de bebidas engarrafadas, do agronegócio e de mineradoras, gerando conflitos em diversos países.
Dono de 12% de toda reserva de água doce do planeta, o Brasil ganha cada vez mais destaque nesse mercado. O Aquífero Guarani, por exemplo, localizado na América do Sul, é uma das maiores reservas de água potável do mundo. A reserva abrange oito estados brasileiros, sendo três no sul do país e outros cinco nas regiões Sudeste e Centro-Oeste.
Além do Guarani, que também se espalha por terras do Paraguai, Argentina e Uruguai, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), um quinto da água doce existente no mundo está na Amazônia: O aquífero Alter do Chão, localizado nos territórios do Amazonas, Pará e Amapá. A estimativa é de que a reserva de água em Alter do Chão seja quase duas vezes maior do que a do aquífero Guarani.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o engenheiro Marco Iob, ativista que projeta e coordena campanhas de advocacy internacionais para a proteção e abastecimento da água e integrante da organização italiana Centro di Volontariato Internazional (Cevi), alerta que a água é cada vez mais escassa no mundo. Como consequência desse processo, regiões ricas em recursos hídricos chamam atenção internacionalmente.
Segundo ele, mesmo entre organismos como ONU e Banco Mundial, há um consenso na previsão de que os cenários do futuro são da escassez de água exacerbados pelas mudanças climáticas com efeitos socieconômicos devastadores.
É neste contexto, de acordo com Iob, que a abordagem econômica liberal ganha espaço, defendendo que o recurso seja administrado pela lógica de mercado, com participação de detentores de grandes capitais e fundos de investimentos.
Assim como no Brasil, as fontes de água naturais são, em grande parte, usadas por hidrelétricas, para irrigação do agronegócio, por engarrafadoras de água e pelo ramo da mineração.
“Mais de 50 mil grandes barragens foram construídas em cerca de 60% dos rios do planeta. A água é central para o processamento de muitos metais e para a extração de alguns minerais, como ouro, carvão, cobre, diamantes. A água necessária nos processos de produção de certos bens foi expressa com o conceito de ‘água virtual’, isto é, água usada, mas não fisicamente incorporada no bem final”, explica Iob.
Capitalismo feroz
A financeirização da água ou a transformação do recurso em ativo financeiro é considerada a última fronteira da privatização.
Marco Iob detalha que companhias multinacionais, entre elas as de bebidas como Nestlé e Coca-Cola, exercem influência sobre os legisladores por meio do Conselho Mundial da Água, que organiza o Fórum Mundial da Água a cada 3 anos.
As agências financeiras internacionais de caráter neoliberal, como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e Banco Europeu de Investimentos, seriam outros protagonistas da financeirização da água, especialmente por meio da concessão de empréstimos a Estados em processos de privatização.
“Esses atores, portanto, contribuíram para a construção de um contexto que constitui uma das ameaças mais relevantes: a perda da democracia dos cidadãos e das comunidades locais, a expropriação dos parlamentos onde são definidas as regras, as práticas e as políticas da água, para entregá-las nas mãos dos stakeholders do mercado. Isso determina a perda de legitimidade dos territórios e dos cidadãos para poder decidir como usar os recursos essenciais à vida, como protegê-los e como garantir sua conservação para o planeta e para as gerações futuras”, critica o ativista.
Jereissati, a peça-chave
Na medida em que a privatização das águas avança no Brasil, mais evidentes ficam os interesses por trás das tratativas. Por aqui, os projetos contam com um grande aliado no Senado.
Além de ser relator do novo marco do saneamento básico, que facilita a participação privada no setor, Tasso Jereissati é também o autor do citado Projeto de Lei nº495 de 2017, que cria o Mercado de Águas.
A proposta, que ainda não está em pauta, muda essencialmente o aspecto mais central da Lei das Águas, que instituiu o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH) e estabeleceu a água como um bem público inalienável, que não pode ser controlada por particulares.
De acordo com o texto de Tasso, a lei introduziria um “instrumento destinado a promover alocação mais eficiente dos recursos hídricos”. O projeto prevê que aqueles que detêm outorga de determinadas águas, ou seja, a autorização para usá-las, como setores do agronegócio e produtoras de refrigerantes, possam negociar águas excedentes com outros outorgados de uma mesma bacia hidrográfica.
Atualmente os estados brasileiros são responsáveis por autorizar o uso dos recursos hídricos gerenciar e fiscalizar os usos da água, cedendo uma outorga gratuita. São pagos apenas laudos, taxas ou registros para sua emissão.
A lei que cria o Mercado de Águas prevê que o comitê gestor de cada bacia ficaria com 5% do valor de cada cessão onerosa, remuneração pré-estabelecida em troca do direito de exploração de um recurso natural, entre os entes privados.
Conflitos de interesses?
Ex-governador do Ceará e um dos tucanos mais influentes em Brasília, Tasso Jereissati é empresário há décadas. Com mais de R$ 389 milhões em bens declarados, dentre os 81 senadores, Tasso é dono da maior fortuna informada à Justiça eleitoral. Eleito em 2014, tem mandato até 31 de janeiro de 2023.
De família empresarial e política, o político é um dos fundadores do Grupo Jereissati, responsável por uma das maiores redes de shopping centers do país, o Iguatemi. Formado em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas, é filho do ex-senador Carlos Jereissati e já presidiu a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado, além de ter sido relator da reforma da Previdência na casa.
O conflito de interesses na atuação de pautas relacionadas às águas brasileiras fica ainda mais cristalino a partir de uma análise sobre a atuação empresarial do peessedebista. Jereissati tem ações na empresa Calila Administração e Comércio S/A, uma das acionistas brasileiras da Solar Coca-Cola, empresa sediada em Fortaleza e segunda maior fabricante do sistema Coca-Cola no Brasil.
Com capacidade de produzir cerca de três bilhões de litros de bebida ao ano, a empresa é fruto da fusão das companhias Norsa, Renosa e Refrescos Guararapes, originalmente pertencentes ao Grupo Jereissati, Família Mello e The Coca-Cola Company, respectivamente. As relações fizeram que Jeiressati ganhasse o apelido de “Senador Coca-Cola”, pela oposição e pelos movimentos sociais.
A Solar BR Participações S.A foi também a maior doadora da última campanha do parlamentar, com R$ 1,5 milhão. Conforme reportagem do O Congresso em Foco, há ainda uma doação de R$ 999 mil da empresa Recofarma Indústria do Amazonas Ltda, também fabricante da Coca-Cola Brasil e de toda suas marcas. Entre as listas de doadoras há outros grandes nomes como o Banco Bradesco e a BGT Pactual.
Na opinião do deputado federal Glauber Braga, não há duvidas que as propostas do senador são motivadas por interesses econômicos e empresariais. Seja na relatoria do novo saneamento básico ou na defesa da criação do Mercado das Águas.
“Ele está agindo como um agente público, se é que se pode dizer isso, capturado por seus próprios interesses com aqueles que ele representa na tarefa de relator. Ele é o representante dessa articulação com a Coca-Cola no Brasil, a partir de seus negócios. É lamentável que tenhamos um senador exercendo esse papel e não sendo contestado pelos outros senadores de maneira veemente por ter sido colocado nessa posição. Lamentável, mas está no seu papel nefasto. Quem tem que combatê-lo somos nós”, critica Braga.
Segundo o parlamentar, é falso o argumento de reaproveitamento dos recursos hídricos, que fundamenta a cessão das outorgas no PL 495/2017.
“Como se empresas como a Coca-Cola estivessem preocupadas com o não desperdício ou com a preservação dos nossos mananciais, rios e lagos brasileiros. É a priorização do lucro e dos ganhos econômicos que eles podem ter com esse tipo de matéria.”
A reportagem do Brasil de Fato solicitou posicionamento ao senador Tasso Jereissati sobre o assunto por meio de sua assessoria de imprensa, que não se posicionou até a publicação do texto.
Desigualdade
A partir do PL, quem compra a outorga fica em uma situação preponderante do uso da água de um rio ou de um lago em relação aos demais usuários. É o que alerta o ex-presidente da ANA, Vicente Andreu, que prevê que os conflitos pelo uso da água por comunidades locais irão se intensificar.
Conforme monitoramento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os conflitos pelo uso das águas brasileiras se intensifica a cada ano. Divulgada em 2019, a 34ª edição do relatório “Conflitos no Campo – Brasil”, registrou um aumento de 77% em relação ao ano anterior. O estudo considera questões envolvendo a água provocadas pela mineração, por empresários de diversos setores, por hidrelétricas e pela ação ou omissão dos governos federal, estaduais e municipal. No total, foram registrados 489 conflitos, envolvendo 69.793 famílias.
Andreu destaca que a reserva de águas que será criada pelo Mercado de Águas é contra a legislação brasileira, que determina a água como um bem público.
“Ele [Jereissati] tenta minimar as consequências reais do projeto dizendo que não é uma propriedade da água e sim uma concessão. Mas, durante esse período, a propriedade da água é de alguém e hoje no Brasil isso não existe. Ao fazer isso, retira o consumidor menor do uso da água. Ele vai ter que sair de lá. É um projeto socialmente criminoso. As pessoas não vão ficar 30 anos sem água, vão sair de lá. E ao sair de lá, o problema desaparece. Os rios, no final, são todos deles”.
A relatoria do PL 495/2017 está nas mãos do senador José Serra desde outubro do ano passado e sem previsão para entrar na pauta do Senado. Se a matéria for aprovada, será remetida à Câmara dos deputados, na condição de órgão revisor.
Casos emblemáticos
Na América Latina, há registros de experiências neoliberais drásticas no que tange a mercantilização da água. O principal caso é o do Chile, que privatizou suas reservas de água potável durante a ditadura de Augusto Pinochet.
O modelo neoliberal chileno, que inspira Paulo Guedes, ministro da Economia brasileiro, trouxe consequências nefastas para a população. A Constituição de 1981, alvo de protestos populares ano passado, estabeleceu leis que transferiram empresas estatais para a iniciativa privada. Entre elas a lei nº 1.122, que outorgou o direito da iniciativa privada se apoderar das águas de forma gratuita e perpétua, como qualquer outro bem privado.
O chamado Código de Águas determina que, uma vez outorgados os direitos das águas a iniciativas particulares, o Estado já não tem poder de intervenção. Além do controle ao acesso, os termos desvincularam a água da propriedade da terra, dando origem a um dos sistemas mais radicais no que diz respeito à privatização dos recursos hídricos.
Assim como as águas de rios e mares, os serviços de saneamento básico também foram privatizados, acarretando o aumento das taxas para os chilenos. Mesmo com a redemocratização do país, a privatização manteve-se intacta
A avidez pelo recurso nos anos 1990 também atingiu a Bolívia no episódio histórico conhecido como “Guerra das Águas”. Em meados dos anos 2000, em Cochabamba, terceira maior cidade de Bolívia, uma multinacional norte-americana chamada Bechtel privatizou a água do município.
Somado a esse processo, um outro consórcio da mesma empresa estadunidense com outra empresa espanhola, obteve autorização para cobrar até mesmo pela água que os moradores obtivessem dos rios ou de seus próprios poços artesianos.
Um levante popular indígena eclodiu em oposição à privatização, com diversos dias consecutivos de mobilização popular e confronto com o Exército. Entretanto, após a declaração do Estado de Sítio pelo presidente Hugo Banzer, os indígenas conseguiram interromper o processo e expulsar a multinacional.
Na opinião de Marco Iob, do Cevi, uma das medidas mais importantes para colocar freios no processo global de financeirização da água é, assim como preconiza a ONU, inseri-lá junto ao saneamento como direito humano na Constituição dos países.
Ele explica que, até o momento, poucas nações do mundo alcançaram tal feito. Entre elas, o Uruguai em 2004 e Bolívia em 2009. Já na União Europeia, apenas a Eslováquia e a Eslovênia, até o momento, incluíram a propriedade pública da água e o direito à água potável em suas Constituições. A partir de sua experiência internacional, Iob também elenca o papel dos parlamentares e a mobilização popular como elementos fundamentais para impedir a restrição a esse bem comum.